terça-feira, 27 de dezembro de 2016

LEITURA: TRECHO DE "O PENTÁGONO DE HAHN", DE OSMAN LINS



“Caiu um poste ou quebrou-se o gerador. Faltou luz na cidade. Das ruas que vêm ter à praça continuavam a chegar pequenos grupos. Desarmado o circo, tudo já seguira, de trem ou nos dois degraus da igreja, nas cornijas, nos fios, nos telhados. Mãos para trás, eu entre os da turba, olhos na tromba erguida para a lua cheia. Queríamos saudar a elefanta pela última vez. Faróis de bicicletas se enovelavam no ar empoeirado, laçando a multidão. Entre as sombras, vi o rosto de Armando, seu ar perdido, os olhos etéreos, a mão direita sobre o paletó. Não fora olhar para Hahn; queria ver o pátio enluarado. Aprecia o luar. Com a lua, não vê o monturo, as paredes sujas, as caras dos bêbados. Um pouco de esforço, e descobre um fiorde. Ou algum dos bichos que continuava a inventar nos seus óleos. Havia qualquer coisa de antigo ritual na multidão que marchava lentamente. Alguém cantava a marcha da Aída, para nós já familiar. Outras vozes, aos poucos, juntaram-se àquela voz iniciadora. Onde li o caso do elefante que, durante doze anos – sim, doze – viajou sozinho através da baía de Bengala, de ilha em ilha, percorrendo centenas de quilômetros? Que procurava? E há quanto ando eu nesta cidade, golfo de consternação, perseguindo o que talvez não exista? Duas jovens, à minha frente, levavam ramos de árvores erguidos. Fome de dar-lhes o braço, extraviar-me em sua companhia, cantando como os outros. Iriam quantas mulheres, além delas? Não haveria, entre todas, nenhuma ao mesmo tempo real e fictícia, para dissipar a invisível nuvem que me separava da vida? Nenhuma? Exclamei com voz rouca: “Adeus, Hahn!”. Não sabia, ao certo, de que profundo bem, de que essencial esperança me desapossava. As moças dos ramos de árvore, sorrindo, olharam para trás. Envergonhado, adentrei-me num beco. Mais uma vez, sem rumo, uivando dentro de mim, ganhei as ruas adormecidas”.

LINS, Osman. Nove, novena – narrativas. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 58 - 59.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

FELIPE D'CASTRO - ALGUNS POEMAS DE UM TALENTO INCONTESTE



Felipe D'Castro é um poeta paraibano que desenvolve poemas notáveis - tanto pelo trabalho com a linguagem, quanto pelas temáticas que explora! Imagens bem delineadas, fruto da compreensão de mecanismos que podem estruturar o poema artisticamente engendrado, são recorrentes em sua poesia. A grandeza de seu talento pode ser confirmada pelos textos que colhi do seu perfil do facebook e copiei aqui, neste blog, que tem a pretensão de divulgar e, mais que isto, homenagear esse jovem poeta com sensibilidade artística inconteste. 

O primeiro deles é o meu preferido. Não digo o preferido dentre os que esse poeta escreveu, mas o meu preferido dentre os poemas que já li na vida. Felipe D'Castro, que tive o privilégio de conhecer e conviver numa época feliz de minha existência, precisa ser reconhecido e apreciado, afinal é de grandes artistas que precisamos neste mundo conturbado e ainda pouco afeito à beleza e à sensibilidade artística.

A FARDA
(Felipe D'Castro)



a farda não
veste a palavra
porque dela foge como
o sol da noite
quando entarda

cubo de gelo decerto
degela se penetrada
a farda, que não é roupa
mas jaula

a farda não fala
mas cala a língua e
empala a cor, o brilho
a onda batendo no olho

a farda, assim perto
não é farda
mas ferrolho.


 RETRATO
(Felipe D'Castro)

o céu manchado
de jambo aberto
[rinocerontes também
sonham algodão]
a boca dela
abrindo-se corola
a hora aberta
em um alçapão
/
o braço dele
caverna quente
a tarde ainda
vermelhidão
a praça a asa
abraça os dois
o amor acaba
carmim e não:

AOS TEUS PÉS
(Felipe D'Castro)

um poema
para amamentar a noite
e adotar estrelas
um poema
para ecoar tambores
dentro das costelas
um poema
para guardar a praia
dentro da concha
um poema
que lembre os teus pés
sobre o lençol da cama

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

CRÔNICA NADA APOLOGÉTICA À "pec - 55" (OU: "SANTA LUZIA, ROGAI POR NÓS!")


Acontece que no dia 13 de dezembro de 2016 a "pec - 55" foi aprovada. Vinte anos! Acontece que eu sou deslocamento, inadequação, estranhamento ante o ser-estar em mim. Vinte anos... E aqui em casa comemoravam o aniversário de minha mãe. Vinte anos? Luiz Gonzaga nos honrou com seu nascimento nesta data. O "ai - 5" foi imposto em 13 de dezembro de 1968. Santa Luzia está em pauta para os católicos. 

