quarta-feira, 18 de novembro de 2015

MOSTRA 21 DE CINEMA 2015: O DESEJO AGUÇA COM O OLHAR

"Dentro da casa", de François Ozon

Tenho o privilégio de acompanhar a Mostra 21, idealizada por Elvis Pinheiro, há algum tempo. Em 2015, estive mais uma vez neste evento que tem exibido filmes de grande qualidade estética para o Cariri e, a este respeito, tecerei comentários com ênfase na exibição de algumas obras que mais particularmente me interessaram.
            Coincidentemente, os filmes que mais me causaram impacto, neste ano, foram realizados por cineastas que exploraram o idioma francês em suas obras. Isto não quer dizer que não apreciei os demais filmes, no entanto meu olhar foi aguçado por estas obras tão densas quanto qualitativas – e que as assisti em êxtase.   
            O desejo aguça com o olhar foi o tema do ano. O verbo desejar significa, segundo o dicionário[1], “ter desejo ou vontade de; querer; ambicionar”. Quando substantivo, este vocábulo adquire significação mais ampla – o desejo significa, desta feita, “vontade de possuir; ambição” – em outra acepção, poderia representar “vontade de comer; apetite; aspiração; anelo”.
                A Mostra 21 nos possibilita, desde sua primeira edição, apreciar personagens do universo cinematográfico delineadas por aspectos comportamentais diversos. As relações humanas, em suas mais densas e, por vezes, complexas manifestações, foram pormenorizadas nestes vinte e um dias em que, talvez mais do que em anos anteriores, tivemos uma pausa em nossas vidas cotidianas para mergulhar em dramas excedentes em profundidade, lirismo e beleza. E, com isto, muito descobrimos acerca de nossos próprios desejos, fragilidades, vulnerabilidades e, também, acerca de nossas forças e potencialidades, à medida que foi possível refletir sobre os limites de nosso olhar em relação a nós mesmos e, sobretudo, em relação ao outro. 
            Dentre os filmes que pude assistir, devo destacar, inicialmente, os seguintes: Violette (Martin Provost), Amor (Michael Haneke), A religiosa (Guillaume Nicloux), Bem amadas (Christophe Honoré), Jovem e bela e Dentro da casa (François Ozon). Estes foram, sem dúvidas, os que mais gostei da Mostra.
            O filme Violette, biografia da escritora francesa Violette Leduc, me instigou à necessidade de conhecer a escrita desta personalidade que, confesso, tomei conhecimento a seu respeito pela primeira vez através deste filme. A propósito, Cássio Starling Carlos (2014)[2] realiza, na Folha de São Paulo, crítica elogiosa sobre esse filme e diz que: “Violette atualiza, para nossa época que confunde literatura, autoficção e autopromoção, questões mais fundamentais, como ‘para que escrever?’ e ‘para quem se escreve?’”.
Concordo e endosso: o que mais me marcou neste filme foi o trabalho primoroso em apresentar os percursos vivenciados por esta escritora para construir sua ficção que, pelo que constatamos, causou polêmica por ser intensa e por expurgar, sem falsos moralismos, o desejo a partir de uma ótica feminina tão lírica quanto controversa, para a visão preponderante na época.
Já nos filmes Amor e A religiosa, reencontrei Isabelle Huppert – minha atriz francesa preferida –, em papéis secundários brilhantes! Recordo-me que ela, como a passional madre do filme A religiosa, arrancou risos da plateia – risos de nervosismo e estranhamento, obviamente! Ela, ao externar seu desejo pela religiosa submetida, sofregamente, ao convento sem que tivesse vocação, expressa seu ardor erótico com o semblante patético típico dos que confessam, passionalmente, o quanto desejam ao outro que, por uma série de fatores, se entrincheira em preterimentos e recusas.  
Em Amor, por outro lado, ela é a filha do casal de velhos músicos que, na vivência de um amor para além do senso comum, encontram-se às vésperas do desespero ocasionado pela doença da esposa e da sensação de impotência do esposo. Lírico e tecnicamente majestoso, Amor demora a sair da mente da gente após sua exibição – quem ainda não escuta, com incômodo, o barulho da torneira que escorre sem que a personagem protagonista a possa, ou queira, desligar?
Eu, que gosto muito de musicais, esperava com ansiedade assistir ao filme Bem amadas. Ele correspondeu às expectativas e tornou-se um dos meus preferidos da Mostra. Catherine Deneuve que – alterando um pouco o que teria dito, sobre ela, Susan Sarandon, no filme Fome de viver – ninguém precisa de muito estímulo para vê-la em cena, seja por sua beleza ou por sua atuação. Ela aparece ao lado de Chiara Mastroianni, sua filha, e pode dizer que colocou no currículo mais um belíssimo trabalho.
Devo mencionar, ainda, Jovem e bela e Dentro da casa, filmes do mesmo diretor.  Sobre o primeiro, gostei muito e o considerei interessante pela abordagem da juventude, prostituição e família com a densidade que os temas comportam, mas gostei mesmo, sem exageros, foi do controverso Dentro da Casa
Até que ponto, por meio da escrita, e seus vieses imaginativos, alguém pode manipular a outrem? Que versão de uma história é de fato a verdadeira? Desejar ver demais não seria uma postura masoquista, enquanto mostrar demais poderia figurar como uma postura de perceptível sadismo? Olhar não é uma tentativa, também, de encontrar-se com aquilo de mais íntimo que há em si mesmo? O que poderá ser encontrado na próxima página de um texto, que se pretende literário, não é um mecanismo que atiça, aguça, fomenta o desejo de olhar e olhar e olhar como um vício irrefreável? Este filme me deixou com muitas questões, talvez sem resposta – foi a sensação que eu tive, assim como outras pessoas, ao sair da sessão em que o filme Dentro da casa foi exibido. E a polissemia, nele presente, o confirmou como uma obra de arte excedente em genialidade! Talvez esta tenha sido a sessão em que melhor o desejo aguçado pelo olhar me foi apresentado.
Quanto aos demais filmes, o cinema nacional foi bem representado por Praia do futuro e Tatuagem. Ambos excelentes e muito elogiados pelos que participaram da exibição. Ninfomaníaca, Um estranho no lago, Holly Motors e Azul é a cor mais quente foram, talvez, os mais polêmicos – teriam causado estranhamentos e repulsa, ou instigado os olhares a desejarem mais loucamente?
Outros filmes foram exibidos, no entanto já me estendi muito em meu comentário. Devo cessar a escrita, por isto não falarei sobre todos. Porém, antes de silenciar, preciso dizer que o Ela foi um dos destaques desta Mostra – e com razão! A voz do sistema operacional Samantha, que era assustadoramente romântica e sexy, faz Theodore apaixonar-se – e quem não se apaixonaria? O amor, com suas vicissitudes, não poderia ter sido melhor retratado na Mostra!
Uma novidade ocorrida este ano foi a realização de palestras (em verdade, minicursos riquíssimos!) oferecidos ao público gratuitamente e ministrados por membros do Grupo Sétima de Cinema: 1) Cinelésbico: representatividade lésbica no cinema – mediado por Débora Costa – e 2) A estética do medo: os principais filmes e ciclos da história do cinema de horror – mediado por Wendell Borges.
Queria ter participado das duas palestras, mas participei apenas de uma – a ministrada por Wendell Borges. E posso afirmar que eu tive, assim como os demais que participaram, a oportunidade de aprender muito sobre uma das estéticas cinematográficas que eu menos apreciava, justamente por não conhecer mais a fundo. Após o passeio histórico realizado pelo ministrante, que foi coerente com a explanação conteudística, e com a exibição de materiais ricos acerca do assunto, pude me familiarizar mais com o gênero e repensar a visão errônea que eu tinha a este respeito.  
 Para finalizar, preciso dizer que a Mostra 21 é um acontecimento marcante para a história do cinema no Cariri, no Ceará, no Nordeste, no Brasil! O público ganha muito com o contato que tem tido com as exibições dessas obras cinematográficas de incomensurável valor estético. Precisamos que o Grupo Sétima de Cinema seja ainda mais perseverante no estudo, divulgação e produção textual sobre Cinema – e que para isto tenha sempre apoio. E Elvis Pinheiro, cuja iniciativa fez do Cariri um espaço aberto à sétima arte, continue aguçando nossos olhares cada vez mais para a necessidade de vislumbrar, na arte cinematográfica, momentos de fuga do mundo cotidiano, tão cheio de seus dissabores, e o encontro com os nossos desejos mais profundos que, de certo modo, só precisam de um estímulo, visual, talvez, para virem à tona.  

