terça-feira, 23 de dezembro de 2014

NOTAS SOBRE VIOLÊNCIA

Andar pelas ruas de qualquer bairro da cidade de Juazeiro do Norte, atualmente, é constatar a sensação de insegurança que paira sobre seus moradores. Além da desestrutura do trânsito, da precária infraestrutura, da péssima administração que arrasa a cidade, assaltos constantes destroem a paz de espírito da população.
Um passeio rápido pelo centro da cidade e é possível perceber que as pessoas têm olhos amedrontados, apavorados, desesperados. E a sensação de insegurança é ampliada se o passeio for realizado na periferia da cidade.
Será que é exagero meu? Será que minha percepção é tão sensacionalista quanto alguns jornais criminalistas que vivem a divulgar o excesso de violência a que a população é submetida? Creio que se trata mais de constatação do que drama...
A má distribuição de rendas causa a onda de assaltos que presenciamos diariamente em Juazeiro? O crescimento desordenado da cidade tem causado tal expansão da violência? A péssima administração do atual prefeito impulsiona as discrepâncias sociais que têm estimulado o cenário de violência que tolhe o desenvolvimento da cidade? Ou a falta de respeito ao próximo, problema grave e recorrente, tem atingido seu grau máximo de tensão por aqui?
Confesso que não sei de fato qual a causa, ou causas, de tanto desassossego, porém percebo que temos perdido lamentavelmente a tranquilidade. As pessoas andam apavoradas, qualquer pessoa é suspeita, qualquer gesto efetivado é causa de olhares atemorizados e desconfiança. 
Não somos ingênuos a ponto de considerarmos tal condição como algo novo para a cidade – Juazeiro do Norte tem seus históricos de violência. O que não podemos aceitar é que estamos à mercê da própria sorte a ponto de não podermos mais andar em paz enquanto o poder público finge que nada ocorre, e não otimiza suas ações contra o que tem ocorrido às pessoas. Na maioria das vezes, as vítimas dos assaltantes são pessoas que trabalham incansavelmente para obter um objeto específico - o que não é aceitável é que elas trabalham para dispor de um objeto que, por vezes, sequer poderão aproveitar, porque o direito de ir e vir já não lhes é concedido.   
Quando o assalto não ocorre de modo direto, notícias são dadas de que casas foram saqueadas por ladrões incapazes de perceber que muitas das casas que eles invadem são de pessoas a quem o sonho da casa própria virou um pesadelo: de que adianta conseguir ter, finalmente, uma casa própria se nela não se poderá deleitar paz de espírito e segurança?
O que os direitos humanos poderiam fazer para que os trabalhadores dessa cidade fossem assistidos, uma vez que estes não podem aproveitar da cidade senão neuroses, traumas, temores e abusos? O que podemos fazer para tentar reverter o quadro indigesto em que a população se encontra? Ligar para o Ronda do Quarteirão, ou gritar pela Guarda Municipal seria um bom caminho? Ou seria melhor sair daqui no primeiro "pau-de-arara"?
A sensação que tenho, neste momento, é a de que a população está de mãos atadas ante a falta de segurança e o desrespeito com que esta é tratada seja pelos assaltantes, seja pelo poder público que age com indiferença ante essa situação. Espero que algum dia – dia não muito distante, diga-se de passagem – as pessoas que tanto lutam no cotidiano para conseguir ter alguma dignidade sejam, de fato, protegidas e passem a andar sem o olhar amedrontado que tem se espalhado pela cidade. O que mais queremos, sinceramente, é que a paz exista nessa terra de valores históricos incomensuráveis e de gente trabalhadora. 



quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

LISTA DE MOMENTOS DE MAIOR SATISFAÇÃO


No livro A graça da coisa (2013), de Martha Medeiros, há um texto intitulado Pequenas felicidades que me parece interessante, porque se trata de uma lista de ações que representam, para a autora, espaços de imensa satisfação. Utilizei o termo satisfação porque não gosto do termo felicidade – e não gosto porque vejo uma urgência, por parte das pessoas, em adquirir esta tal felicidade como se qualquer coisa que fugisse ao que se convencionou chamar assim fosse execrável; e eu acredito que toda experiência, mesmo as dolorosas, pode representar possibilidade de crescimento e um caminho que, embora estreito, conduza o indivíduo à satisfação.

Resolvi, instigado pelo texto da cronista, fazer uma lista das minhas pequenas satisfações neste período de fim de ano que sempre me parece um momento profícuo para refletir sobre mim mesmo.