Santa Luzia, que nossos olhos se abram! Mártir benevolente, restitui o dom de ver destes brasileiros deitados eternamente em berço nada esplêndido, porque tiraram de nós vinte anos de possibilidades. Luiz Gonzaga nunca fez canção para Santa Luzia? Minha mãe é de sagitário e é complicada e é generosidade e é impulso e é dramática. Santa Luzia, por que tão distante estou de minha mãe quando com ela estou? 

O "brasil" morre um pouco hoje, ó vida e seus percalços! O "brasil" morre e eu estou sem chão. Mas sem chão aprendemos a voar? Não sejamos otimistas... Santa Luzia, como olhar para mim mesmo nesta data querida-não-querida? 

Diz o ditado popular que: "Ingratidão tira afeição!" Diz a vida que as decisões tomadas podem ser cruéis quando pouco sensatas. Vida, quem te obrigou a respirar por mim? Se eu vim para cá com a sensação de que não queria ser-estar, vida, por que me foi dado o dom maior de todos? Viver, vida, me entorpece e amplia: sinto novos espaços e tempos com minhas mãos feridas.

Estou num lugar que não é meu, num tempo que não é meu, num mundo que não é meu. Luiz Gonzaga, cante algo que me faça esquecer que sou. Santa Luzia, ilumina caminhos para que meus olhos não se ofusquem com a escuridão. Mãe, queria saber novas roupagens para a sensação de desamparo que despertaste em mim. Vida, que tenho eu para viver no amanhã que já nem sei? 

Danço alguma música triste que me dá o tom e a força. Acontece que no dia 13 de dezembro de 2016 a "pec - 55" destruiu minhas sandálias. Minhas mãos vazias imploram por perdão por aqueles que destruíram nossa paz. Não seria melhor estender as mãos pedindo armas? Mas a paz que busco, e que julgo encontrar no olhar perdido de uma criança triste, me impele a dizer que não... Santa Luzia, por favor, carecemos de novas luzes... O "brasil" está sem olhos! Luiz Gonzaga, não posso respirar, não posso mais nadar... 

E o fluxo que me invade dói com dor renitente - tenho medo e fecho os olhos. Adeus, 13 de dezembro de 2016. Que meus olhos nunca mais te vejam. Mãe, quem sabe um dia a gente possa comemorar de fato seu aniversário! 

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

RESENHA CRÍTICA: "O LEITOR", DE STEPHEN DALDRY




O LEITOR. Direção de Stephen Daldry. Produção: Anthony Minghella, Sydney Pollack, Donna Gigliotti e Redmond Morris. Elenco: Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross. Estados Unidos: 2008. Filme (123 min), DVD.

