quarta-feira, 20 de maio de 2020

ANIVERSÁRIO EM TEMPOS DE PANDEMIA




Sim, comemora-se hoje, neste 20 de maio, o dia do pedagogo. Também se comemora o dia do técnico de enfermagem, o dia mundial das abelhas e o dia nacional do medicamento genérico. 

Este dia é o 140º do ano (se for em ano bissexto, como é o caso, torna-se o dia 141º). 

Neste dia, ao longo dos anos, aconteceram coisas alegres e tristes. 

Em 20 de maio de 1444, por exemplo, morreu São Bernardino de Sena, pregador e místico franciscano. Em 1498, Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para as Índias. Em 1506, morreu o navegador italiano Cristóvão Colombo. Em 1570, foi publicado, por Abraham Ortelius, o primeiro atlas moderno. Em 1799, nasceu o romancista francês Honoré de Balzac. Em 1806, nasceu o filósofo britânico John Stuart Mill. Em 1864, morreu o poeta inglês John Clare. Em 1880, morreu a enfermeira brasileira Ana Nery. Em 1883, Krakatoa, uma ilha vulcânica, entrou em erupção e matou 36.000 pessoas. Em 1891, aconteceu a primeira exibição do cinetoscópio de Thomas Edison. Em 1896, morreu a compositora e pianista alemã Clara Schumann. Em 1899, nasceu a poetisa e antropóloga Lydia Cabrera. Em 1902, tendo como primeiro presidente Tomás Estrada Palma, Cuba se tornou livre dos Estados Unidos. Em 1930, o líder Mahatma Gandhi foi preso em Bombaim, pela polícia política inglesa. Em 1932, Amélia Harhart fez o primeiro voo sem escalas do mundo através do Oceano Atlântico. Em 1934, nasceu Pepe Mujica, político e agricultor urugaio. Em 1937, nasceu a poetisa portuguesa Maria Teresa Horta. Em 1940, os primeiros prisioneiros chegaram a um novo campo de concentração em Auschwitz. Em 1945, nasceu o compositor e cantor brasileiro Renato Teixeira. Em 1946, nasceu a cantora e atriz norte-americana Cher. Em 1957, nasceu a atriz, produtora e diretora brasileira Lucélia Santos. Em 1966, nasceu a cantora portuguesa Dora. Em 1967, nasceu o padre, cantor e escritor brasileiro padre Marcelo Rossi. Em 1972, morreu o compositor brasileiro, grande sambista, Silas de Oliveira. Em 1973, nasceu a cantora francesa Elsa Lunghini. Em 1974, nasceu o músico brasileiro Fernando Anitelli. Em 1980, nasceu o ator brasileiro Cauã Reymond. Em 1983, na Revista Science, o virologista e médico francês Luc Montagnier apresentou as primeiras publicações da descoberta do vírus HIV. 

Em 1984, às 18h, no Hospital São Lucas, em Juazeiro do Norte, eu nasci. De acordo com o endereço eletrônico playback.fm, a canção mais tocada no dia do meu nascimento foi: "Hello", de Lionel Richie. A canção brasileira mais tocada era, provavelmente, "Sonífera Ilha", dos "Titãs". O filme mais visto no Brasil era "A princesa e o robô", animação da "Turma da Mônica", e nos Estados Unidos era "The natural". 

Em 2002, o Timor-Leste tornou-se independente de Portugal. Em 2005, morreu o filósofo Paul Ricouer. Em 2020, depois de passar a madrugada em claro, vi, pela manhã, que as secretarias estaduais de saúde confirmaram que há no país 271.885 casos de infectados com a Covid-19, com 17.983 mortes. O Brasil é o terceiro país no mundo com maior número de casos, perdendo somente para os Estados Unidos e para a Rússia.

Espero que me venham notícias menos tristes ao longo do dia!




terça-feira, 19 de maio de 2020

ARTIGO: "REFLEXÕES SOBRE BULLYING NO SERIADO THE BIG BANG: THEORY"



REFLEXÕES SOBRE BULLYING NO SERIADO
THE BIG BANG: THEORY
CÍCERO ÉMERSON DO NASCIMENTO CARDOSO
1 – INTRODUÇÃO

            A série The Big Bang: Theory, de Chuck Lorre e Bill Prady, teve início em 2007, após um episódio piloto malsucedido realizado em 2006. A série concluiu sua décima segunda temporada em 2019. Apesar da retomada de um tema recorrente, como a relação nerd versus garota bonita inacessível, George Beahm (2012, p. 10) aponta para o fato de que:

Big Bang, a teoria não nos ofereceu piadas batidas, mas apresentou um novo olhar sobre o mundo nerd. Apesar do velho contraste entre nerds e garotas, a diferença crucial da série é a celebração, e não difamação, do nerdismo. O bom humor pode ser visto nas situações da série, e não na sátira dos personagens em si.