1 – Assistir a um filme tendo a casa totalmente arrumada. 
2 – Ganhar um livro que eu queria ler há séculos e gostar tanto dele a ponto de não querer que a leitura chegue ao final.  
3 – Tomar suco de laranja sem-açúcar-e-com-gelo-à-parte.
4 – Tomar banho, sem estar apressado, com sabonete glicerinado.
5 – Viajar apenas com uma mochila e conseguir colocar nela tudo o que será necessário para que a viagem seja pacífica.
6 – Encontrar amigos de quem se sentia saudade e sentir que a recíproca é verdadeira e, em seguida, conversar muito, com detalhamentos, sem pressa, sobre tudo e todos...
7 – Assistir e/ou ler entrevistas que trazem perguntas inteligentes.
8 – Ver gente lendo livros de autores de que eu gosto muito.
9 – Ler matérias sobre Frida Kahlo e demais artistas de minha predileção.
10 – Não esperar por muito tempo em filas, paradas de ônibus, pontos de táxi, consultórios médicos...
11 – Encontrar, por um preço agradável, algo que eu queria muito - ou receber desconto ao comprar qualquer objeto.
12 – Dia nublado e chuva calma.
13 – Fazer exame médico e constatar que está tudo bem até a décima geração.
14 – Encontrar uma pessoa pela primeira vez e sentir afinidade imediata.
15 – Ouvir música enquanto realiza alguma atividade cotidiana que aparentemente seria desagradável (lavar prato, varrer casa e limpar móveis tornam-se tarefas mais dignas quando realizadas sob efeito de música de qualidade).
16 – Receber uma encomenda na data certa.
17 – Obter sucesso após o esforço empreendido para realização de um trabalho. 
18 – Ter um texto aceito para publicação e, ao vê-lo publicado, não constatar erro algum.
19 – Constatar que será possível descansar porque todo o trabalho já foi realizado.
20 – Chegar atrasado, justificar plausivelmente e todo mundo compreender sem me fazer sentir culpa por existir.
21 – Conversar com pessoas idosas abertas a compartilhar suas experiências de vida.
22 – Não ter que dar explicações, mas, quando for necessário explicar, ser ouvido.
23 –  Deleitar o silêncio dos silêncios na hora de escrever.
24 – Tomar chá (de boldo, principalmente).
25 –  Contar com a gratidão de alguém e ser aceito quando eu demonstrar gratidão.
26 – Tomar água fria quando se está com muito calor.
27 – Estar em contato profundo com a natureza e vislumbrar o sol se pondo. 
28 – Ir ao ponto mais alto de minha cidade e pensar na vida (Colina do Horto).
29 – Ver a casa limpa, vestir roupa limpa, lavar as mãos (que alegria de viver é lavar as mãos!).
30 – Estar perto de pessoas leves, descomplicadas, bem-humoradas (tudo o que eu mais quero ser) e que me fazem reencontrar a paz de espírito que o cotidiano às vezes rouba de mim. 

Texto de: Émerson Cardoso
27/12/14

LIVRO É SEMPRE UM BOM PRESENTE - SOBRE "A GRAÇA DA COISA", DE MARTHA MEDEIROS


Por ocasião de uma viagem realizada em 2013, rumo a João Pessoa, um amigo e eu ficamos hospedados no apartamento de um leitor contumaz da obra de Martha Medeiros. Durante os poucos dias em que estivemos nesta cidade, passamos a maior parte – o que pareceu muito gratificante – confinados. Eu aproveitei para assistir filmes (Tudo sobre minha mãe, Colegas e À beira do caminho) e ler alguns textos de um livro de crônicas que me chamou atenção assim que entrei no apartamento e o vi sobre uma mesa: A graça da coisa, de Martha Medeiros.

Li obstinadamente esta obra, mas não consegui concluí-la na data em que deveríamos retornar à nossa cidade. Vendo-me constantemente com o livro em mãos, e percebendo que eu havia me incomodado por não tê-lo lido inteiro à iminência de ir embora, seu dono fez uma dedicatória e o entregou a mim com votos de que eu lesse e depois comentasse se havia gostado. Ante a gentileza dele, fiquei sem palavras – principalmente porque ele me havia dito que o comprara há pouco e que sequer o havia lido ainda. Devo dizer que ele dispunha de vários outros títulos da autora e que ao me presentear esse livro o fez por evidente desprendimento.

A propósito das crônicas que a autora compila no livro, todas são de uma linguagem acessível, os temas cotidianos são instigantes, há menção constante a obras cinematográficas, artes plásticas, peças teatrais e livros sobre os quais a cronista discorre de modo a apontar pontos de vista interessantes.