No filme O Leitor (2008), de Stephen Daldry – que rendeu a Kate Winslet, vivendo a personagem Hanna Schmitz, os mais importantes prêmios cinematográficos de 2009 –, uma personagem feminina é julgada e condenada por seus crimes contra a comunidade judaica. O enredo conduz-nos a acompanhar o drama desta personagem e compreender que ela, quando em Auschwitz, foi condicionada a cumprir ordens sem pensar sobre seus atos, muito menos questioná-los. Este filme é baseado na obra de mesmo título do escritor alemão Bernhard Schlink, publicada em 1995.
A propósito do enredo, O Leitor é constituído por flashbacks que retomam a história de Michael Berg e sua relação amorosa com a personagem Hanna Schmitz, ocorrida no verão de 1958. Entre leituras d’A Odisseia, de Homero, e d’A dama do cachorrinho, de Tchekhov, Hanna e Michael vivenciam uma relação afetiva que os aproximam intensamente, até que Hanna, após ser promovida em seu local de trabalho, desaparece sem informá-lo de seu paradeiro.
Michael havia conhecido Hanna aos quinze anos, quando ela lhe prestou auxílio por ocasião de um problema de saúde. Apesar da diferença de idade, eles passam a viver uma relação afetiva que representa para Michael a descoberta do amor e de sua sexualidade. Com o desaparecimento de Hanna, Michael retoma sua vida e entra para a faculdade de Direito, ocasião em que conhece uma colega de curso com quem tem uma filha. Neste mesmo período, durante um estágio num tribunal, ele é instigado por seu professor a participar do julgamento de ex-guardas dos campos de concentração de Auschwitz, que seriam julgadas por terem participado da “marcha da morte”, em 1944, e por terem sido responsáveis, numa igreja da Cracóvia, pela morte de 300 judias que foram incendiadas. 
Michael reencontra Hanna, sua antiga amante, entre as mulheres que estavam no banco dos réus. Somos informados de que Hanna, ao escolher as mulheres que iriam morrer no campo de concentração, optava pelas mais jovens, aparentemente as de aspecto doentio e frágil, a quem ela protegia e para as quais ela pedia que realizassem leituras. Ao conhecer Michael, foi exatamente assim que Hanna procedeu: em seu primeiro contato com o rapaz ela o auxiliou, o protegeu e, após o estreitamento da relação, ela pedia que ele também realizasse leituras.
No julgamento, a acusação mais grave recai sobre Hanna, que tinha sido uma mera guarda, mas que na ocasião é acusada de estar no comando do grupo responsável pela morte das 300 judias incendiadas na igreja. Ela é acusada, neste caso, de ter escrito o relatório que comprovaria sua participação no comando da ação e, consequentemente, de ser responsável, mais que as demais, de exterminar as mulheres.  
As demais acusadas são condenadas a quatro anos e seis meses de prisão, mas Hanna, que assume a autoria do relatório, é condenada à prisão perpétua. Michael, no entanto, detém uma informação que poderia salvá-la da acusação. Esta informação, porém, é um segredo que Hanna não quer revelar a ponto de submeter-se à punição para mantê-lo escondido. Isto leva Michael a passar por uma severa crise moral. O que fazer: 1) permitir que Hanna se entregue à prisão perpétua, mas ser fiel a ela e assegurar-lhe que seu segredo será resguardado, ou 2) revelar seu segredo ao tribunal e, assim, libertá-la da prisão perpétua, mesmo que isto contrarie seu desejo e atente, de algum modo, contra sua dignidade?
Michael opta, como podemos constatar, pelo silêncio. Ele respeita sua antiga amante, aceita sua decisão de não relutar ante a condenação e retoma sua vida. Isto coaduna com o que Hanna diz, em determinada ocasião: “Não importa o que sentimos, mas o que fazemos”. Michael sofre com a ideia de que, para ser fiel ao desejo de sua ex-amante, se viu obrigado a silenciar quando seu testemunho poderia salvá-la.
Alguns anos após, Michael decide gravar fitas em que ele realiza leituras e as envia para Hanna, que tenta manter contato com Michael, em 1976, porém não recebe resposta. Em 1988, quando Hanna consegue a concessão para sair do presídio, e Michael é informado de que ela será liberta, há um reencontro entre eles – talvez seja uma das cenas mais pungentes do filme. Ela constata que seu grande amor não é mais o mesmo. Sua condição de ex-presidiária, sua velhice e seu crime representavam barreiras intransponíveis entre ela e o amado, que decide auxiliá-la em sua tentativa de retomar a vida, mas ela realiza um ato desesperado antes de sair do presídio.  
Hanna pede, em dado momento, que Michael entregue um dinheiro, que ela guarda numa lata velha, às sobreviventes do incêndio da igreja. Ele encontra-se com uma delas, entretanto esta aceita apenas a lata e recusa o dinheiro. Quando Michael pergunta se poderia utilizar o dinheiro para alguma entidade direcionada à comunidade judaica, ela afirma, em tom arrogante e magoado, revestido de lembranças amargas e de sofrimento, que ele faça o que quiser com o dinheiro, e que judeus nunca precisaram de auxílios como os que ele propõe.   
Hanna é uma personagem densa. Talvez a mais complexa das personagens a que Kate Winslet emprestou seu talento. Por trás da ação monstruosa que a fez partícipe do extermínio dos mais de seis milhões de judeus, em campos nazistas, acontecimento histórico que não pode ser esquecido, e repetido, há uma mulher que traz um limite que a torna tão vulnerável quanto fragilizada. 
Para manter seu segredo, ela perde o amor de sua vida, é condenada à prisão perpétua e é humilhada pela filha da judia que ela, no passado, quase exterminou. Hanna é uma personagem contida, independente e solitária. Vivencia, sem crises morais, um envolvimento afetivo-amoroso com um rapaz mais jovem – na cena do restaurante ela é confundida com a mãe dele. Ela traz em si, todavia, sentimentos de culpa que a tornam infeliz – a cena da igreja, em que ela observa crianças a cantar, remete-a ao crime cometido, por isto o choro incontido cuja motivação Michael desconhece. 
Além disso, ela é uma personagem cujo caráter prático, racional, faz com que ela renuncie ao amor e à liberdade para que, desse modo, seja resguardado aquilo que mais a torna vulnerável. Seu segredo parece-lhe algo vergonhoso demais para que ela possa assumir para si, e para o mundo, sem que isto a destrua em sua dignidade.
Quanto ao trabalho no campo nazista, Hanna interpela um dos advogados que a acusa perguntando-lhe sobre o que ele teria feito se estivesse em seu lugar. Ela argumenta que havia uma vaga de guarda do campo nazista, que pleiteou a vaga e conseguiu o cargo tendo, obviamente, que cumprir ordens. Mais uma vez vem à tona a frase que anteriormente apontamos: “Não importa o que sentimos, mas o que fazemos”. Apoiada nisto, ela realiza os atos que a levam ao tribunal – não sem sentimento de culpa, como apreendemos de seu último gesto –, ela envia o dinheiro para a filha da sobrevivente do campo nazista (que ela reencontrara no tribunal) e comete suicídio (gesto simbólico de autopunição). 
Esse filme instiga-nos a vários questionamentos: até que ponto alguém é capaz de guardar um segredo? Renunciar ao amor e a uma vida é coerente quando vivê-los implica na exposição de um segredo que nos humilha? Que vida alguém pode ter após destruir tantas outras vidas? Quem pode livrar-se da culpa, quando a existência aponta-nos para as consequências de nossas ações impensadas e realizadas no irremediável?
Michael, por sua vez, também é uma personagem complexa. Ele passa sua vida inteira preso às lembranças da mulher com quem ele descobriu as vicissitudes do amor. Em algumas cenas, percebemos sua incapacidade de permanecer na cama com uma mulher após relacionar-se sexualmente com esta. Sua primeira amante deixou nele lembranças intensas demais para que ele consiga retomar a vida sem recordar-se de que ela existiu.
A cena em que Michael e sua filha Júlia vão ao túmulo de Hanna, em 1995, ocasião em que ele passa a contar para ela quem era aquela mulher sobre quem ele nunca falou, parece-nos uma tentativa de libertar-se, também ele, da culpa de não tê-la absolvido, com seu testemunho, da condenação. Ou mesmo da culpa de ter dado continuidade à vida – mesmo marcado pelas lembranças do passado – sabendo que ela poderia estar livre se ele tivesse dito no tribunal aquilo que ela tanto quis ocultar.
 Essa é uma história de amor, lealdade e, sobretudo, respeito. Mas é uma história amarga, que mostra o outro lado desse acontecimento tenebroso que foi o holocausto. Embora tenha sido visto o lado humano de Hanna, nem por isto ela foi isenta de cumprir penas pelos crimes hediondos que cometera. Hanna foi uma das poucas envolvidas com os crimes nazistas, dentre os oito mil trabalhadores que foram recrutados para tal empreendimento desumano, que foi condenada. Ela deve ter sentido medo, desejo de libertar-se, deve ter alimentado conflitos, no entanto suas ações eram motivadas por uma linha de raciocínio que a fez enfrentar a si mesma ante os medos e a motivou a realizar seu grande erro existencial: “Não importa o que sentimos, mas o que fazemos”.


