O Auto da Barca do
Inferno, de Gil Vicente, foi publicado em 1517 e tem como cenário fixo duas
embarcações, numa espécie de porto imaginário para onde as almas vão após a
morte. Uma barca é representada por um Anjo, que simboliza o paraíso, e a outra
é representada pelo Diabo que, como se pode supor, simboliza o inferno. Os
acontecimentos se dão a partir do momento que as almas chegam ao porto – estas
passam a ser julgadas pelas ações que realizaram durante a vida – e deparam-se
com os dois barcos e seus condutores.
Uma característica importante na obra é o fato de que o autor
apresenta tipos sociais representativos da Nobreza, do Clero e do Povo. Várias
antíteses são explanadas: Anjo/Diabo, Céu/Inferno, Bem/Mal, Vida/Morte,
Pecado/Santidade, dentre outras. Com relação aos aspectos formais, e a
utilização de montagens e cenários, o teatro de Gil Vicente é simples, não
segue as três unidades do teatro clássico: ação, lugar e tempo.
O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi publicado em 1957, e reúne
características da literatura de caráter medieval associada à literatura de
cordel, manifestação literária muito difundida no Nordeste brasileiro. Ela apresenta
as ações do herói espertalhão João Grilo e de seu fiel escudeiro Chicó, numa
cidade repleta de tipos representativos, assim como na obra de Gil Vicente, da
Nobreza, do Clero e do Povo.
Após um ataque de cangaceiros à cidade de Taperoá, o Padre, o
Bispo, o Padeiro e sua Esposa, o cangaceiro Severino e João Grilo são mortos e
vão para o céu, ocasião em que deparam-se com Jesus Cristo – Manuel – e com o Diabo
– o Encourado. As personagens, por terem realizado ações pecaminosas durante a
vida, passam a ser julgadas, tendo como acusador o Encourado. No auge do
desespero, e da possível punição pelos pecados que realizaram, elas contam com
a esperteza de João Grilo, que pede a Manuel para ser defendido por Maria – a Compadecida
–, ao que é atendido.
Após esta síntese, percebemos o quanto
as obras em pauta dialogam entre si por apresentarem, nos seus respectivos
enredos, situações muito próximas. Como exemplo, temos o fato de que as
personagens de ambas as obras se deparam, após a morte, com um julgamento em
que, pelas ações realizadas em vida, podem ou não serem salvas tendo como
punição os castigos do inferno por toda eternidade. Nos trechos seguintes, de
modo sucinto, podemos perceber traços formais que apontam para um diálogo entre
os autores – consideremos, neste caso, que Ariano Suassuna era admirador
confesso da obra de Gil Vicente.
A linguagem utilizada por Gil Vicente na obra é rica em
arcaísmos, e os diálogos foram produzidos com rimas e redondilhas maiores; Ariano
Suassuna, por sua vez, reproduziu traços linguísticos típicos de certos locais
do Nordeste, e teve preocupação em apresentar diálogos rápidos, concisos,
fortemente marcados pelo humor e pela ironia que lhe são peculiares. Para
exemplificar, leiamos os trechos das respectivas obras. O primeiro trecho é do Auto da Barca do Inferno (VICENTE apud TAKAZAKI,
2009, p. 33):
FIDALGO:
Ao inferno, todavia!
Inferno há i pêra mi?
Oh triste! Enquanto vivi
Não cuidei que o i havia:
Tive que era fantesia!
Folgava ser adorado,
Confiei em meu estado
E não vi que me perdia.
Venha essa prancha!
Veremos esta barca de
tristura.
DIABO:
Embarque vossa doçura,
Que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos
Veremos como remais [...]
Neste trecho, o autor expõe a falta
de fé de um fidalgo que, ao se deparar com a ideia da punição divina após a
morte, repensa suas ações e lamenta a certeza de que não pode mais mudar os
fatos. No trecho que apresenta a fala do Diabo, percebemos a ironia com que
este fala, o tom inquisidor e cruel é forte, e o desespero do fidalgo é
inegável mediante a acusação.
A seguir, temos um trecho da obra Auto da Compadecida (SUASSUNA, 2005, p.
121):
SEVERINO
Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no
inferno!
BISPO
Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre
bispo!
ENCOURADO
Ah, compaixão... Como pilhéria é boa! Vamos
todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, pra padecer
comigo. [...] Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse
bispo, falando com um pequeno, tinha um orgulho só comparável à subserviência
que usava para tratar com os grandes. Isto sem se falar no fato de que vivia
com um santo homem, tratando-o com o maior desprezo.
Nestes trechos da obra de Suassuna, a linguagem apresenta
traços modernistas na simplicidade dos termos empregados, além de diálogos
rápidos, curtos, o que dá certo dinamismo ao texto.
No trecho de ambos os autores, temos a fala dos possíveis
condenados ao inferno e o julgamento do Diabo. No primeiro, o Diabo é irônico,
lida com crueldade diante do desespero do fidalgo; no segundo, o Diabo mantém a
mesma característica de ironia, crueldade e assume o papel de acusador das
faltas do indivíduo como se este fosse conhecedor contumaz das ações realizadas
pelos homens que julga. Ambos se pautam na ideia de condenação pelo
comportamento maledicente do homem, e ambos apresentam o aspecto religioso como
pano de fundo da análise do comportamento do homem na sociedade em que este está
inserido.
A hipocrisia social, o materialismo, o desprezo aos valores
espirituais e a crueldade das relações humanas são temas comuns às obras em
discussão, o que as torna, sem dúvidas, próximas apesar da distância temporal
de séculos, e de certas diferenciações formais apresentadas.
REFERÊNCIAS
SUASSUNA,
Ariano. Auto da Compadecida. 35. ed. Rio
de Janeiro: Agir, 2005.
TAKAZAKI, Heloisa Harue. Língua Portuguesa: ensino médio – volume único. São Paulo: IBEP,
2004. (Coleção Vitória Régia).
Nenhum comentário:
Postar um comentário