Além disso, surgem nas crônicas discussões sobre comportamento, relacionamentos afetivo-amorosos, família, atualidades, cenas de perceptível humor, comentários sutis sobre política, reflexões sobre o ser/estar no mundo conflitante das relações humanas e os dissabores (por vezes permeado de comicidade) sobretudo do universo feminino – com suas belezas e constantes descobertas diárias.

Fiquei sabendo que o hilário e comovente filme Divã, que traz a excelente Lília Cabral como protagonista, foi baseado na obra de Martha Medeiros, mas não havia lido obra alguma dessa escritora. Foi nessa viagem, através do livro A graça da coisa, que tive acesso à escrita dela. 

Confesso que os textos são direcionados a um público específico, pelo modo como a autora expõe determinados problemas do cotidiano. Sinto falta de mais discussões de caráter, por exemplo, social nos textos. A leveza, no entanto, com que a autora conversa com o leitor, faz com que seus textos sejam agradáveis. Creio que é um livro é ideal para quem busca descansar a mente um pouco, para quem deseja leituras mais leves, mais tranquilas.

Alguém comentou que não suportava Martha Medeiros por ela ser escritora de autoajuda. Não sei quanto aos demais livros dela, porém ao ler A graça da coisa, especificamente, vi que ela não se trata de uma escritora de autoajuda, mas de uma escritora que consegue dizer de modo simples, coerente e inteligente o quanto é possível estar antenado com o mundo prático e tentar estar de bem com ele. Sendo as relações tão tumultuárias e conflitantes, ler textos literários que discorrem sobre tais assuntos, quando estes são bem escritos e apresentam ideias inteligentes, é sempre válido.

Agora, no fim do ano de 2014, na tentativa de descansar a mente de leituras mais teóricas, decidi reler A graça da coisa e confesso que foi muito bom: deu para refletir sobre a vida, sobre o mundo, sobre tudo... E, ao fazê-lo, recordei-me de que havia prometido a quem o havia ofertado que emitiria minha opinião. Eis, portanto, minha opinião. 

E, para concluir, preciso dizer duas coisas: 1) preconceito acadêmico é uma lástima – antes de tecer qualquer crítica contra um autor e sua obra faz-se necessário conhecê-los – e 2) sou muito grato por ter aprendido que pequenos gestos de desprendimento podem fazer grande diferença para quem de fato os valoriza. 
           
Texto de: Émerson Cardoso

29/12/14

DICA SOBRE DISSERTAÇÃO-ARGUMENTATIVA

NOTAS SOBRE O TEXTO DISSERTATIVO-ARGUMENTATIVO

Sabemos que a escrita não deve caracterizar-se como uma ação que deve cumprir um formato único, fechado e fixo. A escrita deve surgir como resultado de vivências de um leitor proficiente capaz de transformar em texto o conhecimento de que dispõe. No entanto, como percebemos que muitas pessoas têm dificuldade de criar, do ponto de vista estrutural, um texto dissertativo-argumentativo, não custa atentar para um modelo que possa nortear a escrita desse tipo textual. Um dos modelos que aponto é este:

INTRODUÇÃO

Parágrafo 1:


Afirmação do Tema (o mesmo que a TESE, corresponde a uma afirmação, uma consideração geral sobre o tema proposto) + Argumento 1 + Argumento 2 (o autor poderá citar, de modo resumido, caso queira,  os argumentos que serão desenvolvidos posteriormente no texto).

As redações para o ENEM costumam apresentar outra estrutura: 

Afirmação do Tema (Tese) + Proposição (comentário geral alusivo ao Tema / apontamento de um problema / indício de repertório sociocultural).















DESENVOLVIMENTO

Parágrafo 2:


Explanação do Argumento 1 (todas as informações de que o autor dispõe sobre o Tema proposto deve ser desenvolvido no segundo parágrafo).

Argumentos possíveis:
1 - Dados; 
2 - Estatísticas; 
3 - Estudos de especialistas;
4 - Exemplos veiculados amplamente na mídia; 
5 - Conteúdos diversos que estejam vinculados ao Tema e representem demonstração de um amplo repertório sociocultural etc.


Parágrafo 3:


Explanação do Argumento 2 (todas as informações de que o autor dispõe sobre o Tema proposto deve ser desenvolvido no segundo parágrafo).

Seguir as mesmas dicas apresentadas acima.