Émerson Cardoso
"A religosa", de Guillaume Nicloux





[1] LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Ática, 2000.
[2] CARLOS, Starling Cássio. Mais que biografia, “Violette” atualiza questões da literatura. In: Folha de São Paulo. Disponível em: www1.folha.uol.combr/ilustrada/2014/0815066448. Acesso em: 11/09/15.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "CRÍTICA E SOCIOLOGIA (TENTATIVA DE ESCLARECIMENTO)", DE ANTONIO CANDIDO


CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

I

1 – [...] estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e o ambiente, após termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de outra ordem. (p. 13)
2 – De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão.

NOTA: Visões opostas da crítica apontavam para dois ângulos de visão:
1) a obra deveria exprimir certo aspecto da realidade, e isto constituía o que ela tinha de essencial;
2) a matéria de uma obra seria secundária, e a importância dela derivaria dos aspectos formais com que foi engendrada e não de condicionamentos sociais .

3 – Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto ao outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. (p. 14)
3.1 – Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (p. 14)

NOTA: A sociologia da obra não propõe a questão do valor da obra, e pode interessar-se por tudo que é condicionamento: 1) a voga de um livro, 2) a preferência por um gênero, 3) o gosto das classes, 4) a origem social dos autores, 5) a relação entre as obras e as ideias, 6) a influência da organização social, econômica e política.

4 – [...] quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar.
4.1 – Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, ideias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético).

NOTA: O fator social é apenas: 1) matéria ou veículo para a realização do valor estético de uma obra, ou 2) elemento que atua na constituição do que há de essencial para realização do valor estético de uma obra?

5 – [...] estudiosos contemporâneos [...] ao se interessarem pelos fatores sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos. (p. 15)
5.1 – A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se pode dizer [...] que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.

NOTA:

Candido realiza uma breve análise de Senhora, de José de Alencar, em suas dimensões sociais (referências a lugares, modas, usos, manifestações de atitudes de grupo ou classe, expressão de um conceito de vida entre burguês e patriarcal).

Candido diz, no entanto, que apontar estes pontos não é o bastante para definir o caráter sociológico de um estudo. Ao discorrer sobre o casamento ocorrido por meio da compra de um marido, a ideia de compra tem um “sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como casamento por dinheiro”. Mas, para Candido, a análise em suas camadas mais fundas suscita a constatação deste traço social (ato de compra e venda no matrimônio) “funcionando para formar a estrutura do livro”. Candido conclui, a respeito da estrutura dessa obra, que no “conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria”. (p. 15 – 16)

A compra e venda em Senhora, afirmada abstratamente pelo romancista, não foi, segundo Candido, “afirmada abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade”. (p. 16)

6 – Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudando no nível explicativo e não ilustrativo. (p. 17)

7 – Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte.
7.1 – Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.
7.2 – O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros.
8 – Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica superou foi a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais. (p. 17)

NOTA: Candido aponta dois perigos tanto na sociologia quanto na crítica: 1) PERIGO UM: a tendência pela análise que faça deixar de existir a verdade básica que consiste no fato de que a precedência lógica, e empírica, pertence ao todo, apesar de ser apreendido por uma referência constante à função das partes; 2) PERIGO DOIS: a preocupação do estudioso com a ideia de que a integridade e a autonomia da obra exacerbe, além dos limites cabíveis, o senso da função interna dos elementos, em detrimento dos aspectos históricos.

II

1 – Para fixar ideias e delimitar terrenos, pode-se tentar uma enumeração das modalidades mais comuns de estudos de tipo sociológico em literatura, feitos conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a sociologia, a história e a crítica de conteúdo. (p. 18)

PRIMEIRO – formado por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as condições sociais. É o método tradicional, esboçado no século XVIII, que encontrou porventura em Taine o maior representante e foi tentado entre nós por Sílvio Romero. VIRTUDE – discernir uma ordem geral, um arranjo, que facilita o entendimento das sequências históricas e traça o panorama das épocas. DEFEITO – dificuldade de mostrar efetivamente [...] a ligação entre condições sociais e as obras.

SEGUNDO – formado pelos estudos que procuram verificar a medida em que as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos. Consiste em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro. Tende mais para a sociologia elementar do que à crítica literária.

TERCEIRO – apenas sociologia, e muito mais coerente, consiste no estudo da relação entre a obra e o público – isto é, o seu destino, a sua aceitação, a ação recíproca de ambos. 

QUARTO – estuda a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade.

QUINTO – desdobramento do anterior, investiga a função política das obras e dos autores, em geral com o intuito ideológico marcado (nos nossos dias tem tido a preferência dos marxistas).

SEXTO – voltado para a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros.

2 – Todas estas modalidades e suas numerosas variantes são legítimas e, quando bem conduzidas, fecundas, na medida em que as tomarmos, não como crítica, mas com teoria e história sociológica da literatura, ou como sociologia da literatura, embora algumas delas satisfaçam também as exigências próprias do crítico.
2.1 – Em todas nota-se o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração, ou para a sua função na sociedade. (p. 21)

3 – Ora, tais aspectos são capitais para o historiador e o sociólogo, mas podem ser secundários e mesmo inúteis para o crítico, interessado em interpretar, se não forem considerados segundo a função que exercem na economia interna da obra, para a qual podem ter contribuído de maneira tão remota que se tornam dispensáveis para esclarecer os casos concretos.

4 – [...] a literatura como fenômeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais. (p. 21)

NOTA:
O primeiro passo [...] para averiguar, do ângulo de visão da crítica, uma obra, é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. Em seguida, Candido cita o caso do veneno no romance O homem, de Aluísio de Azevedo, e alude à liberdade que o escritor tem em relação à realidade.

5 – Esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica.
5.1 – Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal.

