quinta-feira, 21 de junho de 2018

RESUMO DO MEU PRIMEIRO ROMANCE: "O CASARÃO SEM JANELAS"



Um escritor inseguro quanto ao seu ofício depara-se com uma cena: há uma velha sentada no alpendre de um casarão construído há anos num sopé da Chapada do Araripe, floresta que corta, dentre outras cidades, Crato – interior do estado do Ceará. A partir desta imagem, o escritor decide contar uma história. Quem construiu o casarão? Por que o construiu sem janelas? Quem era aquela velha solitária cujo olhar comovente parecia perder-se em cenário tão desolador? Na tentativa de desvendar o olhar anônimo dessa personagem, o escritor passa a contar a história do casarão, construído sem janelas, e a história de seus habitantes.   
Para contar a história, o escritor dá voz a algumas personagens para que elas mesmas apresentem suas versões dos fatos. Com uma linguagem que tenta reproduzir as idiossincrasias linguísticas da região em que as personagens estão inseridas, surgem os depoimentos de Augusta (a ex-escrava cujo comportamento ambíguo movimenta consideravelmente a trama) e das irmãs: Maria dos Anjos (dona do casarão e responsável por sua revitalização), Angelita (que após um casamento conturbado foge do marido e vai buscar abrigo no casarão da irmã) e Lina (a versão jovem da velhinha que no início do romance aparece no alpendre e estimula o escritor a desvendar sua história).
Outras personagens ganham voz na enredística: uma personagem muda (trata-se de Maria Tacita, cujas intervenções são indicadas por meio de pontilhados), o Tempo (que ao narrar parece primar por intenso lirismo), o Açude (que narra fatos vinculados especificamente à personagem Ana, filha de Angelita), o Silêncio (que, em verdade, é o não-dito da personagem Maria Tacita), o burro Sereno (que enfatiza a visita de Lina a Juazeiro do Norte, momento em que surge o Padre Cícero – personagem histórica que comporta visões ambivalentes a seu respeito) e, por fim, o Casarão (que, considerado maldito pela circunvizinhança, apresenta uma versão elucidativa acerca de sua construção e das pessoas que nele habitam).  
O título da obra metaforiza a condição das personagens femininas que vivem o enredo. A ausência de janelas no casarão representa, nas camadas profundas do texto, a esterilidade a que a visão patriarcal submete a mulher. Vítimas dos mais diversos conflitos existenciais, as personagens desse romance formam uma confraria de sujeitos femininos que tentam, até mesmo contra o tempo e suas devastações, transgredir às regras estipuladas socialmente e sobreviver – mesmo quando a morte parece inevitável.

(Émerson Cardoso)

CONCURSO DE NARRATIVAS (GÊNEROS TEXTUAIS DA NARRATIVA)


Estes textos foram selecionados e premiados no CONCURSO DE NARRATIVAS realizado no mês de junho de 2018 na primeira série do Ensino Médio (EEMTI Presidente Geisel). Foram selecionados textos do gênero fábula, apólogo e parábola.


O ESCORPIÃO E AS FORMIGAS
                 
Em certa floresta, havia várias formigas peritas em subir nas árvores. E havia também um escorpião que por ali vagava. Era o início de um bom inverno e as formiga já tinham coletado o capim, restavam apenas as folhagens das gigantes árvores.

O escorpião, por sua vez, aproximou-se das formigas e perguntou: “Posso ajudar na colheita em troca de abrigo?” Respondendo de forma direta, disse uma das formigas: “Você não tem capacidade para subir”. Retrucou o escorpião “Não tenho isso é fato, contudo conseguirei...”

Passado algum tempo, o escorpião não conseguia subir na árvore. Chegado o inverno, as formigas correram em direção ao formigueiro, com seus numerosos vegetais. Quanto ao escorpião, que por conseguinte não havia apanhado nada, passou frio e fome.