CONCLUSÃO

Parágrafo 4:


Expressão inicial seguida de vírgula (Desse modo, / Portanto, / Sendo assim, / etc.) + Reafirmação do tema (o autor deve voltar à introdução e retomar a ideia principal do texto) + Propostas de intervenção para resolução do problema levantado / Articulação de ações e de agentes que possam ser acionados para resolução do problema. 



                                                             

"POEMA DO BECO", DE MANUEL BANDEIRA (EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO TEXTUAL)





INTERPRETAR UM TEXTO CONSISTE, INICIALMENTE, EM DESENVOLVER UMA LEITURA ATENTA OBSERVANDO OS ELEMENTOS QUE ESTRUTURAM ESSE TEXTO A PARTIR DE SUAS CARACTERÍSTICAS SUPERFICIAIS.

INTERPRETAR UM TEXTO CONSISTE EM IDENTIFICAR AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS QUE UM AUTOR APRESENTA EM SUA PRODUÇÃO TEXTUAL.

INTERPRETAR UM TEXTO É CRIAR UMA LEITURA NOVA SOBRE ESSE TEXTO, ATRIBUINDO SENTIDOS E ENCONTRANDO LEITURAS POSSÍVEIS A PARTIR DOS ELEMENTOS QUE O ESTRUTURAM.



OBSERVE O SEGUINTE TEXTO:

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.                      
                                                                           (Manuel Bandeira)

1-    O que podemos perceber no texto, após uma primeira leitura, é que o autor Manuel Bandeira, um proeminente representante da Primeira Geração Modernista, vivencia de modo efetivo o ideal da poesia modernista proposta pela Semana de Arte Moderna de 1922 – ano da comemoração de Independência do Brasil –, ao produzir um texto curto composto por dois versos que apresenta uma estrutura simples fortemente diferenciada das produções literárias tradicionais. O texto apresenta dois versos tendo, no primeiro, uma gradação percebida pelas vírgulas que enumeram os elementos que o compõe, para encerrar com uma interrogação; no segundo verso, por sua vez, há pressuposição de um diálogo evidenciado pelo travessão.

2-    O poema inicia com um advérbio interrogativo “Que” e coloca em pauta o fato de que, enquanto alguns veem elementos evidenciadores de beleza e requinte na produção literária, ele, um partícipe do povo, observa a realidade prática, com certo pessimismo; observa o espaço cotidiano e, desse modo, valoriza a condição humana simples ao perceber na poesia princípios de beleza em imagens corriqueiras.

3-    O poema traz, em suas camadas mais profundas, forte crítica à produção literária antiquada, ultrapassada e que enaltecia apenas imagens belas ricas em plasticidade e cores. Ao valorizar esses elementos de teor, por vezes, artificial, o poeta esquecia a pureza do povo, suas existências, seus conflitos, suas realidades sociais. O poema do beco observa o que é cotidiano, o que se pode tatear, o que é tangível e próximo.

4-    Para o poeta, observar situações distanciadas da sua realidade era absurdo, por isso a interrogação evidenciada no texto como uma questão filosófica que coloca em pauta a discussão entre o “belo” e o “não-belo”, nos levando a considerar a proposta heraclítica que se funda na adequação entre o que “é” e o que “não-é”, para se tornar um possível “vir-a-ser”.

5-    O travessão indica o diálogo estabelecido como pressuposto conativo em que o eu poético discute argumentativamente com o leitor:

a-     O homem sofre diversas misérias existenciais;
b-    Observar paisagens não resolveria problemas existenciais do homem;
c-     Logo, por que observar paisagens ricas em bucolismos se a realidade humana não vai mudar com isso?

6-    A grande discussão evidente no texto corresponde à exposição de uma crítica que pressupõe a premissa acima apresentada: como poderia um poeta ver apenas o que é belo, o que pode atrair pela artificialidade, e desconsiderar a construção de um poema que traduza efetivamente a realidade prática com suas precariedades e desdobramentos?

Seria pertinente refletir, a partir do texto: 

1-    O que, na produção literária, deve ser considerada: a exaltação de belezas por vezes distantes da vida prática, ou a realidade, mesmo com suas precariedades?


sábado, 6 de dezembro de 2014

RESENHA CRÍTICA: "UM TIRO NO CORAÇÃO DA POESIA", DE PAULO SOARES


Abri o livro Um tiro no coração da poesia[1], de Paulo Soares, e deparei-me primeiramente com o poema Espetáculo. A sensação de inconformismo da voz lírica coadunou com a minha e, em busca de outros poemas que se aproximassem de mim ideologicamente, fui lendo, de modo caótico, o livro deste autor natural da cidade de Assaré – CE, radicado na cidade de Crato – CE. Diz assim o primeiro poema que eu li do livro:

ESPETÁCULO

Nesse
Circo de Ordem e Progresso,
Equilibristas
Desempregados
E palhaços no Congresso.

