terça-feira, 23 de julho de 2019

CONTO: "A CARNE"


Ela fechou a porta do quarto. Encostou-se à parede oposta à porta – último apoio na prelibação da queda. Seus olhos eram espessas águas. Relâmpagos fotografavam o silêncio em sua boca. 
Antes...

             – Você me causa nojo! Não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
           – Eu realmente não valho nada porque sou casada com um verme, um monstro, um cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.

O quarto fechado e a lembrança da pancada no rosto. Quatro paredes azuis que se movimentavam contra seu corpo. Nenhuma janela lhe era possibilidade. O teto parecia perceber o patético da cena e ria sádico. Havia o chão e a sensação de abraçá-lo. Os móveis se deformavam como imagens imersas em profundas águas. Ela também descia às profundezas. Seu vestido estava envergonhado de cobri-la. O tempo exigia um gesto. O quarto enregelou-se. Ela não seria nunca mais ela mesma se...
Antes...

– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com desafiadores olhos.

A mão que tocou tantas vezes seu corpo... A mão que fez juras de amor... A mão que trazia um símbolo de compromisso firmado... A mão revoou na atmosfera gélida da sala de jantar e, como ave de rapina que em um golpe arrebata a presa, cessou o voo em seu rosto. Ela recebeu calada e esmiuçada e perdida e ferida e destruída a pancada. Os filhos não desviaram o rosto: “Como olhá-los novamente?” E agora que os cacos da família caíram sobre si, faria o quê? Precisava de uma ação. Precisava de forças para a ação, mas... O que fazer quando regida pelos olhos amedrontados dos filhos? O que fazer com a fúria do marido? O que fazer quando treze anos trituram o rosto de uma mulher sozinha?

Ao quarto deslocou-se em contígua embarcação. Tempestade assolou seu sombrio mar. Os raios se repetiam continuamente em seu rosto, que ardia em fogo. Entre afogar-se e permanecer no chão que lhe faltava, havia somente medo de que...
Antes...

– Essa carne é de que múmia? Você não presta nem pra fazer um bife! – Falou o marido de boca cheia.
– Fico impressionada com sua gentileza! – A esposa ofendida.
– Com você a gente esquece qualquer gentileza! – O marido de boca cheia.
– Sugestão, meu amor, não coma da carne que “você” me fez comprar com o pouco dinheiro que restou da farra que você deve ter feito ontem! Quanto às suas gentilezas de búfalo, dispenso todas elas! – A esposa muito ofendida.
– Eu detesto essa ironia sua! Coisa de mulher baixa! Você parece aquelas mulheres que se vendem... – Usou eufemismo preocupado com a presença inestimável das crianças.
– Eu devo parecer, realmente, com esse tipo de mulher... A diferença é que faço o mesmo que elas desde que casei, mas faço isso gratuitamente, por burrice minha! Sou tão baixa que nem pra ser baixa eu prestei! Mas cuidado: as coisas podem mudar!
– Pensando bem, nem pra isso você ia prestar! Você é tão ruim que eu acho que ninguém pagaria por seus serviços que, sinceramente, nunca foram bons! – O marido, com boca cheia, sorriu com escárnio.
– Como eu consigo conviver com uma pessoa como você?! E peço, por favor, que você pare com essa baixaria diante dos “meus” filhos. – Disse com sofreguidão e levantando-se. Seus olhos não escondiam as olheiras da noite mal dormida.

Pancada no rosto na frente dos filhos! Olhou para o espelho sobre a cômoda. Como confrontar a si mesma em um olhar? O marido nunca esteve tão dentro dela como naquela noite. Duas almas em um só corpo, dois corpos em uma só alma e uma só carne. Ela encostou-se na parede e respirou, como se buscasse no mais profundo de si a possibilidade de permanecer viva. A carne. A carne em fragmentos. A carne sobre a mesa esperando putrefação. Os olhos das crianças conduziram-na para a travessia. O mar explodia em seu rosto com relâmpagos e trovoadas. 
Antes...