Ao chegar o fim do inverno, as formigas deixaram o formigueiro e viram o escorpião morto. Portanto, antes de executarmos uma ação, devemos saber se somos capazes de fazê-la e, assim, atingir os nossos objetivos, usando da responsabilidade e cautela.

            MORAL DA HISTÓRIA: Quem não pode com o pote, não pega na rodilha.

(GUSTAVO SOARES PEREIRA)

A ARROGÂNCIA DE GUSTAVO

Uma manhã relativamente calma, no centro de Juazeiro do Norte – CE, Gustavo passeava em seu carro enquanto escutava sua música preferida tocar no som. A música já havia se repetido centenas de vezes, entretanto ainda assim cantava empolgadamente.

Esse era um dos poucos momentos em que se podia vê-lo tranquilo, pois ele era geralmente arrogante, impaciente e rude devido a isso nunca socializou muito. Gostava de andar com empoderamento, porém o fato de ser quase raquítico não ajudava muito, braços e pernas finas, era conhecido na rua onde morava por “Homem da triste figura”.

Ao estacionar o carro, em momento de descuido, deixou acidentalmente a chave do lado de dentro, e assim ficara preso no meio do centro em meio a um calor de 38°C. Não podia perder tempo, então, logo, chamou ajuda para destravar o carro. 15 minutos depois chega um homem cujo apelido era “Sr. Bigode”.

Não era velho, mas seu bigode e sua estatura intimidavam só de olhar. Após, finalmente, abrir o carro, ele disse o valor do serviço para Gustavo, que respondeu de acordo com seu caráter, alegando que jamais pagaria ao “gordo salafrário”.

Sr. Bigode deu um pulo enquanto tentava compreender o motivo de tantos adjetivos, virou-se e disse:

– Jamais julgue um serviço pelo preço. Você não sabe o que passei para conseguir fazê-lo. – Enquanto isto, jogava a chave de volta no carro, e ainda disse: “Aproveita que é magrelo, passe pela fechadura e pegue sua maldita chave”.

E assim restou, apenas, o calor escaldante, Gustavo e sua arrogância, que ainda vai lhe custar caro.

                                           (JOSÉ ROBERTO SILVA FREITAS)

MEDO DE ESCURO


 Havia uma menina que tinha muito medo do escuro. Ela sempre pedia para sua mãe manter a luz de seu quarto sempre acesa, porque se fosse apagada, a sua mente lhe conduzia a seres imaginários.

Certa noite, ela estava brincando com seus bonecos favoritos quando, de repente, a luz do seu quarto se apagou. A menina ficou desesperada e tentou correr, mas estava escuro e não tinha coragem de sair de onde estava. Ela, então, escondeu seu rosto entre os joelhos, e começou a chorar.

Ela ouviu alguém batendo levemente na porta que logo começou a ranger sendo aberta. Sentiu uma mão delicada sobre seus ombros e percebeu que era sua mãe, que lhe perguntava por qual motivo chorava. Então ela respondeu que sentia muito medo do escuro. Após ouvir isso, sua mãe lhe explicou que o motivo do medo dela, era porque ela tinha muita imaginação, e acrescentou dizendo que quando era pequena também tinha esse medo. A menina entendeu e abraçou-a.

          Logo depois, seu pai chegou e trocou a lâmpada, e a mãe dela disse que seu pai havia desligado o contador para trocá-la. No fim das contas, ela percebeu que a mãe estava certa: perdeu o medo de dormir com a luz apagada e ainda por cima, aprendeu a ficar mais econômica.



                                                                    (DANIELY MATIAS SOARES CAVALCANTE)

quarta-feira, 13 de junho de 2018

PAISAGEM PÓS-CREPÚSCULO (MENÇÃO HONROSA NO XX PRÊMIO IDEAL CLUBE DE LITERATURA)



Noite, o que tens para mim?
Umedecidas gavetas
Com traças que não respeitam
Meu olhar nelas oculto?