Paulo Soares, já no início de sua obra, no espaço que corresponderia aos agradecimentos, cria uma nota de repúdio em que atira contra o leitor suas primeiras indignações – já prenunciadas no poema acima mencionado – contra a realidade sociopolítica e sociocultural preponderantes no Brasil: “A mídia, a ignorância e o mau gosto atiram pra matar. [...] A seca, o câncer e os automóveis aguardam a presa relaxar. É muita sacanagem!” Suas palavras estão bem ao gosto da Sociedade dos Cordelistas Mauditos – importante movimento literário cuja produção estética discutia, dentre outros fatores, o tecnicismo e a uniformização da linguagem poética do cordel –, movimento que este integrou.  

Alguns poemas discorrem sobre a temática política de modo, em geral, irônico e não menos agressivo – como podemos perceber nos poemas: Os coitados, Socialismo sintético, Poema público, A seca e Poema tóxico. O capitalismo que, por meio da mídia e suas artimanhas, aprisiona o indivíduo surge recorrentemente nessa obra – percebemos isto nos poemas: TV de “Marcas”, Promoção, Poema reciclável e Miséria Multiação. Os avanços tecnológicos do século XXI – século cujas bases são alicerçadas nos escombros da devastada modernidade que herdamos inopinadamente – surgem também no discurso proferido por vozes líricas que detêm uma visão inconformada, insubmissa e fatigada da vida. Viver à mercê de construtos ideológicos que coisificam o ser, de tecnologias que não solucionam problemas básicos da vida humana e que afetam o modo como o indivíduo pensa sua existência fadada, por vezes, à impotência, à angústia e à solidão são os motes que, longe de serem assimilados com condescendência, dão a tônica para uma contundente denúncia social – isto é evidente nos poemas, por exemplo: As flores no escuro, Nome sujo, Ditado popular, Pessoa, Conta de energia poética, S.O.S e CPF.

O poema CPF, um dos que mais gosto, além dos pontos acima apontados, traz à tona o evidente obscurantismo das relações: que informações subjacentes à subjetividade do indivíduo devem ser consideradas em se tratando de uma maior aproximação com o outro? Ante uma burocracia que costuma desprezar nossos valores identitários, e esforça-se para nos transformar em meros números, quem somos afinal? Ou melhor: como podemos nos dar a conhecer ante o esvaziamento e a coisificação a que pragmaticamente estamos submetidos? Como podemos esperar, desta feita, que as relações se efetivem?

Do ponto de vista formal, a maior parte dos poemas apresentados nessa obra são constituídos por versos livres, com algumas exceções. Há uma recorrência de poemas que exploram o aspecto visual – como os poemas Só isso, A ideia, Ao vivo, Importância, O escuro e Impotência poética – e outros que recorrem à técnica da redução estrutural e conteudística – percebemos isto nos poemas: Poema para todos, Hi Fi e Orgasmo.

É perceptível, em diversos poemas, o teor metalinguístico que indica uma constante reflexão de caráter estético por parte do autor. Há, também, uma tentativa de discutir a ação do tempo sobre o cotidiano e suas amarras inevitáveis: pensar, refletir, sentir e poder viver, no irremediável, são preocupações constantes das vozes líricas criadas pelo autor.

O tiro evocado no título, que atinge em cheio a poesia, também atinge o leitor que se depara com textos escritos com uma linguagem prosaica, simples e repleta de trocadilhos – alguns muito inteligentes, como no contundente poema Cratólica, que faz uma crítica severa ao atual bispo da diocese de Crato: Dom Fernando Panico. O texto diz o seguinte:

CRATÓLICA

Panico
fez em público
o que o público
faz no penico.  

 Nas últimas páginas do livro, Paulo Soares, personificando a poesia, sugere uma entrevista que ela teria lhe concedido. As últimas palavras da “Poesia”, em resposta à pergunta do autor, que dizia respeito à barbárie que prepondera no cenário político brasileiro, são dotadas de pouco otimismo (SOARES, 2014, p. 87): “Não vejo saída. É isso. Posso mudar tal concepção, porém, no momento não vejo luz no final do túnel”. Com esta resposta da “Poesia”, mais uma vez certifico-me de que esse livro coaduna com muitas das minhas concepções atuais sobre política e outros assuntos indigestos.