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Resenha Crítica: “O Leitor”, de Stephen Daldry. Revista Sétima de Cinema, n. 38, p. 03 – 07, dez. 2016. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

DEZEMBRO, ESVAZIAMENTOS E CUPINS DE PALETÓ

"Big Man", de Ron Mueck

Eu me pergunto, neste início de dezembro, se o vazio que me acomete a alma é consequência de uma tendência minha à sensibilidade excessiva, ou percepção nada alienada das baixezas humanas que têm tentado, com êxito, destruir o país.

A sensibilidade excessiva e a política não me possibilitam fechar os olhos em busca de alguma paz. O que eu mais queria, no entanto, era fechar os olhos e acordar na mais absoluta serenidade. Queria força interior para mim e coerência e democracia para a política nacional. Como conseguir tais proezas?

O vazio que me tritura liquidifica minhas esperanças e alegrias. Sob meus pés deslizam fragmentos de uma vida em silêncio. Em silêncio como? Vivo aos gritos – e somente eu mesmo os posso ouvir.

Esse vazio indica pessoas ausentes? Os mortos ou os vivos me despertam maior saudade? Não vejo minhas mãos quando o mundo me atravessa com suas inadequações. Quem tem mais inadequação: ele ou eu?

Enquanto biltres se ocupam em destruir – ratos que são – o país, eu me impressiono com a minha própria condição. Fixo um ponto na parede e deixo o mundo girar sem mim. Baratas gordas existem em algum escuro que não posso perscrutar – e como são completas! Nascem para fins específicos sem que haja necessidade de problematizações. Meus olhos fixos no ponto da parede. Incompletude absoluta é a lança que sorve de mim o sangue e a água.

Passeio os dedos sobre as cenas que aprisionei em mim – nunca as saberia descrever. Dor intensa é melhor segredada? O país chora sem hino, sem bandeira, sem ética, sem soluções. Queria um olhar de fraternidade que se transformasse em mãos aguerridas e tirassem de mim a não-força que me fustiga.

Neste dezembro, tão incerto e injusto, quero a paz maior do mundo. Serpentes de paletó preparam botes contra a nação, mas será possível a existência de alguém nascido para um olhar confortador?

Andarei dias e noites fixando pontos incertos, ou encontrarei, finalmente, a pacificidade perdida desde o momento em que nasci e tive que enfrentar os desamparos com choro e ranger de dentes? Será isso? Desamparo? Quem ousou, nesta vida incompleta, me desamparar? Eles não sabiam que eu era de alma frágil?