Deparamo-nos, nesta série, com um universo constituído por cinco personagens: Dr. Sheldon Lee Cooper, Dr. Leonard Leaky Hofstadter, Dr. Rajesh Koothrappali, Ms. Howard Joel Wolowitz e Penny.
No primeiro episódio, somos informados de que Sheldon, físico teórico, e Leonard, físico experimental, são amigos há algum tempo e dividem o apartamento 2.311, localizado em Pasadena, Califórnia. Ambos trabalham na Caltech – Instituto de Tecnologia da Califórnia – e costumam ir para a loja de revistas em quadrinho, para o cinema, para a Comic-con e para restaurantes da cidade com os amigos Howard e Rajesh, que também trabalham na Caltech.
 Ao retornarem do banco de sêmen, aonde foram numa tentativa de adquirir dinheiro para ampliar o serviço de conexão de banda larga, Leonard e Sheldon deparam-se com a chegada de uma nova vizinha. Leonard a convida para jantar com eles e, a partir daí, surge uma amizade – da parte de Sheldon, pelo menos, porque da parte de Leonard surge, em verdade, uma grande paixão. Howard e Rajesh têm contato com ela, posteriormente, e a trama está formada.
O enredo pauta-se, inicialmente, neste mote: quatro nerds, que vivem suas aventuras virtuais, enquanto conciliam o trabalho com tentativas frustradas, na maioria das vezes, de relacionamentos, constroem uma espécie de “confraria” que representa interação e possibilidades de fuga diante da solidão que lhes fustiga.   
Assim, com idiossincrasias que os tornam personagens hilariantes, os quatro nerds tão inteligentes quanto estranhos para o mundo prático, aproximaram-se e tornaram-se inseparáveis. Sheldon, cujo QI é muito elevado, não compreende sarcasmo, não gosta de sociabilização, além de não ser afeito a contatos físicos, sobretudo do ponto de vista afetivo-sexual; Leonard, o mais sóbrio do grupo, tem imensa dificuldade de lidar com o sexo oposto; Howard, que vive com a mãe que o trata como criança, apesar de sua idade, pensa que é o sedutor, embora não consiga, senão, ser patético em seus flertes; Rajesh, por sua vez, tem mudez seletiva, o que o impossibilita de falar com mulheres atraentes.
Talvez pela solidão vivida ao longo da vida escolar, também pelos conflitos familiares vivenciados, a eles resta buscar subterfúgios que representam possibilidades de lidar, de modo menos conflitante, com o espaço em que vivem. A amizade construída por eles, uma espécie de clube de nerds que se completam, e que driblam a realidade prática construindo momentos de satisfação entre si, é o maior desses subterfúgios.
A propósito, Ruth E. Lowe (2013, p. 217) diz que: “Os personagens de The Big Bang Theory são um grupo eclético. Penny e seus vizinhos cientistas têm gostos, hábitos sociais, bagagens culturais e interesses diferentes; no entanto, eles se atraem e, de alguma forma, fazem isso dar certo”.
Dentre os pontos que representam união entre eles, há o fato de que, com exceção de Penny, os demais integrantes do grupo foram, de algum modo, vítimas de bullying. Ficamos sabendo o que lhes ocorre ao longo das temporadas da série, e as marcas do bullying lhes atormentam.
Neste sentido, Toni de la Torre (2014, p. 69) afirma:

Essa consciência de não se encaixar no resto da sociedade os une também em sua amizade. É algo que eles têm em comum e, embora não falem disso, todos são conscientes dessa ligação. Sabem muito bem que ninguém jamais irá considerá-los pessoas populares e que sempre se sentirão intimidados por homens mais atléticos. No fundo, todos têm uma conta pendente com uma sociedade que os rechaçou e se refugiam no próprio mundo, no qual podem fazer o que gostam e, além do mais, estão a salvo dos valentões.

Torre toca num ponto, desse modo, pertinente para nossa discussão. Não só Leonard foi vítima de bullying, seus demais amigos sofreram também, durante toda a vida escolar, esse tipo de agressão. Assim, como se não bastasse sofrer violência impetrada por crianças da vizinhança, Sheldon passou a vida apanhando na escola. O mesmo podemos dizer de Howard, que era fustigado na escola a ponto de, segundo Torre (2014, p. 69), alguns alunos gostarem “de agarrá-lo pelos pés” para “enfiar sua cabeça na privada”. Rajesh, também, além de seu comportamento introvertido e estranho, que o tornava alvo fácil para agressores escolares, sempre teve problemas quanto à sua orientação sexual – a própria família, em vários episódios, supõe que ele é homossexual por seu comportamento, por vezes, afeminado. 
Assim, após esta breve explanação que consiste numa apresentação acerca da série e suas personagens, discorremos sobre o bullying de modo a analisá-lo conceitualmente e refletimos, em seguida, sobre como esse tema é apresentado na série, especificamente no episódio que constitui nosso corpus.    

2 – REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE BULLYING

O bullying tem sido debatido enfaticamente por estudiosos de diversos países e em torno do assunto constatamos extensa discussão acadêmica. Ele aparece com frequência, também, em obras literárias e audiovisuais e tem recebido frequente atenção da mídia. A ocorrência de bullying preocupa profissionais da educação e pais de alunos há décadas e tem instigado pesquisadores a compreender como ele se manifesta em suas particularidades. Inúmeros estudos têm dado ênfase a esse fenômeno com vistas a conceituá-lo, identificá-lo no âmbito escolar e, sobretudo, erradicá-lo.
Nossa proposta de trabalho não se pauta em tentar fazer um levantamento sistemático dos estudos que incidem sobre o tema. Em verdade, apontamos apenas alguns aspectos pontuais que nos possibilitem pensar o bullying – sua definição e o comportamento apontado por estudiosos como típico dessa modalidade de violência – para, em seguida, nos remetermos ao corpus escolhido para nossa discussão.
Nesta perspectiva, no que concerne às definições, é consensual, pela maior parte dos autores consultados, que o bullying corresponde a um modo de violência que se dá especificamente no ambiente escolar e envolve, pelo menos, um agressor e uma vítima que, muitas vezes, é agredida física e verbalmente de modo contínuo.
Dentre os autores que apontam algumas definições para o termo bullying, podemos mencionar Mayre Barros Custódio Veiga (2014, p. 46), para quem esse é “um fenômeno antigo, tanto quanto a própria instituição escola. No entanto, seus efeitos, ao longo do tempo, foram ignorados, por serem interpretados como brincadeira”.
Veiga (2014, p. 48) enfatiza, desse modo, que o bullying jamais deve ser confundido com brincadeira, tendo em vista que corresponde a uma “violência gratuita e intencional”. Além disso, ela diz que essa violência é marcada “por um jogo de poder, no qual os fortes – do ponto de vista físico, emocional, econômico, social – convertem os mais fracos – sob os mesmos pontos de vista – em objetos de diversão e prazer”.
Esse comportamento que, para Veiga (2014, p. 46), era considerado, há pouco tempo, inofensivo e comum na maioria das escolas, “pode acarretar sérias consequências ao desenvolvimento psíquico dos alunos, gerando desde queda na autoestima até, em casos mais extremos, o suicídio ou tragédias”.
Enquanto Veiga (2014, p. 47) considera o bullying “um conceito muito bem definido, uma vez que não se deixa confundir com outras formas de violência”, Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p. 111), em estudo que se pretende pormenorizado, mas que é, em verdade, apenas panorâmico, aponta para o fato de que o desconhecimento sobre “a existência, o funcionamento e as consequências do bullying propiciam o aumento desordenado no número e na gravidade de novos casos, e nos expõe a situações trágicas isoladas ou coletivas que poderiam ser evitadas”.
Para Silva (2010, p. 111), o bullying é “um fenômeno tão antigo quanto a própria instituição denominada escola”, e nisto as autoras mencionadas estão de acordo. Silva enfatiza, ainda, que “o tema só passou a ser objeto de estudo científico no início dos anos 70”, tendo origem na Suécia.
             O primeiro a pesquisar o bullying, segundo Silva (2010, p. 112), foi o pesquisador norueguês Dan Olweus, que constatou em seu país que “um de cada sete alunos encontrava-se envolvido em casos de bullying, tanto no papel de vítima como no de agressor”. Diversos países passaram, a partir desse estudo, a preocuparem-se com a realidade das escolas, tendo em vista que o bullying passou a ter visibilidade e demonstrava números alarmantes.
            A década de 1990 viu crescer exponencialmente trabalhos voltados para tentativas de compreender e erradicar das escolas esse tipo de violência. No Brasil, como afirma Silva (2010, p. 113): “A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) se dedica a estudar, pesquisar e divulgar o fenômeno bullying desde 2001”. 
            Ao conceituar o bullying, Veiga (2014, p. 48) afirma:

Sem termo equivalente na Língua Portuguesa, define-se bullying universalmente como “um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, adotado por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento”. Insultos, intimidações, apelidos cruéis e constrangedores, gozações que magoam profundamente, acusações injustas, atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam a vida de outros alunos, levando-os à exclusão, além de danos físicos, psíquicos, morais e materiais, são algumas das manifestações do comportamento bullying.

            Já Silva (2010, p. 21) assevera que o bullying é uma palavra de “origem inglesa e sem tradução ainda no Brasil” e, sem destoar da definição de Veiga, ela diz que essa palavra é utilizada para “qualificar comportamentos violentos no âmbito escolar, tanto de meninos quanto de meninas”. Desse modo, para a autora, dentre esses “comportamentos podemos destacar as agressões, os assédios e as ações desrespeitosas, todos realizados de maneira recorrente e intencional por parte dos agressores”.
Silva (2010, p. 21) discorre, ainda, sobre a palavra bullying de modo a analisar seus aspectos semânticos. Ela afirma, nesse sentido, que se buscarmos essa palavra no dicionário “encontraremos as seguintes traduções para a palavra bully: indivíduo valentão, tirano, mandão, brigão”. Em seguida, ela aponta para o fato de que a palavra bullying, propriamente dita, “corresponde a um conjunto de atitudes de violência física e/ou psicológica, de caráter intencional e repetitivo, praticado por um bully (agressor) contra uma ou mais vítimas que se encontram impossibilitadas de se defender”.
Aramis A. Lopes Neto (2005, p. 165), em artigo que estuda o comportamento agressivo entre estudantes, com ênfase no bullying, não difere do que diz as autoras mencionadas, no que concerne ao fenômeno, e afirma que esse tipo violência, manifestada pela agressividade entre os estudantes, “é um problema universal” e pode ser conceituado como “todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudante contra outro(s), causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação desigual de poder”.
Cleo Fante e José Augusto Pedra (2008, p. 01) afirmam que, longe de parecer uma “brincadeira inocente, sem intenção de ferir”, o bullying corresponde a “atitudes hostis, que violam o direito à integridade física e psicológica e à dignidade humana”. Segundo Fante e Pedra (2008, p. 03), alguns fatores contribuem para a proliferação do bullying. Dentre elas, “atitudes culturais, como o desrespeito, a intolerância, a desconsideração ao “diferente”; a hierarquização nas relações de poder estabelecidas em detrimento da fraqueza de outros”.
Fante e Pedra (2008, p. 08) apontam, ainda, para o fato de que o bullying é “um problema epidêmico, específico e destrutivo, motivo pelo qual deve ser considerado questão de saúde pública”. As ações dos denominados bullies – valentões – são facilmente identificadas. Segundo Fante e Pedra (2008, p. 09), podem ser as ações de “apelidar, ofender, ‘zoar’, ‘sacanear’, humilhar, intimidar, ‘encarnar’, constranger, discriminar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, excluir, isolar, ignorar, perseguir, chantagear, assediar, ameaçar, difamar, insinuar, agredir, bater, chutar”.
            Quanto a essas ações executadas pelo agressor – bully –, Veiga (2014, p. 49) destaca que elas “são validadas por muitos que assistem e acabam por participar – direta ou indiretamente – como espectadores ativos, passivos ou omissos”.
            Parece preocupante, mais que a agressão de um bully contra uma vítima, o fato de que, em alguns contextos, há pessoas que testemunham as diversas agressões contra uma vítima sem que sejam capazes de tomar atitudes com vistas a solucionar o problema. Por medo de represálias, por coadunarem indiretamente, ou por vislumbrarem com naturalidade e frieza o ataque contra determinada vítima, os espectadores podem ser tão culpados quanto os agressores, porque poderiam reverter o quadro, no entanto pouco ou nenhuma empatia eles são capazes de externar com relação às vítimas.  
Além disso, Silva (2010, p. 43), que coaduna com a definição de Fante e Pedra sobre as atitudes que correspondem à manifestação do bullying, também enfatiza que, não raro, o “agressor pode agir sozinho ou em grupo”. Quando em grupo, ela destaca que “seu poder de “destruição” ganha reforço exponencial, o que amplia seu território de ação e sua capacidade de produzir novas vítimas”. Se o estudante indefeso é assediado e/ou violentado por um colega, fica mais fácil, de certo modo, solucionar o problema, porém quando o estudante é assediado por um grupo, isso parece mais preocupante. Para Silva (2010, p. 38), “qualquer coisa que fuja ao padrão imposto por um determinando grupo pode deflagrar o processo de escolha da vítima do bullying”.
As vítimas típicas, de acordo com Fante e Pedra (2008, p. 14), são “aqueles alunos considerados pela turma como diferentes ou ‘esquisitos’”. Assim, esses alunos:

São tímidos, retraídos, passivos, submissos, ansiosos, temerosos, com dificuldade de defesa, de expressão e de relacionamento. Além desses, as diferenças de raça, religião, opção sexual, desenvolvimento acadêmico, sotaque, maneira de ser e de se vestir parecem perfilar o retrato das vítimas.