Paulo Cesar Ferreira Soares, além de poeta, atua na área de Educação e tem participação constante no cenário poético do Cariri cearense. Ele é graduado em Letras, pela Universidade Regional do Cariri – URCA, e recebeu, em 2011, o prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel (Patativa do Assaré).




[1] SOARES, Paulo. Um tiro no coração da poesia. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, 2014. 

                                                                                                                    

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

RECORTES SOBRE O CINEMA NACIONAL




1 – O ator Fernando Ramos da Silva, que interpreta o personagem-título do filme Pixote - a lei do mais fraco, tempo depois do êxito do filme voltou à sua vida de sempre, vivendo num ambiente de total miséria. Chegou a tentar seguir a carreira de ator, ingressando na Rede Globo com a ajuda do escritor José Louzeiro, mas foi demitido por ser incapaz de decorar os textos, já que era semialfabetizado. Devido à influência dos irmãos, retornou à criminalidade, sendo assassinado por policiais em 1987.

2 – No começo da década de 1980, a paraibana Marcélia Cartaxo integrava um grupo que montara a peça Beiço de estrada, texto original de Eliezer Filho, e, estando em São Paulo, teve contato com a cineasta Suzana Amaral que estava na plateia. Marcélia foi escolhida para dar vida à personagem Macabea, do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector. Por esse trabalho, Marcélia Cartaxo recebeu, dentre outros prêmios, o Urso de Prata no Festival de Berlim. Na semana em que viajou a Berlim, para receber a premiação, a atriz foi fisicamente agredida por um alemão xenófobo dentro de um ônibus. Ele justificou que achava que a atriz fosse uma judia.

3 – O filme de estrada, Central do Brasil, foi inspirado no clássico Alice nas Cidades, de Wim Wenders. Esse filme brasileiro foi um dos mais aclamados por críticos em todo o mundo e vencedor de inúmeros prêmios: dentre eles o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. Por seu trabalho em Central do Brasil, a atriz Fernanda Montenegro tornou-se a primeira atriz latino americana a ser indicada ao Óscar de melhor atriz.  

4 – Inicialmente o título do filme O céu de Suely seria “Rifa-me". O título definitivo veio primeiro em sua tradução para o inglês, Suely in the Sky, inspirado pela música Lucy in the Sky with Diamonds. As filmagens começaram em agosto de 2005, com duração de sete semanas, e durante este período todo o elenco permaneceu em Iguatu.  As atrizes Hermila Guedes, Maria Menezes e Zezita Matos viveram na mesma casa, como forma de ampliar a interação entre elas.

5 – O filme Orfeu no Carnaval (1959), de Marcel Camus, foi vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, Óscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro do Festival de Cannes.

 – Dira Paes é considerada a musa do cinema nacional - o título é merecido seja pelo talento da atriz, seja pela quantidade de filmes que ela tem no currículo (mais de trinta títulos). Uma das mais premiadas atrizes brasileiras, Dira iniciou sua carreira em 1985, na produção norte-americana Floresta de esmeraldas, de John Boorman. 

 – O dia do cinema brasileiro é comemorado em 05 de novembro, data que homenageia a primeira exibição cinematográfica que aconteceu em 1896, no Rio de Janeiro. Há, no entanto, um não consenso quanto ao dia em que este é comemorado, pois alguns dizem que o dia correto é 19 de junho - o que é confirmado pela ANCINE (Agência Nacional do Cinema). Esta data seria alusiva ao ano de 1898, por ocasião da primeira filmagem do Brasil realizada por Afonso Segreto, cineasta italiano. Há rumores de que a data comemorativa do cinema brasileiro poderá mudar.

LEITURA: "BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA", DE MANUEL BANDEIRA



BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA[1]

Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

Santa Maria Egipcíaca chegou
à beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:
– Leva-me à outra parte do rio.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

– Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo, e vou levar-te.

E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade de sua nudez.



[1] BANDEIRA, Manuel. Estela da vida inteira – poesias reunidas. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE "WESTERN"


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Uma breve explanação sobre Western. Revista Sétima de Cinema, n. 19, p. 10 - 13, out. de 2014. 