– Baixaria diante dos “seus” filhos? Olha só quem fala! A pior baixaria é ter que viver com você, sua... – Tentou se conter e partiu mais um pedaço de carne. Engoliu-a.
– Você parece que está com algum problema, não é? Pra jogar em mim suas frustrações como você faz, criatura educada, só estando com problema! Mas o que foi mesmo que aconteceu? O seu patrão percebeu o quanto você é desonesto, ou foi a sua “outra” que decidiu trocar você por um sujeito menos idiota? Será que as pragas da sua mãe começaram a cair sobre você, ou os credores decidiram que você é um irresponsável? Caso tenha um desses problemas, meu amor, desconte neles e não em mim, eu mesma não tenho nada a ver com sua vidinha de adolescente!
– Você dá nojo a qualquer um... Só sabe dizer asneiras... Também, tendo as irmãs e a mãe que tem... Eu poderia esperar o quê? – A carne na mesa para ainda ser comida: uma boa porção.
– Coma mais carne, meu amor, parece que gosta de múmia... Coma e não se esqueça de engasgar e morrer sufocado!
– É lógico que gosto de múmia! Eu casei com você, esqueceu?
– Seu imundo!
– Imunda é você, que me causa nojo só de pra você olhar! Você não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
– Eu realmente não valho nada porque sou casada com um verme, um monstro, um cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.
– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com desafiadores olhos.

Ela não escutou mais nada e, no auge da tempestade, houve um raio que a atingiu no rosto. Torre ao chão, engoliu a saliva – saliva transformada em sangue – e arrastou-se para o quarto. No quarto, precisaria agir, mas... Dos olhos jorraram sombras e medos e angústias e treze anos de subserviência. O que fazer? Os olhos dos filhos guiariam por quanto tempo sua embarcação? Foi então que ela... Ela arrastou pelo corredor uma desalinhada mala e, altiva, finalmente, foi embora para nunca mais.


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A carne. InBreve estudo sobre corações endurecidos. Maricá - RJ: Ponto da Cultura Editora, 2011. p. 15 - 18. 

CRÔNICA: ISABEL ALLENDE, POR QUE SOU DESLOCAMENTO?


Como sou viciado em entrevistas, acordei angustiado e procurei alguma que me fizesse ficar mais alegre. Em minha busca, encontrei Isabel Allende sendo entrevistada na década de 1990. Mal concluí o vídeo, em êxtase, devo dizer, e eu me postei a escrever um texto. Há pessoas extraordinárias no mundo – Isabel Allende é uma delas.

Em certo momento da entrevista, Allende falava sobre a sensação de deslocamento que é comum a alguns escritores. Ela se indagava se, em seu caso, teria a ver com o fato de ter sido abandonada pelo pai. Eu não poderia me sentir mais identificado com ela – seja pela sensação de deslocamento no mundo, seja pelo fato de que também vivenciei essa experiência pouco simpática de abandono paterno.

Deslocamento é sensação que me define. Mais intensa ou mais forte em certos momentos, estar deslocado do mundo sempre foi meu modo de percebê-lo. Parece que eu traio a mim mesmo sempre que tento me adequar ao que sugerem ser comum, normal ou típico. O mundo não é meu e eu não sou dele – estamos fadados a uma relação de fracasso desde sempre.

Parece-me que, para fazer parte, para me integrar, para adequar meu olhar estranho ao mundo e seus artifícios, vivo as experiências que os demais exigem de mim. Volto do campo de batalha, no entanto, cada vez mais destruído. Minhas mãos retornam vazias e meu olhar envolto em névoa. As pessoas não sabem, nem sentem, mas vivê-las é caos que meu espírito não comporta.

Exilado no mundo, meu espírito – se existe algum – deseja voltar para casa com a esperança vã de que haja espaço que represente pertencimento. Pessoas, lugares, experiências, tudo é vão para meus pés que não sabem marchar – há tanta luta que não sabe de meu coração medroso!

Para tentar convívio, para entender o mundo, por medo, faço o que os outros poderiam aceitar como gesto de ajuste, porém meu corpo não suporta a dor de ajustar-se. Vivo minhas causas com tentativa de transgressão, no entanto mal passa o gesto e a vergonha arremessa, com violência, meus olhos contra um espaço que não lhes cabe. 