6 – [...] se tomarmos o cuidado de considerar os fatores sociais [...] no seu papel de formadores da estrutura, veremos que tanto eles quanto os psíquicos são decisivos para a análise literária [...]. (p. 22)

III

1 – Em muitos críticos de orientação sociológica já se nota o esforço de mostrar essa interiorização dos dados de natureza social, tornados núcleos de elaboração estética. (p. 23)

2 – Num plano [...] mais sutil, mencionamos a tentativa de Erich Auerbach, fundindo os processos estilísticos com os métodos histórico-sociológicos para investigar os fatos da literatura. (p. 24)

3 – [...] os elementos de ordem social serão filtrados através de uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a autonomia da obra.

4 – Há certo exageros compensatórios, que vão ao extremo oposto e afirmam que a obra, no que tem de significativo, é um todo que se explica a si mesmo, como um universo fechado. Este estruturalismo radical, cabível como um dos momentos da análise, é inviável no trabalho prático de interpretar, porque despreza, entre outras coisas, a dimensão histórica, sem a qual o pensamento contemporâneo não enfrenta de maneira adequada os problemas que o preocupam.

5 – [...] é esta concepção da obra como organismo que permite, no seu estudo, levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e motivam; pois quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser contestada nem glorificada a priori.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

SESSÃO DO (DEZ) APEGO: MINHA LISTA DE FILMES PREFERIDOS!

A afeição pelo cinema, que descobri ter sido uma paixão também do meu bisavô e avô paternos, que trabalharam por muitos anos em cinemas de Juazeiro do Norte e Iguatu, me veio desde sempre – estava no sangue? Veio-me, talvez, do mesmo modo como o amor que tenho pela literatura e como a admiração que tenho pela música – não sei como começou! Apenas aconteceu, felizmente!
            O Grupo de Estudos SÉTIMA de Cinema, composto por pessoas que tanto amam, como conhecem, esta manifestação artística das mais valorosas, foi um espaço enriquecedor para mim que, leigo no assunto, sempre senti a necessidade de aprender um pouco mais a este respeito.
            E houve um exercício instigante, no Grupo, que consistia em sugerir aos integrantes que cada um fizesse uma lista dos seus dez filmes preferidos. Eu, que tendo a gostar destes desafios, resolvi criar a lista da seguinte forma: constariam, nela, os dez primeiros filmes que me viessem à mente. Para surpresa minha, a lista ficou quilométrica, pois vieram à tona títulos inesquecíveis que eu não poderia desprezar. Os que também amam cinema sabem a que eu me refiro: excluir um ou outro filme parece-nos uma traição imperdoável!
            Após um turbilhão de dúvidas, finalmente decidi enumerá-los. Não pela importância, mas pela ordem do antigo para o mais recente. Eis, não sem choro e ranger de dentes, por saber que excluí muitas obras magnânimas, os meus filmes preferidos que, nesta simplória, e não muito convincente lista, em que apresento breves justificativas para a escolha, pedem passagem:



E O VENTO LEVOU (Victor Fleming, 1939) – Apresenta uma personagem feminina das mais densas e encantadoras da história do cinema, além de ser um filme tecnicamente, sobretudo para a época, grandioso. Scarlett O’Hara, desolada pelas consequências da guerra, faz um vestido com uma cortina e vai em busca de subterfúgio – sem admitir, claro, que estava arrasada por tanto lutar para conseguir manter sua propriedade que estava à míngua! Inesquecível!



CANTANDO NA CHUVA (Genne Kelly & Stanley Donen, 1952) – A cena mais bela, comovente e lírica que já vislumbrei num musical, e que me causa arrepios e alegrias e bem-estar todas as vezes que vejo.



CONTA COMIGO (Rob Rainer, 1986) – O filme que, além da excelente trilha sonora, e das atuações e fotografia inesquecíveis, melhor conseguiu mostrar o quanto uma criança pode sentir-se desvalorizada em suas potencialidades e que, apesar disto, por meio de amigos imperfeitos, mas verdadeiros, seria possível repensar a vida e, quem sabe, melhorá-la.   



A FESTA DE BABETTE (Gabriel Axel, 1987) – Talvez o filme que, até onde conheço, melhor discorra sobre o tema da fraternidade em seu sentido mais amplo. Seja pela temática abordada, seja pelos aspectos técnicos, é uma das obras cinematográficas mais líricas, bem delineadas e belas que já vi. Se um dia todos os filmes do mundo fossem destruídos, e eu pudesse salvar um deles, talvez eu salvasse este – porque, ao vê-lo novamente, eu poderia voltar a crer que há alguma esperança para o gênero humano! 



TUDO SOBRE MINHA MÃE (Pedro Almodóvar, 1997) – É, dentre as obras de Almodóvar, a que consegue mais me tocar, pelo modo com que as personagens femininas, frágeis, por um lado, e fortes, por outro, são apresentadas. Cores, diálogos, ritmo e atuações são impecáveis! 



CENTRAL DO BRASIL (Walter Salles, 1998) – Sóbrio, coerente e de atuações inesquecíveis, neste filme pude constatar que Fernanda Montenegro, com seu olhar expressivo, construiu as cenas mais intensas do cinema nacional.


A PROFESSORA DE PIANO (Michael Haneke, 2001) – A primeira vez que assisti a este filme tive um choque. O maior choque ao ver um filme. Um imenso e indescritível choque. Náusea, sofrimento, estranhamento e vontade de rever e rever e rever para me torturar com as imagens que a professora de piano, com seu olhar sério, agressivo, rancoroso, e de quem ama e odeia a própria mãe, me proporcionou. Isabelle Huppert se tornou minha atriz preferida em língua francesa!



PECADOS ÍNTIMOS (Todd Field, 2006) – Em língua inglesa, Kate Winslet é minha atriz preferida. Neste filme – e olhe que coleciono todos os filmes em que ela já atuou –, consegui adentrar, como nunca, no universo que esta atriz, por meio de atuações sempre intensas, nos apresenta. A alusão à Madame Bovary, de Flaubert, e a história de amor, tão simples que margeia o senso comum, dão uma tônica incrível ao filme. Há uma personagem, o pedófilo, que mostra a solidão humana como poucas vezes vi no cinema.



PIAF – UM HINO AO AMOR (Olivier Dahan, 2007) – Marion Cotillard, ao assumir a responsabilidade de interpretar Edith Piaf – minha cantora preferida! –, em filme biográfico, foi responsável pela melhor atuação de todos os tempos, neste gênero cinematográfico. 


MARY AND MAX: UMA AMIZADE DIFERENTE: (Adam Elliot, 2009) – A amizade, tema explorado em muitas películas, conseguiu ultrapassar, do meu ponto de vista, todas as expectativas. É minha animação preferida entre as preferidas. E devo confessar, embora isto me constranja, que nunca me foi possível assistir a este filme sem chorar desesperadamente – guarde segredo, s’il vous plaît! 


            No mais, só tenho pedidos de perdão a fazer aos demais filmes que amo e que, infelizmente, tive que preterir da minha lista. Foi um exercício interessante, mas uma sessão de desapego difícil de realizar!