O que tens para mim, noite,
Piscina de prego e farpa
Com vinagre ornamentada,
Ou mar de cacos de vidro?

Para mim, noite, o que tens:
Coração fanado à unha,
Espectros de vis batalhas?

Tens lodo sepulcral, noite,
Silêncio de faca e sombra,
Tesoura de mil mortalhas?

CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Paisagem Pós-Crepúsculo. In: XX Prêmio Ideal Clube de Literatura: Prêmio José Telles. Organização e introdução de Carlos Augusto Viana. Fortaleza: Tiprogresso, 2018. p. 29. 



sábado, 9 de junho de 2018

ENTREVISTA: JOÃO PEDRO DO JUAZEIRO



ENTREVISTA

Neste mês, o artista João Pedro do Juazeiro comemora mais um aniversário. Ele me concedeu, gentilmente, uma entrevista que será publicada em seu livro de memórias, mas que eu compartilho, agora, sentindo-me honrado por ter tido contato com este grande artista popular considerado, por muitos, um dos maiores artistas da xilogravura que o Brasil teve o privilégio de conhecer. Elaborei 11 perguntas aludindo, com a quantidade de perguntas, ao dia 11/06, data de seu aniversário. Este artista nascido no mês das festas juninas, que estão presentes recorrentemente em seus escritos, traz no nome composto dois nomes dos santos que comemoramos: São João e São Pedro. João Pedro, que é do Juazeiro um grande representante, merece que o parabenizemos por seu trabalho e sua sensibilidade artística. Muito ainda temos a aprender com ele, portanto que sua vida seja longa e próspera, pois é de pessoas com sua grandeza de alma que o mundo precisa! Vamos conferir, na sequência, o que ele diz sobre seu trabalho, família e sobre a vida.

1 – Você é conhecido artisticamente como João Pedro do Juazeiro. Mas quem é, de fato, João Pedro do Juazeiro? O que você poderia dizer sobre si mesmo?

JP – João Pedro do Juazeiro ainda é indescritível, é um ser pensante com uma vasta pluralidade em arte e cultura sem “ilimitações”. Digamos que ainda não me encontrei, não fiz o bastante, tenho um universo a ser explorado, preciso ultrapassar meus próprios limites, os quais desconheço. E são essas “ilimitações” surpreendentes que podem me ajudar a compor uma descrição de mim. É como sempre digo: faço o que gosto sem saber o que faço, porque, quando a inspiração chega, tudo é possível.

2 – O historiador Renato Casimiro, no catálogo[1] de apresentação da exposição e oficina realizadas por você em 2006, pelo CCBNB, disse que: “Na história de João Pedro, primeiro veio o cordelista gravitando em torno da Lira Nordestina, já nos anos 90, familiarizando-se com os poetas e os xilógrafos de sua geração. A xilogravura, na verdade, veio depois, pois ele mesmo queria produzir as ilustrações de capas de seus versos, como dizia, para não pedir a ninguém”. A xilogravura é sua arte por excelência? O que a Lira Nordestina tem a ver com a entrada da xilogravura em sua vida?