Segundo Vugman (2006)[1], o Western é “considerado o gênero cinematográfico norte-americano por excelência”. De fato, o cinema norte-americano produziu para o mundo obras grandiosas deste gênero que alcançou mais do que o mero status de produto mercadológico, tornou-se um mito.
“O grande roubo do trem” (1903), de Edwin Porter, é considerado o pioneiro do Western e já apresenta algumas características que seriam determinantes para o gênero. Diretores como David W. Griffith, Thomas H. Ince, William S. Hart, John Ford, James Cruze, Tom Mix, dentre outros, deram suas contribuições para a construção de obras cinematográficas que foram, com a “evolução” do gênero, aperfeiçoadas tanto na qualidade técnica, quanto nas constantes inovações de estilos e temas empreendidas por estes.
Um dos temas recorrentes nas obras de Griffith e Ince – a oposição simbólica do bem contra o mal representada sempre pela ligação do herói com o sagrado e dos vilões com o profano – tornou-se uma das principais características do Western. Seguem-se a estas características: a reinvenção do Velho Oeste fundindo diferentes épocas e regiões dos Estados Unidos em um mesmo espaço peculiar e submetido a uma mítica atemporalidade, o realismo dos cenários, as movimentadas cenas em que o herói – sempre com seu estimado cavalo – envolve-se em perseguições ou enfrentamentos que exigem dele coragem e agilidade, a figura da mulher pura e singela capaz de redimir o herói de uma vida de violência, o saloon como palco profícuo para os vilões, as paisagens desérticas e áridas que reforçavam a austeridade da vida das personagens, a recorrente indumentária – roupa com acessórios produzidos em couro, esporas nos sapatos, chapéu e lenço no pescoço – que caracterizava o herói, dentre outras.
Para além desta discussão inicial de cunho mais teórico, considero pertinente dizer que o primeiro filme de Western que eu assisti foi “O homem que matou o facínora” (1962), de John Ford. Este filme me causou forte impacto pela qualidade do enredo, abordagem de certos temas e caracterização das personagens.
Um dos muitos filmes em que John Ford fez parceria com John Wayne, “O homem que matou o facínora” é uma adaptação de um conto escrito por Dorothy M. Johnson e discorre sobre um senador que volta à cidade de Shinbone, para o funeral de um velho amigo. O senador conversa com um jornalista explicando-se sobre o porquê de estar naquele funeral e, a partir disso, a história, como um fluxo, começa a ser relatada.
O senador trata-se de Ransom Stoddard (James Stewart) – advogado idealista – e o morto trata-se de Tom Doniphon (John Wayne) – um pistoleiro. Embora amigos, na juventude eles envolveram-se num conflito amoroso porque ambos se apaixonaram pela mesma mulher: Hallie (Vera Miles).
Enquanto o triângulo amoroso se estabelecia, a cidade sofria as ameaças do facínora Liberty Valance (Lee Marvin), vilão que só temia Doniphon e que espancara e roubara Stoddart, a quem reencontrou e provocou com veemência.
Quando Stoddard se vê de todo acossado por Liberty Valance, este decide desafiar o vilão e propõe um duelo, embora não tivesse habilidade no manejo de armas. Durante o duelo, Stoddard, que seria presa fácil para o facínora, consegue sair vencedor. Acontece que ele ganhou a fama, porém quem de fato havia assassinado Liberty Valance fora Doniphon.
Um filme de fluxos de consciência de uma personagem inserida num enredo que se desenvolve entre flashbacks, “O homem que matou o facínora” tende a exprimir com ironia e inteligência aspectos políticos e sociais que surgem no irremediável. Stoddard revive, no retorno à terra de sua juventude, lembranças por vezes amargas, embora saudosistas e repletas de um sentimento de excessiva gratidão. 
Uma das personagens que mais me chamam atenção, e que protagoniza uma das imagens mais comoventes de companheirismo e amizade no cinema, é a personagem Pompey (Woody Strode). Pompey, que durante toda a trama mostra-se um amigo fiel de Doniphon, está ao lado do caixão, sem necessariamente estar aprisionado pelos grilhões da mera subserviência, porque a ocasião já não o incitava a isto, velando o amigo. Por algum motivo que ainda não sei explicar, sempre que vejo menções a este filme, me vem à memória exatamente esta personagem que, do meu ponto de vista, é uma das mais bem delineadas desta obra.
Enfim, tanto se poderia dizer a respeito deste filme dirigido por um dos maiores nomes do Western, mas voltando a tratar do gênero Western, o que parece pertinente dizer, para finalizar esta breve explanação, é que este não parece ter arrefecido, pois, como se pode constatar, inúmeras produções atuais recorrem aos elementos que ele apresentou ao mundo e vários dos seus filmes, como “O homem que matou o facínora”, por exemplo, são mais que atuais e merecem ser vistos e revistos por serem de uma qualidade técnica irrefutável e por apresentarem personagens marcantes que compõem o imaginário que o Western construiu.  
Afinal de contas, parafraseando a fala de uma das personagens de “O homem que matou o facínora”: isto é o Western, senhores e senhoras, um mito, e que deve ser publicado.  




