quinta-feira, 24 de outubro de 2019

HORA DO SONETO ("O ADORMECIDO DO VALE", DE ARTHUR RIMBAUD)


O ADORMECIDO DO VALE

Era um recanto verde onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, Ó Natureza – aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.
(Arthur Rimbaud)

HORA DO SONETO (TRÊS POEMAS DE GREGÓRIO DE MATOS)


A Jesus Cristo crucificado,
estando o poeta para morrer

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Amoroso, constante, firme e inteiro:

Neste transe, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um pai, manso cordeiro.

Mui grande é o vosso amor, e o meu delito:
Porém, pode ter fim todo o pecar;
Mas não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar
Que por mais que pequei, neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.



À instabilidade das cousas do mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto, da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza;
Na formosura, não se dê constância:
E na alegria, sinta-se tristeza.

Comece o mundo enfim pela ignorância,
Pois tem qualquer dos bens por natureza,
A firmeza somente na inconstância.



Descreve que era Realmente Naquele Tempo a
Cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazendo pelos pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam, muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CRÔNICA: "A FESTA"


Pensei numa festa – sem bebida, sem comida, festa só de olhar.
(“O chá”, de Clarice Lispector)

Convidaria para uma festa as minhas professoras do Ensino Fundamental e Médio, que estariam diante de mim com o que consegui resguardar delas. O que diria a elas? Que foram relevantes para minha vida? Que as estimava com devoção?

 

Na surpresa do reencontro, ririam as simpáticas. As mais sérias permaneceriam em silêncio. Eu passearia a vista pelo ambiente e começaria a identificá-las. Não atentaria para a ordem em que elas apareceram em minha vida.

 

Em sobressalto, aquela que apertou minha mão, levando-me aos curativos quando me feri na escola, respondeu: “Não, eu nunca vou te esquecer!” Era o último dia de aula quando a pergunta foi feita. Ela permaneceu comigo, para sempre, através de sua letra que imito até hoje.

 

A primeira que nos impediu de chamá-la de Tia, ensinou à turma duas canções inesquecíveis. A primeira, trilha sonora do filme A noviça rebelde, ensina as notas musicais. A segunda, meu Deus, traz em sua melodia a face inteira dessa professora: “Já podeis da pátria, filhos, ver contente a mãe gentil...” Ela atirou-se da janela de um hospital psiquiátrico. Lecionava em três turnos e era um ser humano com uma vida pessoal. Eu fui para seu velório. Diante dela, eu fiquei em profundo silêncio.

 

Outra, de muitos cabelos e pouca sensibilidade nas palavras, me acusou de rir demais. Talvez ela não tenha entendido que, para não morrer, diante de uma vida indigna, rir era tudo o que eu tinha.

 

Outra professora, muito humana, sorriu com minha promessa: eu disse que um dia, ao reencontrá-la, iria dizer: “Professora, eu também sou Professor!” Ela me deixava ajudá-la com as provas na hora da correção e dizia que já havia conhecido quase todas as capitais do Nordeste. Eu, em minhas viagens para capitais, sempre me lembrei de me perguntar: “Ela já veio aqui?”

 

Uma professora, após a morte do pai, vestida de luto, com muita angústia no fundo dos óculos espessos, entrou na sala, sentou-se à mesa e permaneceu calada, sofrida, estática.  O que nunca saiu de minha mente foi a capacidade que essa professora teve de dizer tanto em silêncio tão cortante.

 

Outra, muito loira, vaidosa, esotérica, preocupada em combinar as cores das roupas com as cores dos acessórios, disse em sala de aula que a empregada lhe havia perguntado se dava para fritar ovo em micro-ondas. Ela gargalhou sem refletir que poderia haver alunos ali cujas mães (iguais à minha) também poderiam ser empregadas domésticas.

 

Duas outras professoras eu as quero lembrar a partir da simplicidade e simpatia delas. Uma era baixinha, usava óculos, tinha um cabelo amarrado com rigor e lecionava como se estivesse declamando. Eu amava escutá-la. A outra, também baixinha, fazia a turma se movimentar, pois surgia sempre com um trabalho novo para ser apresentado em sala. Todas as vezes que escuto a palavra Greenwich essa professora me vem inteira.

 

Tive uma professora que me emprestava livros. Lembro que o primeiro livro que ela me emprestou foi Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco. Eu lhe perguntei, ainda no Ensino Fundamental: “O que eu devo fazer se eu também quiser ser Professor?” Ela disse: “Faça Letras!” E eu iniciei uma larga marcha, desde esse dia, em busca do curso para o qual nasci. 

 

Por falar em literatura, tive uma professora que era insana na aparência e apaixonada por essa área do conhecimento que tanto amo. Ela portava uma garrafa azul em todas as aulas e os meus colegas de turma, os mais irreverentes, diziam que a garrafa estava cheia de uma “poção mágica” que explicava seu aspecto alucinado. A ela mostrei meus primeiros contos. Recebi dela o melhor em estímulos.