JP – Sim, a xilogravura é minha arte por excelência, é tudo em minha vida – vida que foi e é dedicada a ela! Não sei fazer nada que não seja xilogravura, que não seja dela ou com a reprodução dela.
A Lira Nordestina passei a frequentar no início da década de 1980, acho que em 1982, quando publiquei meu primeiro cordel: “O Desejo De Um Matuto”. Ela estava instalada numa escola que ficava no ferro de engomar, assim chamávamos o encontro das duas ruas São Luiz com Santa Luzia. Depois, ela foi para um colégio na Av. Castelo Branco, em frente à Praça do Mateus, no bairro Romeirão, onde editei o meu segundo cordel: “Lamentos d´um Menor Abandonado”.
Quando ela foi para a estação ferroviária, no bairro Franciscanos, editei vários cordéis lá e minha relação com os tipógrafos da Lira já era familiar. Na estação, se instalaram: a Lira Nordestina, o Conselho Tutelar e a AMAR (Associação dos Artistas e Amigos da Arte).
Houve algo muito importante para mim no ano de 1998. Foi uma tarde desconfortável e humilhante. O que aconteceu tem a ver com uma grande amiga a quem agradeço pelo incentivo, porque, quando eu vendia meu trabalho como cordelista, nas escolas de Juazeiro do Norte, pelo preço de Cr$ 1,00 (um cruzeiro), esta amiga disse-me, francamente, que eu vivia esmolando nos colégios e que arte era o que ela fazia. Para ela, a arte mesmo era a xilogravura que ela vendia por valores altíssimos e com direito a exposições em galerias, jornais escritos, televisivos e radiofônicos. Lembro que eram suas primeiras matrizes, ela estava iniciando na arte de gravar. Quanto mais ela confabulava, mais eu sucumbia chão adentro. Ela disse coisas humilhantes e degradantes para mim. Ouvir um ser humano falar tantas palavras diminutivas sobre si e seu trabalho não foi fácil. Ao findar todo “incentivo” humilhante, de súbito, nos cinco passos que dei da AMAR para a Lira, decidi fazer xilogravura. Foi uma decisão de última hora.
Chegando na Lira, falei para o pessoal que lá trabalhava. Quero madeira, afirmando: “Eu vou fazer xilogravura”. Eles riram de mim, pois imaginaram ser brincadeira. Respondi-lhes: “Não, eu falo sério! Vou fazer xilogravura”. Eles disseram: “Você não sabe”. E eu respondi: “Se vocês fazem, também farei!” Até hoje fico pensando em minha atitude decidida e minhas afirmações... Não eram afirmações do João Pedro consciente, mas de um João decididamente capacitado a fazer algo que o consciente não sabia o que era.
Eles me forneceram três pequeninos tacos de madeira, passei a noite riscando, sem dormir e, na manhã seguinte, às 06h, eu estava na estação aguardando Airton (o Gordinho) abrir a gráfica para imprimir minhas primeiras gravuras. Desse dia em diante, não parei e nunca mais dormi uma noite por completo gravando noite adentro.
A Lira Nordestina foi acolhedora, incentivadora, patrocinadora e a estrada que me levou ao mundo!

3 – No início de seu trabalho, você produziu um álbum em que xilograva personalidades como: Frei Damião, Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Rachel de Queiroz, dentre outros. Este álbum é uma obra-prima! Uma das gravuras, inclusive, foi premiada. Este álbum é o seu preferido? E o que este prêmio representou para seu trabalho?