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso



           
           


terça-feira, 3 de novembro de 2015

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "O QUE É LITERATURA?", DE TERRY EAGLETON


EAGLETON, Terry. O que é literatura?. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

1 – Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a escrita “imaginativa”, no sentido de ficção – escrita esta que não é literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede. (p. 01)
2 – A distinção entre “fato” e “ficção”, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria distinção é muitas vezes questionável. (p. 01)
2.1 – O fato de a literatura ser a escrita “criativa” ou “imaginativa” implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não criativas e destituídas de imaginação? (p. 02)
3 – Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. (p. 02)
NOTA: Esta seria a ideia de Jakobson, para quem a literatura é a escrita que representa “a violência organizada contra a fala comum”. A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. Trata-se de uma linguagem que chama atenção sobre si mesma e exibe sua existência material.
NOTA: Eagleton discorre sobre os formalistas russos, apresentando-os no contexto em que eles apareceram – década de 1920. Segundo os formalistas, à crítica caberia preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática, pois a literatura deveria ser considerada como uma “organização particular da linguagem”. A literatura tinha suas leis específicas, suas estruturas e mecanismos, que deviam ser estudados em si, e não reduzidos a alguma outra coisa. A literatura, para eles, era um “fato material” e não um veículo de ideias e de reflexões sobre a realidade social.
4 – Em sua essência, o formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura; e como a linguística em questão era do tipo formal, preocupada com as estruturas da linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram ao largo da análise do “conteúdo” literário (instância em que sempre existe a tendência de se recorrer à psicologia ou à sociologia) e dedicaram-se ao estudo da forma literária. (p. 04)
4.1 – Longe de considerarem a forma como a expressão do conteúdo, eles inverteram essa relação: o conteúdo era simplesmente a “motivação” da forma, uma ocasião ou pretexto para um tipo específico de exercício formal. (p. 04)
4.2 – E embora eles não negassem que a arte tivesse uma relação com a realidade social – de fato alguns deles estavam estreitamente associados aos Bolcheviques – os formalistas afirmavam, provocadoramente, que essa relação fugia ao âmbito do trabalho crítico. (p. 04)
5 – Os formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de “artifícios”, e só mais tarde passaram a ver esses artifícios como elementos relacionados entre si: “funções” dentro de um sistema textual global.
5.1 – Os “artifícios” incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas narrativas; [...] e o que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de “estranhamento” ou de “desfamiliarização”. A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discursos, era o fato de ela “deformar” a linguagem comum de várias maneiras. (p. 05)
5.2 – Na rotina da fala cotidiana, nossas percepções e reações à realidade se tornam embotadas, apagadas, ou como os formalistas diriam, “automatizadas”. A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. (p. 05)
6 – Os formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma “especial” de linguagem, em contraste com a linguagem “comum”, que usamos habitualmente. (p. 06)
6.1 – A ideia de que existe uma única linguagem “normal”, uma espécie de moeda corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade, é uma ilusão. Qualquer linguagem em uso consiste de uma variedade muito complexa de discursos, diferenciados segundo a classe, região, gênero, situação, etc., os quais de forma alguma podem ser simplesmente unificados em uma única comunidade linguística homogênea. (p. 06)
7 – [...] os formalistas [...] reconheciam que as normas e os desvios se modificavam de um contexto social ou histórico para outro – que “poesia”, nesse sentido, depende de nossa localização num dado momento. (p. 07)
7.1 – [...] para os formalistas, o caráter “literário” advinha das relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sendo, portanto, uma característica perene. Eles não queriam definir a “literatura”, mas a “literaturidade” – os usos especiais da linguagem –, que não apenas podiam ser encontrados em textos “literários”, mas também em muitas outras circunstâncias exteriores a eles. (p. 07)
8 – [...] os formalistas achavam que a essência do literário era o “tornar estranho”. Eles apenas relativizavam esse uso da linguagem, vendo-o como uma questão de contraste entre um tipo de discurso e outro. (p. 08)
8.1 – Pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia. De fato, quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as técnicas que haviam utilizado para a epopeia. (p. 08)
9 – Um outro problema concernente ao argumento da “estranheza” é o de que todos os tipos de escrita podem, e trabalhado com a devida engenhosidade, ser considerados “estranhos”. (p. 09)
10 – Poderíamos dizer, portanto, que a literatura é um discurso “não-pragmático”; ao contrário dos manuais de biologia e recados deixados para o leiteiro, ela não tem nenhuma finalidade prática imediata, referindo-se apenas a um estado geral de coisas.
10.1 – Esse enfoque na maneira de falar, e não na realidade daquilo de que se fala, é por vezes considerado como uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de linguagem auto-referencial, uma linguagem que fala de si mesma.
11 – Mas também essa definição da literatura encerra problemas. [...] Em grande parte daquilo que é classificado como literatura, o valor verídico e a relevância prática do que é dito é considerado importante para o efeito geral. (p. 11)
11.1 – Contudo, mesmo em se considerando que o discurso “não-pragmático” é parte do que se entende por “literatura”, segue-se dessa “definição” o fato de a literatura não poder ser, de fato, definida objetivamente.
11.2 – A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolver ler, e não da natureza daquilo que é lido. Há certos tipos de escritos – poemas, peças de teatro, romances – que, de forma claramente evidente, pretendem ser “não-pragmáticos” nesse sentido, mas isso não nos garante que serão realmente lidos dessa maneira. (p. 11)
11.3 – Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado. (p. 12)
12 – [...] podemos pensar na literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até Virginia Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita.
12. 1 – Não existe uma “essência” da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido “não-pragmaticamente”, se é isso o que significa ler um texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido “poeticamente”. (p. 12)
12.2 – “Literatura” talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. (p. 13)
12.3 – Em muitas sociedades, a literatura teve funções absolutamente práticas, como função religiosa; a nítida distinção entre “prático” e “não-prático” talvez só seja possível numa sociedade como a nossa, na qual a literatura deixou de ter grande função prática. Poderemos estar oferecendo como definição geral um sentido do “literário” que é, na verdade, historicamente específico. (p. 12)
13 – [...] a sugestão de que “literatura” é um tipo de escrita altamente valorizada é esclarecedora. Contudo, ela tem uma consequência bastante devastadora. Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria “literatura” é “objetiva”, no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente [...] pode deixar de sê-lo. (p. 14)
14 – A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe. Quando, deste ponto em diante, eu utilizar as palavras “literário” e “literatura” neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento. (p. 15)
14.1 – A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor.
15 – A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor.
15.1 – Assim como uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como literatura no século seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito de público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor. Até as razões que determinam a formação do critério de valioso podem se modificar. (p. 15)
16 – Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. (p. 17)
16.1 – “Valor” é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. (p. 17)
17 – O fato de sempre interpretarmos as obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses – e o fato de, na verdade, sermos incapazes de, num certo sentido, interpretá-las de outra maneira – poderia ser uma das razões pelas quais certas obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos. (p. 17)
17.1 – Todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. (p. 17)
18 – [...] as afirmações sobre os fatos são afirmações que pressupõem alguns juízos questionáveis.
19 – Todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos outros.
20 – Podemos discordar disso ou daquilo, mas tal discordância só é possível porque partilhamos de certas maneiras “profundas” de ver e valorizar, que estão ligadas à nossa vida social, e que não poderiam ser modificadas sem transformarem essa vida. (p. 20)
21 – A estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Por “ideologia” quero dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. (p. 20)
22 – Se não é possível ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças. (p. 22)

22.1 – Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros. (p. 22) 

UMA ANTÍGONA NORDESTINA: NOTAS SOBRE A PEÇA TEATRAL "A REVOLTA DE ANTONINA"