Nas mãos de quem o parece comportar, meu corpo morre. Não sinto vida quando tateiam do meu corpo a palidez e o desajuste. Quando me permito a isso, estou sem chão, estou sem mim. O mundo não me pertence, nem eu a ele. Estou sozinho em exílio estranho. Preciso de luz nas trevas do que ainda sou, mas não me encontrarei comigo mesmo enquanto eu não conseguir dizer NÃO para o que é o SIM do mundo. Estou cansado de tentar adequações. Será que meu lugar de paz não está exatamente no deslocamento que me define e, sinceramente, me amplia? Será que meu destino não é organizar meu mundo para melhor lidar com o espaço externo a ele tão violento e trágico? O mundo, disso estou certo, não me comporta! 

Émerson Cardoso
23/07/2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

CRÔNICA: "2019 É PARA OS FORTES"


Ao abrir a porta de casa, vi um gato de amarelos olhos que me olhou indiferente e disse: "2019 é para os fortes!" Quem me conhece sabe o sentimento que devoto a gatos - meu corpo responde eriçado quando vejo um. O gato sentou-se à minha frente e passou a ditar o texto que transcrevo abaixo:

"2019 é para os fortes! Sim, a coisa anda séria. Não percebo luz no fim do túnel. Homens e mulheres estão psicologicamente abalados - o índice de suicídios aumentou no país. E você, então, que já nasceu propenso a abalos, está nitidamente uma pilha de nervos, hein! 

2019 é ano do Pendurado - que não me deixe mentir o tarot. Ano ímpar, de aspecto grosseiro, oscilação da harmonia e desengano, 2019 tem rido dos fracos. Por isto, somente os fortes sobreviverão a ele. 12 pendurados em 12 meses em 12 símbolos e 12 quedas...

Eu poderia sugerir que você andasse ao vento, como eu, e eriçasse os pelos com a mesma maestria com que eu o faço. Eu poderia mandar você lamber-se despreocupado, como eu, porque medos e desesperos e angústias durante o ano não passarão rápido. Bem, mas como o brasileiro é dado a subserviência e caos, prefiro dizer outras coisas: tenha brio, erga a cabeça, apoie amigos e amigas e siga em frente! Não há isentos no caminho estreito que o ano nos forçou a caminhar - então, reaja!  

Meus olhos bifurcados veem você com pena. Que vida: presidente medíocre, Brasil dormente! Ignorância explícita, esquizofrenia nacional! Ah! Não tem como não rir quando vislumbro brasileiros em suas janelas sem rua! Que berço é este no qual vocês foram atirados? Tenho vergonha por você, querido! Vergonha por você e de você... 

Há tanta gente doendo, no entanto o silêncio impera. Há tanta gente gritando, todavia não há barulho em espaço algum. Vejo gente paralisada de medo, de aceitação, nadando em rios de dissimulação... Aprenda algo comigo, que sou alma que não mede esforços para o desprezo ao caos e gosta de auto-lambidas reconfortantes: reaja! Espero água e alimento sempre - e tenho pressa! Você, frágil espírito, merece o quê nesta vida em farpas? 

2019 é ano para quem tem músculo, para quem tem sangue, para quem tem coragem! Se você, pobre criatura, conseguir sobreviver a ele, disto estou certo, não haverá no mundo quem o segure! Então, covarde, cuspa quando ouvir nomes de governantes e seus comparsas despreparados - não deixe que eles tornem você um espírito inerte! Pise na cabeça das serpentes eleitas pela gentalha acrítica - a Roda da Fortuna também poderá girar no cenário político! E, mais do que isso, aprenda o que disse Fernanda Montenegro: "Para se superar a gente precisa amar a vida, tem que se querer estar vivo". E tenho dito!"

A verdade exposta pelo gato que me abordou me causou espanto. Gatos sempre mordem minhas mãos e pés em sonhos desde a infância. Agora, pelo que vejo, eles querem roer minha consciência - e isto pode ter uma grande utilidade em mim!

Émerson Cardoso
18/07/2019