JP – No final de 1998, tinha que viajar para vendas de artefatos de alumínio que era meu trabalho na época. Eu viajava pelo interior nordestino e, antes de viajar, fui até a Lira para arranjar madeira. Eles negaram alegando não ter mais, pois estavam certos de que eu estava acabando com toda umburana por estar todos os dias gravando. Por este motivo, eles me apelidaram de “Pica-Pau”. Catei uns pedaços de umburana que estavam no chão da gráfica e encontrei, no pé da calçada, um pedaço de madeira medindo 30x10 cm, que tinha muitas falhas. Peguei assim mesmo. Fui para casa e, no outro dia, viajei a trabalho, levando na mala os pedaços de madeira. Paramos na cidade de Brejão – PE, onde ficamos arranchados numa casa. Todos os dias saíamos para trabalhar nos sítios e cidades vizinhas. Um certo dia, amanheceu chovendo muito, o nevoeiro fechava as estradas. Não havia possibilidade de trabalhar nesse dia, resolvemos ficar no local de rancharia. Foi quando peguei os tacos de madeira e fui lixar. Pensei em dividir o taco maior em três partes e desisti. Já estando pronta para desenhar, eu resolvi fazer um Frei Damião.
Quando cheguei em Juazeiro e mostrei a xilogravura aos amigos todos ficaram abismados sobre como poderia um iniciante fazer uma gravura tão magnífica. Ali, todos unidos, surgiram opiniões: “Por que não faz um álbum? Os heróis do Nordeste, os santos nordestinos e etc.” Zé Lourenço disse: “Vamos esperar Gilmar chegar. Quando o Professor Gilmar chegou, que lhe mostrei, ele ficou maravilhado e disse logo: “Vamos fazer o álbum Mitos do Nordeste”! Ele me passou uma relação de temas e dei início à concepção da coleção – era final de ano. No mês de março de 1999, a gravura do Beato Zé Lourenço foi destaque no Jornal Diário do Nordeste. Depois, enviei o Frei Damião e Padim Ciço para o Prêmio do IBEU-CE, em Fortaleza, ocasião em que ganhei o primeiro lugar com a xilogravura de Frei Damião e destaque para a do Padim Ciço. O evento ocorreu no Salão Norman Rockwel do Desenho e da Gravura, em maio de 1999.
O prêmio me alegrou pelo título e pela parte em dinheiro, que supriria a família. Quando fui receber, fui também para minha primeira exposição individual no IPHAN-CE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico), em Fortaleza. Também realizei um workshop no centro de Comunicação Social da UFC (Universidade Federal do Ceará). Foi tudo tão de repente que não me dei conta, comportava-me meio alheio a tudo, como se fosse normal. Acho que isso aconteceu por minha simplicidade, por não me vangloriar, nem me autovalorizar com o que acontece na vida. Tudo é dado por Deus e devemos agradecer e nos comportarmos sem nos diferenciarmos dos outros.
Quanto ao prêmio, isto despertou ciumeiras e até reivindicações dos colegas inconformados com o prêmio de primeiro lugar ter sido dado a um iniciante, enquanto havia gravadores com mais de vinte anos no exercício. Houve um gravador, inclusive, que telefonou de Juazeiro para Fortaleza reclamando ao diretor do IBEU-CE, dizendo que eu não era capacitado e merecedor do prêmio. O diretor afirmou: “Quem é você para subjugar a qualidade do trabalho do artista premiado, da curadoria formada por especialistas doutorados, renomados e famosos, e curadores conhecidos no Brasil inteiro?”
Mediante esses fatos e as perseguições, opressões e preconceitos que sofri, me dei conta do peso desse prêmio, que abriu as portas do mundo para mim. O conselho de uma grande amiga, chamada Zizi, fortaleceu-me muito. Lembro bem quando ela disse: “João, este ano de 1999 é seu! Você é o premiado, você é grande e você é forte! Pra estar enfrentando todos sozinho, e superando-os, é porque você é forte e é um vencedor em todos os sentidos!”
O álbum, sim, é um dos meus preferidos. Primeiro, pela sua criação dentro de um padrão que, na época, não se trabalhava em Juazeiro do Norte. O trabalho tinha um designer inovador que eu nem mesmo sei como trabalhei. Usei técnicas aplicadas as quais foram experimentos que deram certo e foram inovadores. Ele foi o carro chefe do meu início como gravador, principalmente por representar grandes homens, santos, heróis, escritores do Nordeste, da nossa História e nossos grandes.

4 – No texto citado acima, Renato Casimiro diz, ainda, a seu respeito, que: “Pode-se notar que este seu fazer artístico tem alguns elementos muito inovadores. O primeiro que merece menção é a sua versatilidade em expressar a sua criatividade em diversos materiais, passando da madeira como a imburana, a preferida dos xilógrafos, do papel artesanal, e a cerâmica”.