NOTAS SOBRE A PEÇA TEATRAL A REVOLTA DE ANTONINA:

Antígona, a infeliz filha de Édipo, serviu de inspiração para que eu criasse Antonina – a sonoridade do nome e os fatos que constituem o enredo da peça evidenciam isto. Diferente da jovem grega, Antonina é uma sertaneja nordestina pobre, sem parente e aderente, que acabou de perder um filho e depara-se com a tirania de um coronel que a impede, por uma série de fatores, a sepultar seu morto querido. Três pontos nortearam minha escrita:

1) Decidi escrever esta peça em continuidade a uma ideia que tive de discorrer sobre o Cariri cearense em três obras realizadas em gêneros diferentes: poesia, teatro e romance. A primeira tem por título Romanceiro do Norte Juazeiro; a segunda é A Revolta de Antonina; a terceira é um romance ainda em processo de escrita e reescrita;

2) Antonina é uma personagem feminina que, como tantas outras mulheres nordestinas fadadas a viver sozinhas, pelas circunstâncias da vida, traz em si a força de resistir em meio a um espaço que exige da mulher, por vezes, não só força física, condição sine qua non para manutenção de sua sobrevivência, mas também força psicológica, para encontrar em si coragem de enfrentar o poder de indivíduos como o coronel Antenor, que manda e desmanda numa típica localidade do Cariri cearense;

3)  Antonina é uma personagem a quem eu devoto grande estima, porque nela estão reunidas várias mulheres fortes que me inspiraram, tanto as mulheres das obras literárias que li, quanto as mulheres com as quais convivi ao longo da vida  inclusive as de minha própria família. Ela, como toda boa mãe nordestina, atribui ao filho grande importância, porém o destino  ou as ações/reações da vida  fazem com que ela experimente o pior "bocado" que uma mãe poderia experimentar: a morte de um filho. E, para sepultá-lo, ela tem que buscar forças resguardadas em si para enfrentar, inevitavelmente, a mão de ferro de um coronel tirânico e sádico, vestido em pele de cordeiro. Então eu pergunto: será que ela consegue?

No mais, é isto! Espero que Antonina alcance seu objetivo e que o leitor / expectador compreenda suas dores e torne-se seu cúmplice. Lembremo-nos de que ela fala por quem, muitas vezes, não tem voz contra o poderio de gente desalmada.  

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A Revolta de Antonina. João Pessoa: Sal da Terra, 2015. 



FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "MIMESIS: A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NA LITERATURA OCIDENTAL", DE ERICH AUERBACH


AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses e Epílogo. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

EPÍLOGO

SOBRE A CATEGORIA ANALÍTICA

1 – O tema deste escrito, a interpretação da realidade através da representação literária ou “imitação”, ocupa-me há longo tempo. Parti originalmente da interrogação platônica no livro X da República, que coloca a Mimesis em terceiro lugar após a verdade, em relação com a pretensão de Dante de apresentar na Comédia a realidade verdadeira.
1.1 – Ao observar os vários modos de interpretação dos acontecimentos humanos nas literaturas europeias, meu interesse concentrou-se e precisou-se, desenvolvendo-se algumas ideias diretrizes que procurei perseguir. (p. 499)

QUE IDEIAS SÃO ESTAS?
  •       A primeira destas ideias refere-se à doutrina antiga, mais tarde retomada por toda corrente classicista acerca dos níveis da representação literária. (p. 499)
  •         [...] tanto durante a Idade Média toda como ainda no Renascimento, houve um realismo sério; tinha sido possível representar os acontecimentos mais corriqueiros da realidade num contexto histórico sério e significativo, tanto na poesia como nas artes plásticas; a doutrina dos níveis não tinha validez universal. (p. 500). [Auerbach denomina como figural a “visão da realidade da tardia Antiguidade e da Idade Média”].
  •       Tornou-se-me claro que o realismo moderno, da forma que se formou no começo do século XIX na França, realiza como fenômeno estético uma total solução daquela doutrina [antiga]; mais total e mais significativa para a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. (p. 499) [...] o realismo moderno [...] se desenvolveu [...] em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida. (p. 500)

2 – A visão da realidade expressa a partir das obras cristãs da tardia Antiguidade e da Idade Média é totalmente diferente da do realismo moderno. (p. 500)

SOBRE A PESQUISA

3 – A pesquisa fundamenta-se nessas três ideias estreitamente ligadas entre si, que deram forma ao problema original, mas que também lhe impuseram, evidentemente, limites mais estreitos. Naturalmente ela envolve uma variedade de outros motivos e problemas inerentes à abundância dos fenômenos históricos a serem tratados; contudo, a maior parte deles está de alguma forma ligada àquelas ideias e, em todo caso, recorre-se constantemente a elas. (p. 501)

SOBRE O MÉTODO

4 – Uma história sistemática e completa do Realismo não somente teria sido impossível, como também não teria servido à intenção, pois, devido às ideias diretrizes, o tema ficou delimitado de uma forma muito determinada; já não se tratava mais do Realismo em geral, mas da medida e espécie da seriedade, da problematicidade e da tragicidade no tratamento de temas realistas de tal forma que as obras meramente cômicas e que pertencem, indubitavelmente, ao âmbito do estilo baixo ficaram excluídas; só entraram em consideração ocasionalmente, como exemplo contrário, e, como tais, podiam ser apresentadas, por vezes, obras totalmente irrealistas de estilo elevado.
4.1 – Evitei ressaltar teoricamente e descrever sistematicamente a categoria das “obras realistas de estilo e caráter sérios” que, como tais, nunca foram tratadas em si, nem sequer reconhecidas; isto teria resultado, logo de início, num definir trabalhoso e cansativo [...] (pois nem sequer a expressão “realista é unívoca”), e eu provavelmente não teria podido me arranjar com uma terminologia desusada e rebarbativa.
4.2 – O método que adotei, isto é, o de apresentar, para cada época, uma certa quantidade de textos, para com base nos mesmos pôr à prova os meus pensamentos, leva imediatamente para dentro do assunto, de tal forma que o leitor chega a sentir do que se trata, antes que lhe seja impingida uma teoria. (p. 501)

SOBRE OS TEXTOS INTERPRETADOS

5 – O método de interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo campo de ação: pode escolher e dar ênfase como preferir. Contudo, aquilo que ele afirma deve ser encontrável no texto. (p. 501)
5.1 – As minhas interpretações são dirigidas, sem dúvidas, por uma intenção determinada; mas esta intenção só ganhou forma paulatinamente, sempre durante o jogo com o texto, e, durante longos trechos, deixei-me levar pelo texto.
5.2 – Os textos também são, em sua grande maioria, escolhidos ao acaso, muito mais graças ao encontro casual e à inclinação pessoal do que à intenção precisa.
6 – Cada capítulo trata de uma época; por vezes uma época relativamente curta, meio século, por vezes, também, uma época mais longa. (p. 502)