            Nesta perspectiva, Silva (2010, p. 37 – 42) apresenta três tipos de vítimas: 1) Vítima típica: “alunos que apresentam pouca habilidade de sociabilização”, 2) Vítima provocadora: “são capazes de insuflar em seus colegas reações agressivas contra si mesmas” e 3) Vítima agressora: “reproduz os maus-tratos sofridos como forma de compensação, ou seja, ela procura outra vítima, ainda mais frágil e vulnerável, e comete contra esta todas as agressões sofridas”.
            Veiga (2014, p. 49) não difere das concepções dos autores mencionados, quanto ao perfil das vítimas. Desse modo, ela afirma que: “As vítimas potenciais são as que apresentam exacerbada timidez, introspecção, dificuldade relacional, diferenças individuais positivas ou negativas, dificuldade de se impor e se defender”.
            No que diz respeito ao agressor, Veiga (2014, p. 49) diz que:

O autor de bullying é movido pelo desejo de popularidade, aceitação, status de poder no grupo social. Para isso, submete aquele que elegeu como “bode expiatório” à situação de inferioridade, ao escárnio público na escola ou na internet, ao psicoterrorismo. Humilha, constrange, difama, intimida, persegue, amedronta. Quanto mais atormenta a vida do outro, mais cresce a sua popularidade. Torna-se temido e, muitas vezes, respeitado entre os colegas de escola e/ou fora dela.

            Parece consensual, entre os autores consultados para nossa discussão, o fato de que o agressor tem um perfil de líderes que empregam esta aptidão para propagação, no âmbito escolar, de atos cruéis contra aqueles que aparentam ser indefesos e contra os quais recaem aspectos que os diferenciem dos demais do grupo.
            A tendência à crueldade, atrelada ao poder de liderar, torna o bully imbatível no que concerne à capacidade de causar mal-estar àqueles que são escolhidos como alvo de suas atitudes inconsequentes e malévolas. Silva (2010, p. 43) propõe que: “Os agressores apresentam, desde muito cedo, aversão às normas, não aceitam serem contrariados ou frustrados, geralmente estão envolvidos em atos de pequenos delitos [...]”.
            Sobre as vítimas de bullying, por outro lado, Silva (2010, p. 81) afirma que elas “possuem uma personalidade extremamente afetiva, repleta de sensibilidade, empatia e senso moral em relação aos demais”. Podem, ainda, do ponto de vista intelectual, “apresentar níveis elevados de inteligência”.
As agressões do bully podem acarretar à vítima, dentre outros transtornos, para Silva (2010, p. 25 – 32): 1) sintomas psicossomáticos, 2) fobia escolar, 3) fobia social, 4) transtorno de ansiedade generalizada, 5) depressão, 6) anorexia e bulimia, 7) transtorno obsessivo-compulsivo, 8) transtorno do estresse pós-traumático e 9) quadros menos frequentes de esquizofrenia, suicídio e homicídio.
             O problema é ampliado quando a vítima se vê acuada e sofre em silêncio, o que ocorre na maioria dos casos. Isso pode ser consequência, para Veiga (2014, p. 49), do medo de repreensões, ou da incompreensão de familiares e colegas, “da vergonha de se expor ainda mais ou de não sobrecarregar os familiares com mais problemas”.  A vítima carrega “a dor, a vergonha, a raiva, tanto daqueles que a fazem sofrer, como de si mesma, por não saber o que fazer”.  
            Em alguns casos, o sofrimento proveniente dessas agressões pode levar o indivíduo à resiliência, que Silva (2010, p. 76) define da seguinte forma: “Em termos de comportamento humano, a resiliência pode ser entendida como a capacidade que um indivíduo possui de transmutar sofrimento, dor, rancor, mágoa ou raiva em aprendizado”. Dessa forma, algumas vítimas descobrem mecanismos para driblarem os traumas e conseguem realizar ações que as tornam bem-sucedidas em suas vidas pessoal e profissional, no entanto sabemos que o bullying pode causar danos irreparáveis e, em alguns casos, irreversíveis, por isto deve ser amplamente combatido e erradicado.
            Silva dispõe de um capítulo em que são apresentadas personalidades conhecidas da grande mídia que confessaram ter sofrido bullying, mas que conseguiram ser resilientes e foram bem-sucedidas em suas profissões, como é o caso do nadador Michael Phelps, da atriz Kate Winslet, do ator Tom Cruise, da cantora Madonna, do jogador David Beckham e do cineasta Steven Spielberg. Nem todas as pessoas vitimadas pelo bullying, no entanto, conseguem sobreviver aos traumas que essa modalidade de violência lhes acarreta. Por isso, a necessidade de compreendê-la em suas especificidades para eliminá-la das escolas.   
            Após essa explanação, que aponta para alguns aspectos definidores da nossa categoria analítica, enfatizamos o enredo do episódio que constitui nosso corpus e, desse modo, observamos como o conceito de bullying é apresentado na série.   
   
3 – LEONARD VERSUS JIMMY: REVIVENDO O BULLYING

No episódio The Speckerman Recurrence (A recorrência Speckerman), o personagem Leonard Hofstadter conversa com sua vizinha Penny sobre algo que o intriga: ele recebe uma mensagem, pelo facebook, de um colega de escola, seu principal agressor, que lhe propõe um reencontro. Seu companheiro de apartamento, Sheldon, lhe pergunta qual é o colega que o procura e passa a apontar os tipos de agressão que ele sofrera, na tentativa de identificar qual o agressor a que ele se refere. A comicidade da cena é causada pelo absurdo das agressões aplicadas contra Leonard e que Sheldon, sem perceber, atira contra o amigo na presença de Penny, a vizinha por quem ele é apaixonado.
            Leonard torna-se um físico experimental bem-sucedido e consegue, de certo modo, retomar a vida após o bullying que sofrera durante maior parte da vida escolar. No entanto, ele relembra, a partir da mensagem que recebe do agressor, o desconforto físico e moral que traz em si como consequência da violência a que fora submetido. Isso o angustia mais profundamente porque Sheldon expõe a violência sofrida por ele, como já apontamos, na presença de Penny.
Sheldon ainda lhe faz algumas perguntas que ele sempre responde com um incisivo “não”. Com isto, fica subentendido que Leonard não era vítima de apenas um agressor na escola, mas de vários que encontravam formas as mais perversas de fustigá-lo sem motivo aparente. O excesso de sofrimento que ele experimentava, sem revidar nunca, demonstra o quanto ele era indefeso e o quanto estava fadado ao silêncio. Além disso, questionamo-nos sobre a postura dos adultos da escola em que ele estudava: ou as pessoas ignoravam a violência impetrada contra ele, o que parece improvável, ou elas sabiam e agiam condescendentemente. 
No diálogo mencionado, Sheldon pergunta:

– É o cara que fez xixi no seu ponche havaiano?
– Não, esse foi um outro cara.
– Foi o que puxou sua cueca com tanta força que o seu testículo subiu e você passou o recesso de Natal esperando ele descer?
– Não, esse foi um outro cara.
– Foi o que usava sua cabeça para quebrar nozes?
– Não.
– Foi o que fez você comer seus pelos do braço?
– Não, mas, na verdade, foi a irmã desse cara.