JP – Sim, a inovação é necessária. Com a preservação da tradição, a xilogravura é uma arte milenar, não somente no seu surgimento no antigo Egito, mas por estar há milênios adiante do imaginário criativo, revolucionário inventivo da raça humana, todas as inovações e descobertas necessitam da xilogravura, se adaptam a ela. A exemplo, temos as novas tecnologias virtuais e digitais que são possíveis de criar qualquer tipo de gravura. Mas, para se ter uma xilogravura com originalidade, só mesmo o impresso da madeira scaneado para o uso de sua imagem. Assim, em primeiro lugar, podemos ver as frestas da madeira no impresso; em segundo lugar, se ampliarmos a imagem de uma xilo, encontramos onde passou a ferramenta cortante defeitos da fibrosidade da madeira quebrada. Tais defeitos são efeitos naturais da madeira interagindo com cortes e arranhaduras.
As inovações em meu trabalho são diárias, porque estou sempre em análise constante com relação à prática da xilogravura, que está ligada à escolha da madeira, do desenho, dos cortes, dos riscos, das escavações, impressões e aplicações. O uso diversificado de materiais como: papel, couro, tecido, porcelana, cerâmica, azulejo, teflon e o que surgir – estou sempre experimentando. Eu experimento cores, técnicas das mais diversificadas e outros elementos sobre os quais não posso falar agora, só após a publicação de um livro contendo esses mistérios da xilogravura.
Assim, há uma diversidade de matéria-prima – o vegetal – e, neste caso, tenho que trabalhar todos os tipos de madeira, por ser instrutor não só no Nordeste, mas até em outros países. Tenho que repassar técnicas de concepção da matriz de acordo com o tipo de vegetal usado, por existirem madeiras maleáveis e outras mais resistentes, umas fibrosas e outras menos fibrosas. Essas diferenças implicam na concepção da matriz, no entintamento e na pressão a ser usada no momento do impresso. Isso também é necessário para o momento de repassar aos alunos quais tipos de madeira são possíveis de se trabalhar no seu ambiente, ou região, mostrando que é possível trabalhar com o que for mais acessível.

 5 – Em matéria produzida para a Cariri Revista[2], Gilmar de Carvalho, um dos maiores pesquisadores e incentivadores da cultura popular, afirma: “João Pedro se fez com muita determinação, trabalho e com a superação das deficiências do próprio desenho, o ajuste do corte e o acabamento refinado das xilogravuras”. Neste sentido, Gilmar de Carvalho aponta para os caminhos que você seguiu na evolução de sua produção artística. Você poderia tecer um comentário sobre isto?

JP – Talvez o Professor Gilmar defina bem melhor que eu, ele conhece a mim e meu trabalho mais que eu próprio. É como falei no início: tudo é muito indefinido. A cada dia descubro possibilidades inimagináveis. Estou sempre fazendo releituras de meu próprio trabalho, buscando superar a minha própria capacidade. O muito que faço é pouco para o que posso. Estou sempre me reciclando, isso porque a insatisfação, o vazio, a “ilimitação” do infinito imaginário criativo vive comigo.

5 – A propósito, Gilmar de Carvalho afirma, na mesma matéria, o seguinte: “João Pedro é do mundo. Um artista da grandeza dele ultrapassa tempos e espaços, supera limites, vai além das convenções demarcatórias de municípios, estados, países ou continentes. O mundo é pequeno para a ambição e o desvario de João Pedro”. De fato, você transita pelo cordel, xilogravura, outras modalidades poemáticas e, agora, tem escrito memórias. O que cada uma dessas linguagens representa para você?

a)      Cordel
JP – O Cordel foi onde iniciei. Quando tinha meus dezoito anos, a literatura de cordel foi meu gibi, vivi toda minha vida com ele. Desde criança, por onde passasse na ruas de Juazeiro sempre encontrava os folheteiros vendedores com os cordéis numa mala, ou espalhados numa lona, no chão, enquanto eles liam em alta voz para chamar atenção dos transeuntes. Vizinho à minha casa, morava seu José dos Santos, um senhor de idade que, pelas manhãs, estava na rua vendendo cordéis, romances, novenas, orações e etc., e à tarde, após o almoço, ele sentava numa sombra em frente à sua casa lendo cordéis para a criançada. Era um paraíso lendário de contos e encantos cheios de reis, rainhas, princesas, bandidos, heróis, cangaceiros, como: Lampião, Antônio Silvino, Jararaca, Corisco, Sabonete e outros mais. Também apareciam santos nordestinos, como Padim Ciço e Frei Damião – este que, na época, já caminhava pelo Nordeste com seus sermões. O cordel me faz usar meu imaginário criativo cheio de encantos e me aproxima do estilo dos poetas antigos que têm como marca a vivência do que é popular, como os contos, as tradições, os valores regionais e etc.