Será autocomiseração demais para um ser humano só? Dezembro, preciso pedir com ênfase: não permita que os políticos  cupins malignos  comam as pedras que meu povo reuniu com trabalho e honra, também não permita que o vazio arranque de mim a esperança de encontrar novas roupagens para minhas mãos há tanto tempo vazias e sem cor.

Émerson Cardoso
06/12/16

terça-feira, 11 de outubro de 2016

CONTO: JANELAS ENTREABERTAS ATERRORIZAM NUVENS (ou: Jamais entendi aspirações notívagas)


Já no primeiro segundo houve o que parece estranhamento. Cor mostarda da calça, vermelho purpúreo da camisa. Alma que pairava ao lado da porta sem exigir para si presenças. O que teria sido determinante: a tristeza do olhar, ou o silêncio gravado em seu sério semblante? Talvez o gesticular discreto, ou a maneira de olhar para espaço indecifrável... Não sei ao certo.

E houve, dessa forma, um surpreso olhar, depois outro olhar de reconhecimento e, no terceiro, vê-lo tornou-se a descoberta  quem poderia supor urgência e caos? Distante alma a deslizar no mundo, ele não percebeu que se tornara o centro de observação tão ilógica quanto profunda – imagens insubmissas percorreram cômodos conflituosos.

A necessidade de descobrir espaços para aproximação, o desejo de estabelecer diálogos amistosos e, de repente, a voz silente que retumbava em si abriu portas e deixou passar da amizade o fluxo. Amizade, ó céus, amizade  porque migalha alegra a quem na escassez pranteia.

Nascedouro de imagem fixa a passear insolente, seu olhar tristonho sorriu em fragmentos e sua voz ecoou em mim como a relutar entre resguardar-se ou ser possibilidade. Eu no abismo – e cair, inicialmente, parecia não causar temores.

Janelas incertas eram os meus ressequidos olhos. Cada gesto seu deixava minhas mãos vazias – e sedentas. Nadar em piscina de escorpiões tornou-se algo atrativo. Dormir e acordar eram atos entristecidos: previsão de mal-estar desde o início até o fim.

E a vida arrastou-se entre fundos olhos e impossibilitados pés. Convites amplos e estritos foram enviados por aves que retornavam desamparadas. Inseguranças e comedimentos me instigaram a recorrer a mecanismos de racionalização.

A solidão estendeu lençol de espinho e pontiagudas pedras. Recebi convite para, com meus pés descalços, atravessá-lo. Não havia sentido, por isto a fuga. Não havia certeza, por isto a melancolia. Não havia possibilidades, por isto o distanciamento. Tudo incerto, em verdade. Tudo imprecisão. 

Noite que paira em seus olhos, obscureça minhas mãos em frêmito. Boca que reverbera silêncios, resvala em minha existência almejante. Por mais que o mundo não nos suporte, ser gratificante a quem olho com sofreguidão, eu não perderei do abismo a loucura de vê-lo espelhado em meu olhar tristonho. Murmura o vento, sussurra a vida. E nossas mãos poderiam, ó céus, reunirem-se para sempre na cumplicidade de um sentimento inquebrantável e simples.
           

30/10/2016

LEITURA: "ÓDIO À INTELIGÊNCIA: SOBRE O ANTI-INTELECTUALISMO", POR MÁRCIA TIBURI





Os preconceitos não são inúteis. Eles têm uma função importantíssima na economia psíquica do preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos servem na prática para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar certezas incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para mistificar, para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal falso na pessoa do preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de “superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função fundante.

Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um sentido muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida, as culturas, as sociedades, as pessoas, ao parâmetro “superior-inferior”. Preconceitos não funcionam fora de jogos de linguagem que são jogos psíquicos, que produzem algum tipo de compensação psíquica.

Vivemos tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com um vazio do pensamento e um vazio da ação que se resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No sistema de preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto básico do preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas, lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles, conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu próprio medo.

O preconceituoso é, basicamente, um covarde.

Tendo isso em vista, é importante falar de um preconceito que está em voga nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado, pois o lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para muitos. Se podemos falar em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do conhecimento, e de “ignorância populista”, como um uso elitista da ignorância, como duas formas de exercer o poder manipulando o campo do saber, podemos falar também de um ódio à inteligência, do seu apagamento.

Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.

Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da “negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil (na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais constantes críticas direcionadas ao candidato Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das eleições municipais contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de que por ser professor não falaria “a linguagem do povo”).

O alto índice de abstenções, votos nulos e brancos (bem como a expressiva votação de políticos que se apresentavam como não-políticos) também é um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o eleitor identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um “saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.

No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores de justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de decidir contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de massa.

Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos típicos de um conservadorismo carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação.

A barbárie está em curso.


