terça-feira, 30 de agosto de 2022

FRATERNIDADE NA JAULA



Tempero de dor

e sal na ferida?

Mas passará logo...

 

Cratera na estrada


e pedra de ponta?

 

Mas passará logo...

 

Velório do sono


em cinzas de faca?

 

Mas passará logo...

 

Janela de sangue


em grito engolido?

 

Mas passará logo.

 


Émerson Cardoso

26/10/2020

 

NOTAS SOBRE O PROFESSOR GILMAR DE CARVALHO

Foto Divulgação

A primeira vez que vi o Professor Gilmar de Carvalho foi no Memorial Padre Cícero. Chamou minha atenção a capacidade dele de ser grandioso em suas palavras e, ao mesmo tempo, simples. Na ocasião, alguém comentou que ele era um dos maiores pesquisadores das tradições populares e eu constatei isso quando, ainda na graduação em Letras, li capítulos de Madeira Matriz – Cultura e Memória (1999) e o livro Patativa do Assaré (2000).

Depois, o reencontrei quando passei uma temporada em Fortaleza, entre junho e julho de 2010. Ele estava no Museu do Ceará. Foi a primeira vez que eu falei pessoalmente com ele. Foi a primeira vez que eu entrei no Museu do Ceará.  

Lembro-me de que ele estava um tanto apressado, mas meu primo o conhecia e apresentou-nos. Mesmo apressado, ele me deu atenção. Comentei que estava escrevendo uma espécie de Romanceiro que contava em poesia a História de Juazeiro do Norte, minha cidade, que decidi escrever após uma recomendação de Ariano Suassuna (a quem conheci e entrevistei em dezembro de 2009).

Ele me disse, na ocasião, que eu escrevesse esse Romanceiro, sim, e que poderia contar com ele para uma leitura e até para um prefácio. Fiquei irradiante, porque era uma deferência receber esse incentivo de uma personalidade que nós, estudantes e escritores do Cariri, já conhecíamos pela ampla pesquisa acadêmica realizada por ele em torno da Cultura Popular.  

Por timidez, não enviei o texto. Lamento até hoje por esse gesto de insegurança literária. Resolvi publicá-lo, para meu grande arrependimento, em 2014. Ele ainda estava incipiente. Se eu o tivesse enviado para apreciação do Professor Gilmar de Carvalho, ele talvez tivesse me dado as orientações necessárias para torná-lo um livro apresentável. Uma pena ter perdido essa oportunidade.

A terceira vez que nos encontramos foi no Passeio Público. Eu almoçava quando o vi chegar acompanhado de um amigo. Pensei em cumprimentá-lo, mas tive receio. Não queria incomodá-lo naquele horário de almoço. Se eu fosse falar com ele, meu gesto poderia ser interpretado como indiscrição. Lembro-me de que, na ocasião, olhei para ele várias vezes, mas não quis, por timidez, falar com ele. Quando eu saí, no entanto, fui até ele e o cumprimentei. Ele foi muito atencioso. Conversamos um pouco e fui embora. Nunca mais o vi pessoalmente.

Quem me apresentou o Professor Gilmar de Carvalho, em verdade, seja pelos textos que produziu, seja pelos depoimentos apresentados, foi João Pedro do Juazeiro. Este cordelista e xilógrafo, cuja obra fala por si em valor e criatividade, apresentou o melhor dessa figura emblemática que eu passei a admirar mais profundamente.

Para João Pedro do Juazeiro, o Professor Gilmar de Carvalho é mentor, padrinho artístico e mestre. Para ele, não seria possível pensar a arte que produz sem compreendê-la a partir da apreciação e incentivo oferecidos por esse grande entusiasta das artes do povo. Lendo os textos de João Pedro do Juazeiro (que escreveu sobre seu mestre cordéis, memórias, relatos de experiência etc.), eu acessei a alma desse pesquisador, jornalista, professor, escritor cuja alma transborda em riqueza de caráter e em generosidade.