A CICATRIZ DE ULISSES

PARTE I

APRESENTAÇÃO DA CENA

1 – Os leitores da Odisseia lembrar-se-ão, sem dúvida, da bem preparada e emocionante cena do canto XIX, quando Ulisses regressa à casa e Euricleia, sua antiga ama, o reconhece por uma cicatriz na coxa. (p. 01)
2 – Tudo isto é relatado com exatidão e relatado com vagar. Num discurso direto, pormenorizado e fluente, ambas as mulheres dão a conhecer os seus sentimentos; não obstante tratar-se de sentimentos, um pouco mesclados a considerações muito gerais acerca do destino dos homens, a ligação sintática entre as partes é perfeitamente clara; nenhum contorno se confunde. (p. 02)
NOTA: No parágrafo seguinte, Auerbach discorre sobre a descrição da cena presente e da cena digressiva, que diz respeito à caça ao javali, ocasião em que Ulisses adquiriu sua cicatriz.
3 – O primeiro pensamento que acode ao leitor moderno, de que se pretende é aumentar a tensão, é, se não totalmente falso, pelos menos não decisivo para a explicação do processo homérico. Pois o elemento da tensão é muito débil nas poesias homéricas; elas não se destinam, em todo o seu estilo, a manter em suspenso o leitor ou ouvinte.
3.1 – O não preenchimento total do presente faz parte de uma interpolação que aumenta a tensão mediante o retardamento; é necessário que ela não aliene da consciência a crise por cuja solução se deve esperar com tensão, para não destruir a suspensão do estado de espírito; a crise e a tensão devem ser mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano.
3.2 – Só que Homero [...] não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. É o que acontece na passagem citada. (p. 03)
4 – Goethe e Schiller [...] se correspondiam [...] sobre o “elemento retardador” na poesia homérica em geral, e opunham-no diretamente ao princípio da “tensão” [...].
4.1 – O elemento retardador, o “avançar e retroceder” mediante interpolações, também a mim parece estar, na poesia homérica, em contraposição ao tenso impulso para uma meta.
4.2 – De certo Schiller tem razão quando diz que Homero descreve “meramente a tranquila existência e ação das coisas segundo a sua natureza”; a sua finalidade estaria “presente em cada um dos pontos do seu movimento”. Só que tanto Schiller quanto Goethe, elevam o processo homérico à categoria de lei da poesia épica em geral, e as palavras de Schiller, acima citadas, devem vigorar para o poeta épico em geral, em contraste com o trágico.
4.3 – Contudo há, tanto nos tempos antigos como nos modernos, obras épicas significativas escritas sem qualquer “elemento retardador”, no sentido de Schiller, mas de maneira claramente carregada de tensão, obras que, sem dúvida, “roubam a nossa liberdade emocional”, o que Schiller quer conceder exclusivamente ao poeta trágico.
4.4 – Mas a verdadeira causa da impressão de retardamento parece-me residir em outra coisa; precisamente, na necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado.
NOTA: A digressão é um traço comum em Homero, pois nada lhe foge à necessidade de descrever algo pormenorizadamente quanto à sua espécie e origem. Há nele, ainda, a necessidade de exteriorização dos fenômenos.
5 – Aqui, é a cicatriz que aparece no decorrer da ação; e não é possível para o sentimento homérico deixá-la emergir simplesmente da escuridão de um passado obscuro; ela deve sair claramente à luz, e com ela, um pouco da juventude do herói [...].
5.1 – [...] impulso fundamental do estilo homérico: representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpressivo. Sem reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros, falam para si, de modo a que o leitor o saiba. Acontecem muitas coisas na poesia de Homero, mas nunca tacitamente [...].
5.2 – Isto é válido, naturalmente, não só para os discursos, mas para toda a apresentação. Os diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara relação mútua; um número considerável de conjunções, advérbios, partículas e outros instrumentos sintáticos, todos claramente delimitados e sutilmente graduados na sua significação, deslindam as personagens, as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, e os põem simultaneamente, em correlação mútua, ininterrupta e fluente; tal como os próprios fenômenos isolados, também as suas relações, os entrelaçamentos temporais, locais, causais, finais, convêm à luz perfeitamente acabados; de modo que há um desfile ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre, de profundezas inexploradas. (p. 04)
6 – E este desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é, sempre em pleno presente espacial e temporal. Poder-se-ia acreditar que as muitas interpolações, o frequente avançar e retroceder, deveriam criar uma espécie de perspectiva temporal e espacial; mas o estilo homérico jamais dá esta impressão. (p. 05)
6.1 – A maneira pela qual é evitada esta impressão de perspectiva pode ser observada claramente no processo da introdução das interpolações, uma construção sintática que é familiar a todo leitor de Homero; utilizado em nosso trecho, é também encontrável em interpolações muito curtas. À palavra “cicatriz” segue-se imediatamente uma oração relativa (“que outrora um javali...”), a qual se expande num amplo parêntese sintático; neste introduz-se, inesperadamente, uma oração principal (“um deus deu-lhe...”), a qual vai se livrando silenciosamente da subordinação sintática, até que, com o verso 399, começa um novo presente [...].
6.2 – Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um segundo planos, de modo que o presente se abra na direção das profundezas do passado, é totalmente estranho ao estilo homérico; ele só conhece o primeiro plano, só um presente uniformemente iluminado, uniformemente objetivo; e assim, a digressão começa só dois versos depois, quando Euricleia já descobriu a cicatriz – quando a possibilidade da ordenação em perspectiva não mais existe, e a estória da cicatriz torna-se um presente independente e pleno. (p. 05)