TÍBURI, Márcia. Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/50931/. Acesso em: 15/10/2016. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

BREVES NOTAS SOBRE O SONETO "ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE", DE CAMÕES, E "SONETO DE SEPARAÇÃO", DE VINÍCIUS DE MORAES


A produção literária de Luís de Camões, escritor maior da poesia portuguesa, apresenta inúmeras características que a tornam peculiar. Além da epopeia Os Lusíadas, sua obra mais conhecida, foi exímio produtor de sonetos. Dentre as características que podemos ressaltar em sua obra, devemos considerar o forte lirismo com que produziu seus sonetos. Neste gênero textual, desenvolveu discussões acerca do seu tempo, apresentava inferências sobre um amor de cunho platônico e discorria sobre princípios filosóficos e crenças religiosas.
            No soneto “Alma minha gentil, que te partiste”, há a voz de um eu lírico angustiado que, ao remeter-se ao seu amor, que se foi para a eternidade, lamenta profundamente esta separação inevitável. O eu lírico remete-se a um ser a quem devota um amor expressivo e apresenta-se como triste, magoado e perdido nas dores de amar a quem Deus “levou” para a morada eterna.
Nos versos: “Roga a Deus, que teus anos encurtou, / Que tão cedo de cá me leve a ver-te”, podemos perceber a sensação desesperadora a que se submete o eu lírico por ter se separado do seu grande amor, que morreu cedo deixando nele uma espécie de “mágoa, sem remédio”. A temática do amor irrealizado, da sensação de perda, a morte como princípio antagônico da vida, a crença na eternidade da alma, a angústia, melancolia, sofrimento e dor pertinentes à condição humana, são temáticas recorrentes neste soneto amplo em aspectos polissêmicos e lirismo.
            Após esta breve explanação, consideremos o soneto do poeta Vinicius de Moraes, “Soneto de Separação”, poema em que se percebe a mesma temática do texto camoniano: a separação entre dois amantes, embora se possa inferir que apresentam perspectivas diferenciadas quanto à maneira com que o assunto é tratado. No soneto de Camões em análise, o eu lírico expressa sua angústia ao dizer que se separou da sua amada “Tão cedo desta vida”, enquanto o soneto de Vinicius de Moraes apresenta sua constatação sobre a dolorosa separação que, para este, aconteceu também “De repente, não mais que de repente”.
            Quanto à temática, os dois sonetos podem ser muito parecidos, ambos tratam de desencontros, de ilusões e das dores de quem se depara com a fugacidade da vida afetiva. O eu lírico do primeiro texto se mostra mais conformado com a ideia da perda, no entanto isto se dá porque ele acredita na vida etérea como forma de reencontrar a sua amada. O indivíduo se mostra, neste sentido, vítima dos desencontros que a própria sorte, num sentido mais espiritual, revela.
No segundo texto, porém, o eu lírico, num jogo antitético, apresenta a separação de diversas maneiras e não descarta o fato de que tudo, no que diz respeito à vida amorosa, pode mudar rapidamente, e aquilo que se tem em mãos pode deixar de ser em pouco tempo, mas não se percebem processos ideológicos voltados para o fato de que poderia haver continuidade para o amor na vida após a morte. Antes, o amor que deixa de existir com o passar do tempo, no “Soneto de Separação”, é encarado com certo realismo, sem grandes dramatizações, embora conserve o teor lírico que também se faz presente no soneto de Camões.
















  

“NOVELAS DE CAVALARIA” E “LITERATURA CORDEL”