Durante a madrugada, Leonard, que não consegue dormir intrigado com o convite, certamente porque, ao deparar-se com a possibilidade de reencontrar um dos seus agressores, vêm à tona suas angústias e medos do passado, encontra-se com Sheldon na sala – este assiste à transmissão de entrega do Prêmio Nobel de Física – e passam a conversar sobre seu dilema: encontrar-se ou não com seu principal agressor?
Após muito conflito, Leonard afirma: “Quer saber? Eu cansei de viver com medo desse cara. Eu irei vê-lo e dizer tudo o que deveria ter dito na época da escola”. Assim, ele enumera o que deveria ter dito, mas não disse: 1) “Pegue alguém do seu tamanho!”, 2) “Você não transou com minha mãe!”, 3) “Sim, eu sei por que estou me batendo!”.
Ele faz uma lista das principais agressões sofridas e vai, finalmente, para o temido encontro. Alguns itens da lista são mencionados durante os diálogos. Ficamos sabendo, dentre outras agressões, que ele teve: seu testículo grampeado, objetos colados em seus mamilos, um papagaio enfiado em sua calça e laxante em sua bebida no dia do baile de formatura. E, como se não bastasse a violência física, o agressor o submetia à violência psicológica: chamava-o de Nancy, um nome feminino que denota a tentativa de desmoralizá-lo em sua masculinidade, e o atirou totalmente nu, em certa ocasião, no vestiário feminino da escola.
Leonard afirma que, na última vez que encontrou seu agressor, ele o forçou a usar o cadarço do tênis como fio dental. No entanto, decidido a superar seus medos, e certo de que poderia ter enfim um acerto de contas, ele resolve encontrar-se com seu antigo agressor: Jimmy Speckerman. Na ocasião, seus amigos Sheldon, Howard e Rajesh o acompanham. Embora a presença deles represente apoio e força moral, Leonard diz que os amigos vão com ele apenas para vê-lo sofrer novamente. No caso de Sheldon, pelo menos, sua afirmação não é aplicável, tendo em vista que ele o defende, apesar de sua dificuldade de diferenciar o que é literal do que é ironia e sarcasmo quando Jimmy se remete aos predicativos intelectuais de Leonard – o que também cria o teor cômico que atenua a tensão do reencontro entre o bully e sua vítima.
Leonard diz, antes de encontrar seu agressor: “Eu vou fazer ele se desculpar por tudo o que fez comigo na escola”. Quando Jimmy chega ao bar, no entanto, ele, que o espera ansiosamente, tem imenso susto quando seu antigo algoz o surpreende chegando por trás dele aos gritos.
Seguem-se a essa cena, entre o drama de Leonard, e a comicidade do texto marcadamente criativo, os discursos cínicos de um agressor incapaz de reconhecer o sofrimento físico e psicológico que proporcionara à sua vítima. Exemplo disto é o modo tão inconsciente quanto cruel com que Jimmy relembra os maus-tratos a que submetia Leonard. Ele se dirige aos amigos de sua antiga vítima e afirma: “Vocês deviam ter visto esse cara antigamente. Ele era tão pequeno que cabia em qualquer lugar. Armários, latas de lixo...” E, em seguida, o interpela: “Ai, cara, como você entrou naquela mochila?!” A resposta, sarcástica, mas que Jimmy não consegue aquilatar, é: “Eu não posso ganhar o crédito. Você ajudou muito”.
Logo somos informados sobre o real motivo de Jimmy estar interessado em reencontrar Leonard. Quando indagado a este respeito, Jimmy lhe pergunta: “O que você acha de um par de óculos que transforma qualquer filme em 3D?” Havia, portanto, um interesse pecuniário por trás do encontro marcado. Jimmy não só ignora os sofrimentos e angústias de Leonard, como não é capaz de conscientizar-se dos males que lhe causou. Ele chega a exclamar: “Éramos quase um grupo de comediantes!”
Após Sheldon apontar o quanto Jimmy cometera ações reprocháveis contra Leonard, e ler alguns itens da lista de agressões que seu amigo portava, o bully tem um acesso de consciência e afirma: “Eu não sei o que dizer. Eu sempre achei que a gente só estava se divertindo”. Leonard responde em seguida: “Bom, não era divertido para mim”. Posteriormente, tendo percebido as verdadeiras intenções de seu antigo agressor, ele decide ir-se embora. 
Fica claro, nesse caso, que Jimmy parece ter internalizado algo que os autores que discorrem sobre bullying atentaram em suas discussões: para alguns bullies, a violência que é exercida contra o outro, no âmbito escolar, não passa de diversão, brincadeira. Muitas vezes, eles não interpretam os maus-tratos realizados contra suas vítimas como uma violência que pode deixar sequelas físicas e psicológicas graves.
A mesma postura acrítica e, inicialmente, cínica, quanto à violência que o bullying pode representar, percebemos no comportamento de Penny. Paralelamente às cenas correspondentes ao reencontro de Leonard com seu algoz, Penny conversa com Bernadette Rostenkowski e Amy Farrah Fowler – namoradas, respectivamente, de Howard e Sheldon – e, somente após ouvir de suas amigas os depoimentos do bullying que ambas sofreram, se reconhece como uma agressora. Consciente do absurdo de seus atos, Penny sente-se culpada e tenta redimir-se. Assim, instigada pelas amigas, ela decide ligar para as pessoas que agredira para desculpar-se, e realizar ações filantrópicas, como doação de roupas, para compensar suas falhas do passado.
  Percebemos, desse modo, que o bully é concebido nesse episódio como alguém incapaz de refletir criticamente sobre seus atos. Tanto Jimmy quanto Penny parecem compreender a violência que cometeram como diversão, brincadeira ou descontração.
Penny, por exemplo, vê como algo natural e divertido o que ela e outros colegas fizeram com Kathy Geiger, que fora amarrada num milharal e vendada, sem sequer ter condições de pedir socorro, porque estava com um “milho enfiado em sua boca”. O motivo da violência é explicitado em seguida: Geiger só tirava notas boas.   
            Penny, que só compreende seus atos como absurdos a partir do ângulo de visão de suas amigas, ambas vítimas de bullying, pensa por outra perspectiva a violência a que submetera alguns colegas. Se antes ela olha sem sentimento de culpa, e com naturalidade, para o que fizera, através do olhar de suas amigas, e provavelmente pelo que ocorrera com Leonard, a quem Penny direciona sentimentos para além da amizade, ela repensa seus atos e sente-se realmente culpada.
            Jimmy, por sua vez, também demonstra resquícios de arrependimento quando vai excessivamente embriagado ao apartamento de Leonard. O diálogo que se segue entre os dois comprova isto:

Aquilo não foi legal, cara. Me desculpa mesmo. Eu espero que você possa me perdoar.
– Certo, tudo bem... Eu acho...
– Você é um cara lindo!
– Bem, obrigado, Jimmy!