PARTE II

A ODISSEIA E O VELHO TESTAMENTO

1 – A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico, surgido de um outro mundo de formas. Tentarei a comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta. (p. 05)
NOTA: Deus, que não explicita de onde fala, chama Abraão e ele responde: “Eis-me aqui!” Não se diz a posição dos interlocutores.
1.1  – De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito.
1.2 – A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro quando nos voltamos para o interior do outro interlocutor, Abraão. Onde ele está? Não o sabemos. Ele diz, contudo: “Eis-me aqui” – mas a palavra [...] não quer indicar o lugar real no qual Abraão se encontra, mas o seu lugar moral em relação a Deus que o chamara [...]. 
1.3 – Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, contudo, “aparece”), de algum lugar, só ouvimos a sua voz, e esta não chama nada além do nome: sem adjetivo, sem atribuir à pessoa interpelada um epíteto, como seria o caso em qualquer apóstrofe homérica. E também de Abraão nada é tornado sensível, afora as palavras com que ele replica a Deus: Hinne-ni, “Eis-me aqui” [...]. (p. 06)
2 – Após esta introdução, Deus dá sua ordem, e tem início a narração propriamente dita. Todos a conhecem: sem interpolação alguma, em poucas orações principais, cuja ligação sintática é extremamente pobre, desenvolve-se a narração. Aqui seria impensável descrever um apetrecho que é utilizado, [...] são servos, burro, lenha e faca, e nada mais, sem epítetos; têm de cumprir a finalidade que Deus lhes indicara; o que mais eles são, foram ou serão permanece no escuro. Uma viagem é feita, pois Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício; mas nada é dito acerca dessa viagem, a não ser que durara três dias, e mesmo isso é expresso de forma enigmática [...]
2.1 – Desta forma, a viagem é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisório, uma contenção do fôlego, um acontecimento que não tem presente e que está alojado entre o que passou e o que vai acontecer, como uma duração não preenchida, que é, todavia, medida: três dias! (p. 07)
3 – Na narração aparece uma terceira personagem importante, Isaac. [...] Ele pode ser belo ou feio, inteligente ou tolo, alto ou baixo, atraente ou repulsivo – nada disto é dito. Só aquilo que deve ser conhecido [...] para salientar quão terrível é a tentação de Abraão, e quão consciente é Deus desse fato.
3.1 – Observa-se com este exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos descritivos e as digressões da poesia homérica; com a sua alusão à existência restante da personagem descrita, aquilo que não é totalmente apreendido pela situação, à sua existência, por assim dizer, absoluta, eles impedem, mesmo no mais espantoso dos acontecimentos, o surgimento de uma tensão opressiva. Mas no caso da oferenda de Abraão, a tensão opressiva existe. O que Schiller queria reservar para o poeta trágico – roubar nossa liberdade de ânimo, dirigir numa só direção e concentrar as nossas forças interiores (Schiller diz “a nossa atividade”) – é obtido neste relato bíblico que, certamente, deve ser considerado épico. (p. 08)
4 – Encontramos o mesmo contraste quando comparamos o emprego do discurso direto. No relato bíblico também se fala; mas o discurso não tem, como em Homero, a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos. Antes pelo contrário: tem a intenção de aludir a algo implícito, que permanece inexpressão. Deus dá a sua ordem e discurso direto, mas cala seus motivos e intenções. (p. 08)
4.1 – A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao local do sacrifício não é senão uma interrupção do pesado silêncio, e serve apenas para torná-lo mais opressivo.
5 – Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo, dirigido com máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado de segundos planos. (p. 09)
5.1 – Falei [...] do estilo homérico como sendo de “primeiro plano”, porque, apesar dos muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único e puro, sem perspectiva. A observação do texto eloísta mostra-nos que a expressão pode ser empregada mais ampla e profundamente. Evidencia-se que até a personagem individual pode ser apresentada como carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Bíblia, [...] só “algo” dele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as profundidades.
5.2 – Mas os próprios seres humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos planos do que os homéricos; eles têm mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência. [...] seus pensamentos e sentimentos têm mais camadas e são mais intrincados. O modo de agir de Abraão explica-se não só a partir daquilo que lhe acontece momentaneamente ou do seu caráter (como o de Aquiles por sua ousadia e orgulho, o de Ulisses por sua astúcia e prudente visão), mas a partir da sua história anterior. Ele se lembra, tem permanente consciência do que Deus lhe prometera e do que já cumprira [...] é impossível para as figuras homéricas, cujo destino está univocamente determinado, e que acordam todo dia como se fosse o primeiro, cair em situações internas tão problemáticas. As suas emoções são violentas, convenhamos, mas são também simples e irrompem de imediato. (p. 09)
6 – Os poemas homéricos, cuja cultura sensorial, linguística e, sobretudo, sintática, parece ser tanto mais elaborada, são, contudo, na sua imagem do homem, relativamente simples; e também o são, em geral, na sua relação com a realidade da vida que descrevem. A alegria pela existência sensível é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos alegria. (p. 10)
6.1 – Neste mundo “real”, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto, não há tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas homéricos nada ocultam, neles não há nenhum ensinamento e nenhum segundo oculto. É possível analisar Homero, como o tentamos aqui, mas não é possível interpretá-lo. (p. 10)
7 – A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e Euricleia; ambas são lendárias. Só que o narrador bíblico, o Eloísta, tinha de acreditar na verdade objetiva da história da oferenda de Abraão. [...] Tinha de acreditar nela apaixonadamente – ou então, deveria ser, como alguns exegetas iluministas admitiram ou, talvez, ainda admitem, um mentiroso consciente, não um mentiroso inofensivo como Homero, que mentia para agradar, mas um mentiroso político consciente das suas metas, que mentia no interesse de uma pretensão à autoridade absoluta.
7.1 – Esta visão iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas mesmo se a levarmos em consideração, a relação entre narrador bíblico e a verdade do seu relato permanece muito mais apaixonada, muito mais univocamente definida, do que a de Homero. (p. 11)
7.2 – Tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na verdade da tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu interesse na verossimilhança – seja como for, a sua fantasia inventiva ou descritiva estava estreitamente delimitada. Sua atividade devia limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradição devota. [...] Ai de quem não acreditasse nela! (p. 11)
7.3 – A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo.
7.4 – Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar, e se nos negamos a isto, então somos rebeldes. (p. 12)
7.5 – Não se queira objetar que isto é ir demasiado longe, que não é o relato, mas a doutrina religiosa que apresenta estas pretensões, pois os relatos justamente não são, como os de Homero, mera “realidade” narrada. Neles encarnam-se doutrina e promessa indissoluvelmente fundidas; precisamente por isso têm um caráter recôndito e obscuro, contêm um segundo sentido, oculto. (p. 12)
8 – Os poemas homéricos fornecem um complexo de acontecimentos preciso, espacial e temporalmente delimitado; independente dele, concebem-se tranquila e facilmente outros complexos anteriores, simultâneos e posteriores. O Velho Testamento, porém, fornece história universal; começa com o princípio dos tempos, com a criação do mundo, e quer acabar com o fim dos tempos, com o cumprimento da promessa, com a qual o mundo deverá encontrar o seu fim. (p. 13)
9 – O Velho Testamento é incomparavelmente menos unitário na sua composição do que os poemas homéricos, é mais evidentemente feito de retalhos – mas cada um deles pertence a um contexto histórico-universal e interpretativo da história universal. (p. 13 – 14)
10 – Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas, encarna-se um momento da mencionada ligação vertical. Deus escolheu e moldou estas personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua vontade – mas a eleição e a modelagem não coincidem; esta última realiza-se paulatinamente, de maneira histórica, durante a vida terrena dos escolhidos.
10.1 – Na história do sacrifício de Abraão vimos como isto ocorre, que terríveis provas envolve uma tal modelagem. Daí decorre o fato de as grandes figuras do Velho Testamento serem mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua própria história vital e mais cunhadas na sua individualidade do que os heróis homéricos. (p. 14)