[1] VUGMAN, Fernando Simão. Western. In: MASCARELLLO, Fernando. História do cinema mundial. 7. ed. Campinas, SP: Papirus, 2006. (Coleção Campo Imagético).

domingo, 16 de novembro de 2014

ENTREVISTA COM O POETA MANOEL DE BARROS - REVISTA CULT


O poeta Manoel de Barros faleceu, para comoção nacional, no dia 13 de novembro de 2014. Ele disse que queria ser lembrado como um “ser abençoado pela inocência” e como um poeta que “tentou mudar a feição da poesia”... A Literatura Brasileira, lamentavelmente, perdeu um grande poeta, mas ele permanecerá por meio de sua poesia que, sim, aponta para novas feições para o fazer poético e traduz um olhar singelo e, não menos inocente, sobre o mundo e suas belezas. 

Em 2010, na seção de entrevista da Revista Cult, o jornalista e mestrando em Teoria Literária da USP Wilker Sousa entrevistou, por e-mail, o poeta Manoel de Barros. Transcrevo, a seguir, na íntegra, esta entrevista.

SOUSA, Wilker. Voar fora da asa. CULT – Revista Brasileira de Cultura, n. 146, p. 22 – 24, mai. 2010.
  
CULT – A exemplo de Memórias Inventadas III (2007), Menino do Mato (2010) remonta ao tema da infância. Após muitas décadas dedicadas à poesia, suas obras mais recentes simbolizam o fechamento de um ciclo que retorna ao primitivo?

Manoel de Barros – Acho que não retorno ao primitivismo. Por antes acho que continuo primitivo, vez que meu caminho seria para encostar na semente da palavra, ou seja: o início do canto. Porque o ser humano começa a se expressar pelo canto.

CULT – Uma das marcas centrais de sua poesia é a tentativa de alcançar aquilo que está antes da palavra, ou seja, a sensibilidade primeira que desencadeia a poesia. Poderíamos então afirmar que a formação do poeta Manoel de Barros se deu fundamentalmente na infância?

Manoel – Eu fui abençoado por uma infância no mato. Não tínhamos vizinhos, não havia outras casas, outros meninos. Só nós – eu e dois irmãos. E o chão de formiga e de lagartixas. A mãe não tinha tempo de nos levar ao colo. O pai campeava. E a gente brincava de inventar brinquedos. Fui na luta para a poesia depois.

CULT – O trabalho com a linguagem em seus poemas revela a possibilidade que ela possui de alargar os horizontes do “primitivo” ou, ao contrário, é reflexo da impossibilidade de alcançar a essência poética?

Manoel – Eu sempre quis o criançamento da palavra. Eu sempre desejei o despropósito das palavras. A palavra que produzisse a melodia letral. Que sempre me parecesse a essência poética do absurdo.

CULT – Sua obra escapa a rótulos, como “poesia do Pantanal”, “poesia de folclore e costumes”, entre outros. Como definir a poesia de Manoel de Barros?

Manoel – Sabemos nós que poesia mexe com palavras e não com paisagens. Por isso não sou poeta pantaneiro, nem ecológico. Meu trabalho é verbal. Eu tenho o desejo, portanto, de mudar a feição da natureza, pelo encantamento verbal.

CULT – Ao longo de sua obra, o senhor criou diversas metáforas para designar a poesia. Qual sua favorita?

Manoel – Acho que a favorita e que algumas pessoas citam é: poesia é voar fora da asa.

CULT – O fato de não ter acumulado uma fortuna crítica o incomoda? Na sua opinião, a que se deve certa reserva da crítica com relação à sua obra?

Manoel – Já tenho respondido sobre isso. Conversei uma vez com o bibliófilo José Mindlin, que era meu grande amigo, sobre essa rejeição da crítica pela minha poesia. Mindlin me afirmara que minha poesia, por não ter rima nem métrica, seria uma evolução ou revolução na poesia. Pois que não usando métrica nem rima, uso a melodia letral ou a harmonia silábica.

CULT – Como o poeta Manoel de Barros gostaria de ser lembrado?

Manoel – Gostaria de ser lembrado como um ser abençoado pela inocência. E que tentou mudar a feição da poesia.