            Leonard se comove com a predisposição de seu antigo agressor em pedir perdão e, percebendo que ele está impossibilitado de dirigir, o convida a passar a noite em seu apartamento. O gesto digno de Leonard, no entanto, é reprovado por Sheldon. Enquanto se dá o diálogo entre eles, Sheldon reprova a bondade do amigo e considera sua atitude abnegada e amigável uma falha de caráter.
            Leonard, no entanto, pôde ouvir do seu agressor: “Engraçado, não é Leonard? Na época da escola, eu era o vencedor e você o perdedor. Agora nós trocamos. Você é o vencedor”. Diante disso, Howard tece comentário sobre o quanto seria interessante ouvir pedidos de desculpa do seu antigo agressor, ao que Leonard enfatiza: “Isso meio que reforça a sua fé na bondade natural das pessoas”. Sheldon propõe, em resposta à ação acolhedora do amigo com relação a Jimmy: “Sabem o que ia ser legal? Como um gesto simbólico para todos os valentões que nos atormentaram por anos, nós abrimos nossa casa para o Jimmy e, assim que ele dormir, nós matamos ele”.
            Na sequência das cenas, Jimmy acorda e demonstra que seu pedido de desculpas não passa do resultado da embriaguez da noite anterior. Ele continua a chamar Leonard de Nancy que, somente assim, decide tomar uma atitude de confronto. Antes, diante da bondade de Leonard, Sheldon afirma: “Você é um fraco. O mundo vai mastigar você e depois cuspir”.
            A descrença de Sheldon quanto à mudança comportamental de Jimmy, e sua crítica à abnegação do amigo e companheiro de apartamento, mostra que o tempo todo ele estava certo. Jimmy, que se mostra arrependido pelo que fez contra Leonard enquanto estava bêbado, quando sóbrio, parece não dar importância aos pedidos de desculpa, e enfatiza o quanto ele ainda é uma pessoa frágil, sensível e, por isto, merecedora de seu desrespeito e maledicência.
            Ofendido com a indiferença e falta de respeito do antigo agressor, ele o enfrenta, finalmente, mesmo que, na sequência da cena em que ele o expulsa e o empurra, Sheldon apareça a seu lado, ambos de pijama, descendo pelas escadas numa demonstração aparentemente covarde de que a solução, para não sofrer bullying novamente, é fugir o mais depressa possível.
            Leonard adequa-se, pelo que apreendemos ao longo da série, ao que Fante e Pedra (2008, p. 14) afirmam sobre a vítima do bullying: “São tímidos, retraídos, passivos, submissos, ansiosos, temerosos, com dificuldade de defesa, de expressão e de relacionamento”. Some-se a isto sua baixa estatura e o fato de que sua mãe, que sempre se mostrou distante e fria, o considerava um mero objeto de estudo, o que a tornava incapaz de perceber os conflitos que ele vivenciava em decorrência do bullying sofrido. Ele chega a dizer que não foram os traumas causados por Jimmy, e seus demais agressores, os responsáveis por ele urinar na cama até a adolescência, mas os traumas proporcionados pela própria mãe.
            Percebemos que o modo como o bullying é concebido nesse episódio reforça o quanto pessoas podem ser vítimas desse tipo de violência sem que possam se defender. Elas estão à mercê, em muitos casos, de ações tão abjetas que parecem absurdas. Na série, a enumeração das ações realizadas contra Leonard, de tão absurdas que são, causam a comicidade justamente por parecem impossíveis de serem realizadas contra alguém. O mesmo se aplica ao que Penny e seus colegas fizeram contra Kathy Geiger.
            Além disso, ressaltemos que o discurso de Sheldon, mais racional do que o discurso de Leonard, que em vários aspectos mostra-se emotivo e pautado em aceitação quase passiva dos erros do outro, aponta para o que os autores do episódio querem expressar: o bullying existe e traumatiza suas vítimas. Nem sempre o bully, dado que é à maldade e a inconsciência de seus atos já na infância, é capaz de refletir sobre si mesmo e tornar-se consciente das ações cruéis que realizou contra uma vítima indefesa. 
            Portanto, percebemos que o discurso de Sheldon, que é pessimista, mas realista, vislumbra quem foi agressor como alguém incapaz de qualquer mudança. Esse teor pessimista prepondera no episódio e termina por ser confirmado a partir do modo como Jimmy se porta.
Quanto a Penny, ela até consegue refletir sobre seus atos, mas ela o faz mais pela pressão que o grupo que ela integra exerce sobre si, do que por uma decisão própria. Notemos, nesse caso, que ela resiste quando as amigas propõem alguns atos de filantropia para amenizar sua culpa. E, mesmo quando ela toma a atitude de ligar para suas vítimas para pedir desculpas, ela se sente mal quando as desculpas não são aceitas – como se a mera ação de ligar fosse garantia de que a vítima estaria disposta a aceitar as desculpas apresentadas. Penny não reflete, por exemplo, que os traumas causados nas vítimas podem ter alterado negativamente suas vidas para sempre.
Leonard conseguiu ser resiliente. Apesar dos traumas, ele prosseguiu nos estudos, tornou-se um físico experimental da Caltech (embora, para Sheldon, ser físico experimental não represente grande conquista) e demonstra ser uma pessoa digna, sensata e que preza pela justiça e compreensão em seus atos. Nesta perspectiva, temos, como o próprio Jimmy reconhece, “um vencedor”, sobretudo porque ele é capaz de perdoá-lo, de preocupar-se com seu bem-estar e integridade, de acolhê-lo, mesmo em contrariedade às advertências de Sheldon. Sua capacidade de resiliência e seu altruísmo tornam-no superior ao comportamento interesseiro, desinteligente, desrespeitoso, cínico e agressivo de Jimmy. 
            Desse modo, pelo que apreendemos desse episódio, somente quem é capaz de refletir sobre seus atos, e demonstrar verdadeiro arrependimento, pode ser digno de crença quanto à sua mudança, como ocorre, de certo modo, com Penny. No entanto, o que se comprova, e isso pode ser inferido como uma visão que se pretende realista por parte dos roteiristas da série, é que não é recomendável acreditar em quem foi capaz de gestos maledicentes e covardes contra uma vítima indefesa sem que se demonstre, de fato, consciência sobre o quanto seus atos foram abjetos e cruéis.       