 

Outra professora passou uma produção textual que iniciava: “Naquele dia, eu me sentia diferente, pois...” E eu completei: “...era meu aniversário”. No texto, coloquei as sensibilidades de minha alma confusa de adolescente. A professora escreveu na folha de redação palavras tão humanas, e depois me procurou e ensinou, com um gesto, o que uma professora deve ser e fazer diante da existência anônima de um aluno angustiado.

 

Uma professora de História, em certa aula, para controlar a turma, contou sobre as dificuldades que viveu e as lutas que empreendeu para superar as limitações da vida. Em certo ponto, ela começou a chorar sem controle. A turma silenciou diante de seu testemunho comovido e eu, que não era dado a abraços, me levantei e a abracei.

 

Minhas professoras de Matemática foram poucas. Uma tinha um sotaque carioca irreverente. Com ela aprendi a desenhar formas geométricas. A outra ensinava, com propriedade, os números que eu detestei a vida toda. Seu método tornava a Matemática uma marcha difícil para mim, porém tão aprazível, pois seu tom de voz e pacificidade eram admiráveis.

 

Tive uma professora que ministrava aula olhando só para mim. Havia algo forte que eu admirava nessa professora, mas eu nunca soube dizer exatamente o quê. O que eu admirava nela, Deus, seus olhos verdes e incisivos, ou sua beleza e inteligência tão peculiares?

 

Certa professora, esta muito sóbria, racional e de vasto conhecimento, tinha a melhor das posturas. Era respeitável, competente, exigente e de um tom de voz perfeito. No mundo, uma profissional como ela é uma raridade. Foi essa senhora discreta e fina quem me fez o maior elogio que um dia recebi, e receberei, na vida: “Você é um grande ser humano!” Eu luto todos os dias para estar à altura do elogio. Creio que, em verdade, o grande ser humano nesta história é ela, de voz inconfundível que eu escuto como se tivesse gravado cada sílaba pronunciada.

 

Lembro-me afetuosamente da professora que passou um estudo sobre o poema de Manuel Bandeira: Poema tirado de uma notícia de jornal. Lembro-me de sua voz dizendo: “João Gostoso”. E os seus lábios ficavam excessivamente arredondados. Escrevi um poema, dei-lhe de presente e ela guardou com carinho. Sua serenidade é inesquecível.

 

Ainda hoje reflito sobre o modo de ser de uma professora que eu conheci. Ela mostrava nos olhos uma espécie de fuga. Ela desejava, mas o quê? Demonstrava medo, insatisfação, silêncio, mas às vezes ria com riso discreto. Quem era aquele ser humano fantasiado de professora? Quais eram suas feridas existenciais?

 

Pois bem, antes de parar de falar delas, das professoras da minha vida, devo me lembrar da primeira professora que me ensinou sem estar em sala de aula. Ela morava num cubículo e ministrava aulas para os meninos da vizinhança. Ela era tão triste, sozinha, abandonada...

 

Depois dela, me veio a escola com as duas primeiras professoras oficiais de minha vida. A primeira, que ficou pouco tempo, tinha cabelos curtos, óculos presos por um fio prateado e seriedade extrema. A segunda, que acolheu a turma em seguida, com os cabelos sempre assanhados, trazia revistas em quadrinhos e as espalhava sobre a mesa, para minha felicidade de leitor iniciante.

 

Estive em sala de aula com várias professoras. As tradicionais, carrascas, foram poucas. As marcantes, humanas, foram muitas. Embora eu tenha querido citar todas, talvez tenha me esquecido de alguma, o que não quer dizer que todas não sejam significativas. Agora, por exemplo, me veio a imagem da única professora que me forçou a realizar Educação Física. Eu ia à igreja pela manhã e ela, ao me ver passar com a farda da escola, me raptou e disse: “Primeiro a obrigação, depois a devoção!” Até ela, que só vi uma vez, ficou para sempre em mim através deste lugar-comum. 

 

Queria nessa festa dizer às minhas professoras o quanto a vida foi difícil. Estudar, sem estímulo em casa, e sofrendo toda sorte de bullying, não é coisa tranquila de se vivenciar. No auge das dificuldades, no entanto, sempre houve uma delas que me dizia como superar as limitações. Elas me davam forças até quando silenciavam.  

 

No pátio da memória, vou revendo as faces afixadas nas paredes do que sou. A imagem de cada uma delas compõe a alma que tenho construído. Ficará em mim, enquanto houver memória, a existência profunda dessas mulheres que me ensinaram sobre a vida. Com umas, aprendi como ser um profissional exemplar. Com outras, aprendi como reivindicar meus direitos, como superar os momentos de conflito, como ser gente, como utilizar a palavra para entender e enfrentar o mundo.

 

Por falar em palavras, as que escrevo passam a ter peso de chumbo, porque estão perpassadas por um tempo que não volta. Não sei onde encontrar minhas professoras para uma demonstração de afeto. Não sei se estão bem. Não sei de suas vidas ou mortes. Não sei. Eu as quero felizes sempre.  


                                                                                                   Émerson Cardoso
(04/07/09 - 18/10/19)