10.2 – Aquiles e Ulisses são descritos magnificamente, por meio de muitas e bem formadas palavras, carregam uma série de epítetos, suas emoções manifestam-se sem reservas nos seus discursos e gestos – mas eles não têm desenvolvimento algum e a história das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os heróis homéricos estão tão pouco apresentados no seu desenvolvimento presente e passado que, na sua maioria, [...] aparecem com uma ideia pré-fixada.  (p. 14)
10.3 – [...] Penélope pouco mudou nesses vinte anos; no caso do próprio Ulisses, [...] Ulisses é, quando regressa, exatamente o mesmo que abandonara Ítaca duas décadas atrás. (p. 14)
10.4 – [Aos heróis homéricos...] As estes, o tempo só pode afetar exteriormente, e mesmo isto é evidenciado o menos possível; em contraste, as figuras do Velho Testamento estão constantemente sob a férula de Deus, que não só as criou e escolheu, mas continua a modelá-las, dobrá-las e amassá-las, extraindo delas, sem destruir a sua essência, formas que a sua juventude dificilmente deixava prever.
10.5 – Humilhação e exaltação são muito mais profundas ou elevadas do que em Homero, e, fundamentalmente, andam sempre juntas. O pobre mendigo Ulisses não é senão um disfarce, mas Adão é real e totalmente expulso, Jacó é realmente um fugitivo e José é realmente lançado num poço e, mais tarde, realmente vendido como escravo. Mas a sua grandeza, que se eleva da própria humilhação, é próxima do sobre-humano e é, também, um reflexo da grandeza divina. (p. 14)
11 – Homero permanece, com todo o seu assunto, no lendário, enquanto que o assunto do Velho Testamento, à medida que o relato avança, aproxima-se cada vez mais do histórico; na narração de Davi já predomina o relato histórico. Ali também há ainda muito de lendário, como, por exemplo, os relatos de Davi e Golias; só que muito, a bem dizer o essencial, consiste em coisas que os narradores conhecem por experiência própria ou através de testemunhos imediatos. (p. 15)
11.1 – [...] é fácil, em geral, separar a lenda da história. A sua estrutura é diferente. Mesmo quando a lenda não se denuncia imediatamente pela presença de elementos maravilhosos, pela repetição de motivos conhecidos, pelo desleixo na localização espacial e temporal, ou, por outras coisas semelhantes, pode ser reconhecida rapidamente, o mais das vezes, por sua estrutura. Desenvolve-se de maneira excessivamente linear.
11.2 – Tudo o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante, secundário, que se insinua nos acontecimentos e motivos principais, todo o indeciso, quebrado e vacilante, tudo o que confunde o claro curso da ação e a simples direção das personagens, tudo isso é apagado. A história que presenciamos, ou que conhecemos através de testemunhos de contemporâneos, transcorre de maneira muito menos uniforme, mais cheia de contradições e confusão; só quando, numa zona determinada, ela já produziu resultados, podemos com sua ajuda, ordená-los de algum modo; e quantas vezes a ordem que assim achamos ter obtido, torna-se novamente duvidosa, quantas vezes nos perguntamos se aqueles resultados não nos levaram a uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido! (p. 16)
12 – A lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão com o mundo, de modo que este não pode intervir de maneira perturbadora; ela só conhece homens univocamente fixados, determinados por poucos e simples motivos cuja integridade de sentimentos e ações não pode ser prejudicada. (p. 16)
12.1 – Escrever história é tão difícil que a maioria dos historiadores vê-se obrigada a fazer concessões à técnica do lendário. (p. 17)
13 – [...] a passagem do lendário para o relato histórico [...] falta totalmente nas poesias homéricas. (p. 17)
13.1 – [...] não deixa de ser natural que, mesmo nas partes lendárias do Velho Testamento, seja frequente a aparição de estruturas históricas; naturalmente não no sentido de que a tradição seja examinada quanto à sua credibilidade de maneira científico-crítica; mas meramente de tal forma que não predomina no mundo lendário do Velho Testamento a tendência para a harmonização aplainante do acontecido, para a simplificação dos motivos e para fixação estática dos caracteres, evitando conflitos, vacilações e desenvolvimento, como é próprio da estrutura lendária.
13.2 – Abraão, Jacó ou Moisés, têm um efeito mais concreto próximo e histórico do que as figuras do mundo homérico, não por estarem melhor descritos plasticamente – pelo contrário – mas porque a variedade confusa, contraditória, rica em inibições dos acontecimentos internos e externos que a história autêntica mostra não está desbotada na sua representação, mas está ainda nitidamente conservada. (p. 17)
13.3 – Aqui interessa-nos sobretudo como se dá, nos relatos davídicos, a transição imperceptível só reconhecível pela crítica científica posterior, do lendário para o histórico; e, como, já no lendário, se apreende apaixonadamente o problema da ordem e da interpretação do acontecer humano, um problema que, mais tarde, explode os limites da Historiografia, sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, o Velho Testamento, enquanto se ocupa do acontecer humano, domina todos os três âmbitos: lenda, relato histórico e teologia histórica exegética. (p. 18)
14 – Com isto [...] relaciona-se também o fato de o texto grego parecer também mais limitado e mais estático com referência ao círculo das personagens atuantes e da sua atividade política. (p. 18)
14.1 – Com isto chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só se desenvolve na classe senhorial – tudo o que porventura viva além dela só participa de modo serviçal. A classe senhorial é ainda patriarcal, tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida econômica, que às vezes se chega a esquecer seu caráter de classe. [...] Como estrutura social, este mundo é totalmente imóvel; as lutas só ocorrem entre diferentes grupos das classes senhoriais; de baixo, nada surge.
14.2 – Nos relatos patrísticos do Velho Testamento predomina, também, a constituição patriarcal, mas como se trata de chefes de família isolados, nômades ou seminômades, o quadro social parece menos estável, não se sente a formação em classes. (p. 18)
15 – A historicidade e mobilidade social mais profundas dos textos do Velho Testamento relacionam-se, finalmente, com mais uma última diferença significativa: delas surge um conceito de estilo elevado e de sublimidade diferente do de Homero. Este certamente não receia inserir o quotidiano e realista no sublime e trágico; tal receio seria estranho a seu estilo e inconciliável com ele.
15.1 – Vê-se no nosso episódio da cicatriz, como a cena do lava-pés, pintada aprazivelmente, é entretecida na grande, significativa e sublime cena da volta ao lar.
15.2 – Isto está longe, ainda, daquela regra da separação dos estilos que mais tarde se imporia quase por completo, e que estabelecia que a descrição realista do quotidiano era inconciliável com o sublime, e só teria lugar no cômico ou, em todo caso, cuidadosamente estilizado, no idílico. E contudo, Homero está mais perto dela do que o Velho Testamento. (p. 19)
15.3 – [...] os grandes e sublimes acontecimentos ocorrem nos poemas homéricos muito mais exclusiva e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senhorial; estes são muito mais intatos na sua heroica sublimidade do que as figuras do Velho Testamento, que podem cair muito mais profundamente na sua dignidade [...]; e, finalmente, o realismo caseiro, a representação da vida quotidiana, permanecem sempre, em Homero, no idílico-pacífico – enquanto que, já desde o princípio, nos relatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e problemático se formam justamente no caseiro e quotidiano: acontecimentos como os que ocorre entre Caim e Abel [...] não são concebíveis no estilo homérico. (p. 19)
15.4 – Nos relatos do Velho Testamento [...] surgem complicações inconcebíveis para um herói homérico. Para estes, é necessário um motivo palpável, claramente exprimível, para que surjam conflito e inimizade, que resultam em luta aberta; enquanto que naqueles, o lento e constante fogo dos ciúmes e a ligação do doméstico com o espiritual [...] conduzem a uma impregnação da vida quotidiana com substância conflitiva e, frequentemente, ao seu envenenamento.
15.5 – A sublime intervenção divina de Deus age tão profundamente sobre o quotidiano que os dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas efetivamente inseparados mas, fundamentalmente, inseparáveis. (p. 19)
16 – Comparamos os dois textos e, ao mesmo tempo, os dois estilos que encarnam, para obter um ponto de partida para os nossos ensaios sobre a representação literária da realidade na cultura europeia. Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação do devir histórico e aprofundamento do problemático. (p. 20)
17 – Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e o do Velho Testamento, como pontos de partida, admitimo-los como acabados, tal como se nos oferecem nos textos; [...] foi em seu pleno desenvolvimento alcançado em seus primórdios que esses estilos exerceram sua influência constitutiva sobre a representação europeia da realidade. (p. 20)