A Idade Média tem início no final do século V, com o avanço do Cristianismo, e estende-se até o século XV. Neste período, surge o primeiro movimento literário da História Ocidental: o Trovadorismo. A principal característica do Trovadorismo foi a produção de poesia acompanhada por instrumentos musicais, ou seja, o fazer poético estava relacionado à ideia de que se produzia o texto para ser cantado com auxílio de instrumentos diversos, além de traduzir os valores morais da época.
            A poesia trovadoresca apresentava três tipologias: Cantiga de amor, Cantiga de amigo e Cantiga de escárnio ou maldizer. Ao mesmo tempo em que os trovadores produziam suas poesias cantadas e musicadas, no Norte da França surgiu um novo tipo de produção literária: as Novelas de Cavalaria. O primeiro produtor deste gênero foi Chréstien de Troyes, autor de Lancelot, e retratava, diferente da idealização amorosa das canções trovadorescas, o amor concreto e realista com relações amorosas que se davam entre nobres. Como eram de caráter pagão, em sua maioria, os poetas exaltavam a valentia, a aventura e a capacidade de conquista. Surgiram, desse modo, as narrativas centradas no Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.
            Posteriormente, a Igreja passa a aceitar as Novelas de Cavalaria em sua doutrina e surgem novelas em que eram retratados aspectos místicos nas narrativas que se pautavam na valorização de aventuras com sentido religioso. Em suma, a Novela de Cavalaria se caracteriza como o melhor exemplo de prosa medieval em que se ressalta o heroísmo de influência religiosa e feudal.
            Muitos estudiosos da Literatura popular nordestina, mais precisamente estudiosos da Literatura de Cordel, e dos Cantadores Repentistas, buscam, em suas investigações, observar até que ponto essas manifestações literárias sofreram influências da produção trovadoresca criada na Idade Média.
            Sabe-se que a Literatura de Cordel incorporou, de modo recorrente, as características prosaicas pautadas em aventuras e valores medievos presentes nas Novelas de Cavalaria, e os Cantadores Repentistas, em vários aspectos, relembram a associação existente entre poesia oral e música.
            Diante disso, é possível estabelecer um rápido estudo de cunho comparativo entre a produção medieval das Novelas de Cavalaria e a Literatura de Cordel, para ser mais específico, o Cordel Antônio Silvino – o rei dos cangaceiros, do autor Leandro Gomes de Barros, que apresenta a história do cangaceiro Antônio Silvino que faz ameaças ao Padre José Paulino que, segundo é exposto no Cordel, foi responsável pela morte de três cangaceiros do seu grupo por tê-los entregado ao governo.
            No cordel podem ser encontradas várias das características que são pertinentes às Novelas de Cavalaria, mesmo com a distância temporal existente entre essas duas manifestações literárias.
Antônio Silvino assume o papel de herói que, ao reunir homens em bando, passa a viver de supostos crimes enquanto tenta fugir da realidade social a que se submete. Esse bando se desloca por diversos espaços do sertão nordestino guerreando contra o poder governamental da época, tendo como objetivo consciente ou inconscientemente o processo reivindicativo que o tornava um guerreiro inconformado com o sistema social e político de seu tempo. Assim, é possível estabelecer relações de proximidade com os Cavaleiros da Távola Redonda, do reino do Rei Arthur, por estarem ambos distantes de seu espaço de origem à mercê de aventuras e perigos inúmeros com seus respectivos objetivos heroicos. Guerrear era-lhes uma necessidade quase natural mediante as anfractuosidades dos caminhos que percorriam.
            Diferem, no entanto, porque, no caso do cangaceiro, a guerra se estabelecia contra representantes do poder governamental e do clero, enquanto as personagens das Novelas de Cavalaria não se opunham a nenhum sistema social e político, muito menos se opunham ao poder clerical, antes defendiam a Igreja e lutavam em prol desta.
O que os aproxima, ainda, é a manutenção de uma tradição que estabelece hierarquias comportamentais e valores morais no bando como se percebe, por exemplo, no fato de que, ao perder os companheiros do bando, seria imprescindível vingar a morte destes para fazer justiça àqueles que foram fiéis ao grupo. Nem que para isso a Igreja fosse alvo da cólera dos cangaceiros.

            Após esse breve comentário, constata-se o quanto é possível encontrar elementos comparativos que podem ser observados com maior apuro, o que não é nossa pretensão tendo em vista o caráter sucinto de nosso texto.

SESSÃO DO (DEZ) APEGO: MINHA LISTA DE FILMES PREFERIDOS








CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Sessão do (dez) apego: minha lista de filmes preferidos. Revista Sétima de Cinema, n. 36, p. 10 - 13, out. 2016. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

ENCONTRO À MARGEM DO RIO ESTIGE (ou romance do amor desencontrado)


Entra, triste alma,
Eu vou te levar...

Não posso, Caronte,
Que viver me agrada.

O amor descobri
Nos olhos de alguém!

Alguém, triste alma?
Quem é este alguém? 

Que amo sozinho
É tudo o que sei.

E quero voltar,
Lutar pelo amor...

Adeus, triste alma,
Findou-se o teu tempo.

Não posso, Caronte,
Tenha compaixão!

Vivi tão perdido
E o amor encontrei...

Deixai-me voltar,
Por Deus! Por favor!

Nunca, triste alma,
Teu tempo acabou!

Entra em silêncio,
É longa a jornada...

Por favor, Caronte,
Preciso da vida!

O amor renasceu
Salvando-me as horas!

Os dias são claros,
O céu mais florido...

Suspiros sedentos
Renovam meu corpo...

Caronte, eu imploro!
Preciso voltar!

Lamento, alma triste,
Mas vou te levar!

Não vês minhas lágrimas?
Não vês minha dor?

Preciso voltar,
Encontrei o amor!