REFERÊNCIAS

BEAHM, George. Big Bang, a teoria: guia não autorizado da série. Tradução de Felipe C. F. Vieira. São Paulo: Universo dos Livros, 2012.

FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Bullying escolar: perguntas & respostas. Porto Alegre: Artmed, 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/23442037/Bullying-escolar-perguntas-e-respostas-versao-sem-figuras. Acesso em: 20 de mai. 2018.

LOPES NETO, Aramis A. Bullying: comportamento agressivo entre estudantes. In: Jornal de Pediatria, Porto Alegre – RS, v. 81, n. 05, p. 164 – 171, 2006. 

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: mentes perigosas nas escolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

THE BIG BANG: THEORY. Direção de Mark Cendrowski e Anthony Rich. Criação de Chuck Lorry e Bill Prady. Produção: Warner Bros Television. Intérpretes: Johnny Galek, Jim Parson, Kaley Cuoco, Simon Helberg, Kunal Nayyar, Mayim Bialik, Melissa Rauch. Estados Unidos: 2011 - 2012. Minissérie distribuída em 3 discos (16min13s), DVD. 

TORRE, Toni de la. Bazinga!: um guia para a vida com Sheldon Cooper. Tradução de Marcelo Brandão. São Paulo: Lafonte, 2014.

VEIGA, Mayre Barros Custódio. Bullying. In: Falando sério sobre Eca e Temas Transversais. São Paulo: PAE Editora, 2014.  



REFERÊNCIA DA PUBLICAÇÃO DO ARTIGO: 

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Reflexões sobre bullying no seriado The Big Bang: Theory. In: SOUZA, Adílio Junior; CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento; PEREIRA, Maria Lidiane de Sousa (orgs.) Linguística, literatura e educação: teorias, práticas e ensino. João Pessoa: Ideia, 2020. p. 136 - 148. 


segunda-feira, 11 de maio de 2020

CONTO: "POMBA ENAMORADA ou UMA HISTÓRIA DE AMOR" (LYGIA FAGUNDES TELLES)


           Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras, tais como, Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão da palavra. Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos, infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o dobro pra vencer. Não acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença pra fumar lá fora, já estavam dançando o bis da Valsa dos miosótis e estava quente pra danar. Ela deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha enquanto voltavam pra casa. Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele, embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube veio lhe perguntar o que tinha perdido. Meu namorado, ela disse rindo, quando ficava nervosa, ria sem motivo. Mas o Antenor é seu namorado?, estranhou o diretor apertando-a com força enquanto dançavam Nosotros. É que ele saiu logo depois da valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única, informou com ar distraído. Um cara legal mas que não esquentava rabo em nenhum emprego, no começo do ano era motorista de ônibus, mês passado era borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa loja de acessórios na Guaianazes, quase esquina da General Osório, não sabia o número mas era fácil de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no fundo da oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que podia servi-la? Ela começou a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique, lembra? Ele lembrou enquanto sacudia a cabeça impressionado. Mas ninguém tem este endereço, porra, como é que você conseguiu? E levou-a até a porta: tinha um monte assim de serviço, andava sem tempo pra se coçar mas agradecia a visita, deixasse o telefone, tinha aí um lápis? Não fazia mal, guardava qualquer número, numa hora dessas dava uma ligada, tá? Não deu. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio, isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele. No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou um dia maravilhoso para os nativos de Capricórnio, aproveitando a ausência da dona do salão de beleza que saíra para pentear uma noiva, telefonou de novo e dessa vez falou, mas tão baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho, delicadamente. Só se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na esquina, e então tentou novamente justo na hora em que houve uma batida na rua e todo mundo foi espiar na janela. Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou apoiando-se na mesa, meio tonta. Senta, meu bem, deixa eu ligar pra você, ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e falando com a boca quase colada ao fone: Aqui é o Rôni, coleguinha da princesa, você sabe, ela não está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela, nada de grave, graças a Deus, mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta, lógico. Em voz baixa, amarrada (assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema, a gente sente uma coisa, diria o Rôni mais tarde, revirando os olhos) ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra oficina porque o patrão estava puto da vida e além disso (a voz foi engrossando) não podia namorar com ninguém, estava comprometido, se um dia me der na telha, EU MESMO TELEFONO, certo? Ela que espere, porra. Esperou. Nesses dias de expectativa, escreveu-lhe catorze cartas, nove sob inspiração romântica e as demais calcadas no livro Correspondência erótica, de Glenda Edwin, que o Rôni lhe emprestou com recomendações. Porque agora, querida, a barra é sexo, se ele (que voz maravilhosa!) é Touro, você tem que dar logo, os de Touro falam muito na lua, nos barquinhos, mas gostam mesmo é de trepar. Assinou Pomba Enamorada, mas na hora de mandar as cartas, rasgou as eróticas, foram só as outras. Ainda durante esse período começou pra ele um suéter de tricô verde, linha dupla (o calor do cão, mas nesta cidade, nunca se sabe) e duas vezes pediu que lhe telefonasse disfarçando a voz, como se fosse o locutor do programa Intimidade no Ar, para avisar que em tal e tal horário nobre a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial. É muito, muito macho, comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou. E só devido a muita insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu que não queria ouvir nenhum bolero do caralho, Diga a ela que viajei, que morri! Na noite em que terminou a novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao lado de Laurinha, quando depois de tantas dificuldades venceu o amor verdadeiro, ela enxugou as lágrimas, acabou de fazer a barra do vestido novo e no dia seguinte, alegando cólicas fortíssimas, saiu mais cedo pra cercá-lo na saída do serviço. Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e com o cílio postiço só no olho esquerdo, o do direito já tinha se perdido no aguaceiro. Ele a puxou pra debaixo do guarda-chuva, disse que estava putíssimo porque o Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu ponto de ônibus. Mas a gente podia entrar num cinema, ela convidou, segurando tremente no seu braço, as lágrimas se confundindo com a chuva. Na Conselheiro Crispiniano, se não estava enganada, tinha em cartaz um filme muito interessante, ele não gostaria de esperar a chuva passar num cinema? Nesse momento ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça funda, duas vezes repetiu, essa filha-da-puta de chuva e empurrou-a para o ônibus estourando de gente e fumaça. Antes, falou bem dentro do seu ouvido que não o perseguisse mais porque já não estava aguentando, agradecia a camisa, o chaveirinho, os ovos de Páscoa e a caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava namorando com outra, Me tire da cabeça, pelo amor de Deus, PELO AMOR DE DEUS! Na próxima esquina, ela desceu do ônibus, tomou condução no outro lado da rua, foi até a Igreja dos Enforcados, acendeu mais trezes velas e quando chegou em casa pegou Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o menino. Dormiu banhada em lágrimas, a meia de lã enrolada no pescoço por causa da dor de garganta, o retratinho de Antenor, três por quatro (que roubou da sua ficha de sócio do São Paulo Chique), com um galhinho de arruda, debaixo do travesseiro. No dia do Baile das Hortênsias, comprou um ingresso para cavalheiro, gratificou o bilheteiro que fazia ponto na Guaianazes pra que levasse o ingresso na oficina e pediu à dona do salão que lhe fizesse o penteado de Catherine Deneuve que foi capa do último número de Vidas Secretas. Passou a noite olhando para a porta de entrada do baile. Na tarde seguinte comprou o disco Ave-Maria dos namorados na liquidação, escreveu no postal a frase que Lucinha diz a Mário na cena da estação, Te amo hoje mais do que ontem e menos do que amanhã, assinou P. E. e depois de emprestar dinheiro do Rôni foi deixar na encruzilhada perto da casa de Alzira o que o Pai Fuzô tinha lhe pedido há duas semanas pra se alegrar e cumprir os destinos: uma garrafa de champanhe e um pacote de cigarro Minister. Se ela quisesse um trabalho mais forte, podia pedir, Alzira ofereceu. Um exemplo? Se cosesse a boca de um sapo, o cara começaria a secar, secar e só parava o definhamento no dia que a procurasse, era tiro e queda. Só de pensar em fazer uma ruindade dessas ela caiu em depressão, imagine, como é que podia desejar uma coisa assim horrível pro homem que amava tanto? A preta respeitou sua vontade mas lhe recomendou usar alho virgem na bolsa, na porta do quarto e reservar um dente pra enfiar lá dentro. Lá dentro?, ela se espantou, e ficou ouvindo outras simpatias só por ouvir, porque essas eram impossíveis para uma moça virgem: como ia pegar um pelo das injúrias dele pra enlear com o seu e enterrar os dois assim enleados em terra de cemitério? No último dia do ano, numa folga que mal deu pra mastigar um sanduíche, Rôni chamou-a de lado, fez um agrado em seus cabelos (Mas que macios, meu bem, foi o banho de óleo, foi?) e depois de lhe tirar da mão a xícara de café contou que Antenor estava de casamento marcado para os primeiros dias de janeiro. Desmaiou ali mesmo, em cima da freguesa que estava no secador. Quando chegou em casa, a vizinha portuguesa lhe fez uma gemada (A menina está que é só osso!) e lhe ensinou um feitiço infalível, por acaso não tinha um retrato do animal? Pois colasse o retrato dele num coração de feltro vermelho e quando desse meio-dia tinha que cravar três vezes a ponta de uma tesoura de aço no peito do ingrato e dizer fulano, fulano, como se chamava ele, Antenor? Pois, na hora dos pontaços, devia dizer com toda fé, Antenor, Antenor, Antenor, não vais comer nem dormir nem descansar enquanto não vieres me falar! Levou ainda um pratinho de doces pra São Cosme e São Damião, deixou o pratinho no mais florido dos jardins que encontrou pelo caminho (tarefa dificílima porque os jardins públicos não tinham flores e os particulares eram fechados com a guarda de cachorros) e foi vê-lo de longe na saída da oficina. Não pôde vê-lo porque (soube através de Gilvan, um chofer de praça muito bonzinho, amigo de Antenor) nessa tarde ele se casava com uma despedida íntima depois do religioso, no São Paulo Chique. Dessa vez não chorou: foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão desejando-lhe todas as felicidades do mundo, pediu ao Gilvan que levasse o presente, escreveu no papel de seda do pacote P. E. bem grande (tinha esquecido de assinar o cartão) e quando chegou em casa bebeu soda cáustica. Saiu do hospital cinco quilos mais magra, amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do outro, o táxi de Gilvan cheio de lembrancinhas que o pessoal do salão lhe mandou. Passou, ela disse a Gilvan num fio de voz. Nem penso mais nele, acrescentou, mas prestou bem atenção em Rôni quando ele contou que agora aquele vira-folha era manobrista de um estacionamento da Vila Pompeia, parece que ficava na rua Tito. Escreveu-lhe um bilhete contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na perna, que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu. Seria melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco, Antenor teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços, isso diante de um conhecido do Rôni que espalhou a notícia na festa de São João do São Paulo Chique. Gilvan, Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de núpcias enquanto fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca. Assinou por puro hábito porque logo em seguida riscou a assinatura, mas levemente, deixando sob tênue rede de risquinhos a Pomba Enamorada e um coração flechado. No dia em que Gilvanzinho fez três anos, de lenço na boca (estava enjoando por demais nessa segunda gravidez) escreveu-lhe uma carta desejando-lhe todas as venturas como chofer de uma empresa de ônibus da linha Piracicaba-São Pedro. Na carta, colou um amor-perfeito seco. No noivado da sua caçula Maria Aparecida, só por brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa no bairro deitasse as cartas e lesse seu futuro. A mulher embaralhou as cartas encardidas, espalhou tudo na mesa e avisou que se ela fosse no próximo domingo à estação rodoviária veria chegar um homem que iria mudar por completo sua vida, Olha ali, o Rei de Paus com a Dama de Copas do lado esquerdo. Ele devia chegar num ônibus amarelo e vermelho, podia ver até como era, os cabelos grisalhos, costeleta. O nome começava com A, olha aqui o Ás de Espadas com a primeira letra do seu nome. Ela riu seu risinho torto (a falha do dente já preenchida, mas ficou o jeito) e disse que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi.  

REFERÊNCIA:

TELLES, Lygia Fagundes. Pomba enamorada ou uma história de amor. In: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 19  25.