Hoje, 30 de agosto de 2022, o Professor Gilmar de Carvalho faria aniversário. É triste pensar que ele, um baluarte da Cultura, da Educação e da Ciência desse país, foi embora. Temos por certo que, em sua ausência, permanecerá seu trabalho e seu exemplo. O Ceará, o Nordeste e o Brasil têm, nessa figura de relevo, um guardião da memória e, tenho por certo, a sua ausência física não o impedirá de fazer por nós o que ele sempre fez: abrir portas e acender luzes para quem a ele estende a mão.

Parabéns, Professor Gilmar de Carvalho!

 Émerson Cardoso

30. 08. 2022

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

COMO RESPONDER À ALTURA (ou: quem tem medo de neuróticos que têm Marte em Escorpião?)

 


Já aconteceu de você ficar muito alegre com algo, a ponto de externar excessivas euforias, e isso incomodar alguém? Comigo já aconteceu. A pessoa, no auge de seu desconforto, atirou sobre mim o seguinte ditado popular: “Pobre nunca come e, quando come, se lambuza!”

 

Quem me visse naquele momento perceberia meu rosto caindo em nublação. O sol deveria ter mais força do que uma nuvem amarga, mas nem sempre isso acontece. A vida é repleta de nuvens entre permanentes ou passageiras que se comprazem em espalhar obscuridades porque não suportam luzes.

 

Que horror!

 

Hoje, se alguém atirasse contra minha alegria esse maldito ditado popular, eu teria resposta daquelas, bem desaforadas, aí eu queria ver uma nublaçãozinha chinfrim me apagar. Você ficou com curiosidade sobre o que eu diria para me defender?

 

A uma criatura amarga que desejasse botar gosto ruim em minha alegria, eu diria o seguinte:

 

Resposta 01 – Quem ouve você falando assim pode até pensar que você é, foi ou será rico um dia na vida. Agora, como percebi que você gosta da sabedoria popular, devo dizer que: “Quem nasce para burro não pode ser cangalha”. Tem mais: há uma coisa que eu gostaria de saber: quem foi o informante charlatão que disse a você que me interessa ouvir o som de sua voz irritante e insossa?

 

Resposta 02 – Gente, olha a sabedoria popular dessa pessoa como está aflorada! O que foi? Tomou café adoçado com amargura, ou constatou que sua vida insignificante não tem graça e por isso quis tirar minha alegria?

 

Resposta 03 – O que foi? Só porque você tem uma existência vazia e sem graça não suporta ver uma pessoa de bem com a vida? Procura tratamento, cruz pesada! Se não der certo com psicólogos, procura um exorcista, viu?

 

Resposta 04 – Sim, pessoa iludida da nação, pobre se lambuza, sim, faz festa, faz o que quiser, ainda mais quando é uma pessoa tão leve que atrai alegrias para si e para os outros. Posso fazer um tutorial de como ser alegre para você, viu? Isso se um dia você decidir deixar de ser chata e estraga-prazeres.

 

Resposta 05 – Sério mesmo que você (pessoa pobre em nível cinco) se sente no direito de vomitar uma frase dessas contra mim? Quando você não for mais pobre, ou se tornar uma pessoa menos invejosa e infeliz, aí conversamos, viu? Vai pelo sol, hein, quem sabe um dia ele derrete essa nuvem carregada que você tem na cabeça!

 

Coloquei apenas cinco respostas quando, em verdade, teria muitas outras. Quando estou chateado com algo, me torno irônico. Isso massacra algumas pessoas. Um amigo me disse, outro dia, que minhas ironias, ou meu rebuscamento na hora de brigar, não parecem muito eficazes. Nem sempre meus arqui-inimigos (que não tenho) entendem o desaforo que penso atirar contra eles. Talvez esse amigo tenha razão.

 

Um meio que utilizo há séculos, quando não gosto de algo ou de alguém, é demonstrar meu descontentamento com afastamentos, ou mesmo ignorando a presença. Talvez seja um bom caminho. O bom mesmo, em verdade, é jogar contra os vilões um desaforo bem articulado e sair de perto, plenamente, depois de ter dito o que se queria dizer. Mais interessante será, tenho por certo, perceber que o desafeto ficou para trás com cara de mal-estar na tentativa vã de entender o que foi dito.

 

Ah! Quem quiser entender desaforo bem construído que estude.  

 

Émerson Cardoso

15.08.2022