Émerson Cardoso
14/09/2016


BREVE COMENTÁRIO SOBRE "AUTO DA BARCA DO INFERNO", DE GIL VICENTE, E "O AUTO DA COMPADECIDA", DE ARIANO SUASSUNA


O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, foi publicado em 1517 e tem como cenário fixo duas embarcações, numa espécie de porto imaginário para onde as almas vão após a morte. Uma barca é representada por um Anjo, que simboliza o paraíso, e a outra é representada pelo Diabo que, como se pode supor, simboliza o inferno. Os acontecimentos se dão a partir do momento que as almas chegam ao porto – estas passam a ser julgadas pelas ações que realizaram durante a vida – e deparam-se com os dois barcos e seus condutores.
Uma característica importante na obra é o fato de que o autor apresenta tipos sociais representativos da Nobreza, do Clero e do Povo. Várias antíteses são explanadas: Anjo/Diabo, Céu/Inferno, Bem/Mal, Vida/Morte, Pecado/Santidade, dentre outras. Com relação aos aspectos formais, e a utilização de montagens e cenários, o teatro de Gil Vicente é simples, não segue as três unidades do teatro clássico: ação, lugar e tempo.
            O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi publicado em 1957, e reúne características da literatura de caráter medieval associada à literatura de cordel, manifestação literária muito difundida no Nordeste brasileiro. Ela apresenta as ações do herói espertalhão João Grilo e de seu fiel escudeiro Chicó, numa cidade repleta de tipos representativos, assim como na obra de Gil Vicente, da Nobreza, do Clero e do Povo.
Após um ataque de cangaceiros à cidade de Taperoá, o Padre, o Bispo, o Padeiro e sua Esposa, o cangaceiro Severino e João Grilo são mortos e vão para o céu, ocasião em que deparam-se com Jesus Cristo – Manuel – e com o Diabo – o Encourado. As personagens, por terem realizado ações pecaminosas durante a vida, passam a ser julgadas, tendo como acusador o Encourado. No auge do desespero, e da possível punição pelos pecados que realizaram, elas contam com a esperteza de João Grilo, que pede a Manuel para ser defendido por Maria – a Compadecida –, ao que é atendido.
            Após esta síntese, percebemos o quanto as obras em pauta dialogam entre si por apresentarem, nos seus respectivos enredos, situações muito próximas. Como exemplo, temos o fato de que as personagens de ambas as obras se deparam, após a morte, com um julgamento em que, pelas ações realizadas em vida, podem ou não serem salvas tendo como punição os castigos do inferno por toda eternidade. Nos trechos seguintes, de modo sucinto, podemos perceber traços formais que apontam para um diálogo entre os autores – consideremos, neste caso, que Ariano Suassuna era admirador confesso da obra de Gil Vicente.
A linguagem utilizada por Gil Vicente na obra é rica em arcaísmos, e os diálogos foram produzidos com rimas e redondilhas maiores; Ariano Suassuna, por sua vez, reproduziu traços linguísticos típicos de certos locais do Nordeste, e teve preocupação em apresentar diálogos rápidos, concisos, fortemente marcados pelo humor e pela ironia que lhe são peculiares. Para exemplificar, leiamos os trechos das respectivas obras. O primeiro trecho é do Auto da Barca do Inferno (VICENTE apud TAKAZAKI, 2009, p. 33):

FIDALGO:

Ao inferno, todavia!
Inferno há i pêra mi?
Oh triste! Enquanto vivi
Não cuidei que o i havia:
Tive que era fantesia!
Folgava ser adorado,
Confiei em meu estado
E não vi que me perdia.

Venha essa prancha!
Veremos esta barca de tristura.

DIABO:

Embarque vossa doçura,
Que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos
Veremos como remais [...]

            Neste trecho, o autor expõe a falta de fé de um fidalgo que, ao se deparar com a ideia da punição divina após a morte, repensa suas ações e lamenta a certeza de que não pode mais mudar os fatos. No trecho que apresenta a fala do Diabo, percebemos a ironia com que este fala, o tom inquisidor e cruel é forte, e o desespero do fidalgo é inegável mediante a acusação.
            A seguir, temos um trecho da obra Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2005, p. 121):

SEVERINO

Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno!

BISPO

Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre bispo!

ENCOURADO

Ah, compaixão... Como pilhéria é boa! Vamos todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, pra padecer comigo. [...] Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha um orgulho só comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes. Isto sem se falar no fato de que vivia com um santo homem, tratando-o com o maior desprezo.
                                                                                                                                                                                                 
Nestes trechos da obra de Suassuna, a linguagem apresenta traços modernistas na simplicidade dos termos empregados, além de diálogos rápidos, curtos, o que dá certo dinamismo ao texto.
No trecho de ambos os autores, temos a fala dos possíveis condenados ao inferno e o julgamento do Diabo. No primeiro, o Diabo é irônico, lida com crueldade diante do desespero do fidalgo; no segundo, o Diabo mantém a mesma característica de ironia, crueldade e assume o papel de acusador das faltas do indivíduo como se este fosse conhecedor contumaz das ações realizadas pelos homens que julga. Ambos se pautam na ideia de condenação pelo comportamento maledicente do homem, e ambos apresentam o aspecto religioso como pano de fundo da análise do comportamento do homem na sociedade em que este está inserido.
A hipocrisia social, o materialismo, o desprezo aos valores espirituais e a crueldade das relações humanas são temas comuns às obras em discussão, o que as torna, sem dúvidas, próximas apesar da distância temporal de séculos, e de certas diferenciações formais apresentadas.

REFERÊNCIAS

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.


TAKAZAKI, Heloisa Harue. Língua Portuguesa: ensino médio – volume único. São Paulo: IBEP, 2004. (Coleção Vitória Régia).