b)     Xilogravura
JP – A xilogravura é minha vida, meu prazer, minha realização de sonhos, minha maior conquista, minha filha! As xilogravuras são vidas adormecidas na madeira que eu desperto, trazendo o tempo e o espaço com suas linguagens e forças próprias. Sem a xilogravura não saberei mais viver. Com ela, tudo é possível, porque ela é a vida.

c)      Poemas
JP – Poemas são partes de mim, minha essência, fui e sou muito romântico! Tenho essa parte dentro de mim, embora o mundo hoje já não aceite mais o romântico, o carinhoso, o amoroso, o fervor ardente do amor. Poemas, poesias, sonetos e etc. estão sempre surgindo, principalmente, à noite. Noite que adoro! A lua e a mulher, pela sua beleza, candura, formosura e delicadeza. A mulher me encanta e me inspira, o lado angelical, sensível e encantador da mulher me faz poeta.

d)     Memórias
JP – Memória é um mundo que tenho dentro de mim, o qual é cândido, puro, inocente, belo, divino, educado, obediente, caridoso, sem preconceito, cheio de paz, obediência, respeito, integridade, confiança, liberdade, paz, felicidade, experiência e amor. São modos de vida que queria hoje para meus filhos e netos, viver com confiança no ser humano, viver no mundo sem medo, com segurança obediente sem necessidade de tantas leis quais só reativaram as infrações. As memórias são formas novas de literatura que eu escrevo, mas também escrevo manuais didáticos, teóricos e técnicos sobre xilogravura. E mais: crônicas e cartas, em que discuto religião e, às vezes, até tento ser filósofo. Tenho uma grande diversidade de textos. São textos que surgem durante a noite, quando estou trabalhando, entalhando, desenhando ou imprimindo gravuras. De repente, na calada da noite, surgem os textos. Paro o que estou fazendo e começo a escrever palavras que vão surgindo na minha mente, inexplicavelmente, formando palavras e textos, que eu mesmo me surpreendo pela capacidade de escrever algo que eu não pensava em elaborar, e que surgiram sem pensamento ou formalização. Esse é mais um dos motivos pelo qual digo que não posso me definir, porque não conheço a mim mesmo, faço o que gosto sem saber o que faço e, a maioria do que faço, surge por acaso, de imediato na minha mente e tenho que fazer instantaneamente. Do contrário, poderia esquecer se não aproveitar o momento fértil da inspiração. Surgem muitas palavras em mim, que emanam de uma fonte transbordante transpessoal ou astral.

6 – Um dos seus textos que mais me chamou atenção foi o texto “Célia”, que está contido em seu livro autobiográfico. Neste texto, você conta como conheceu sua esposa e como aconteceu seu casamento. Ele me fez rever a cidade de Juazeiro do Norte do final dos anos 1980 e do início de 1990. Quando você descreve as festas juninas, é inevitável que a gente não volte no tempo e relembre as cenas daquele tempo com nostalgia. Você poderia comentar sobre este texto? Célia é sua esposa num casamento que lhe rendeu três filhos e alguns netos. Você recomenda o casamento? O que sua família representa em sua vida?

JP – Sim, recomendo o casamento! Deus fez o homem e a mulher para dar continuidade à sua criação. A união do homem e da mulher para a construção da família é fundamental para os desígnios de Deus. Por exemplo, temos a união de José e Maria para o nascimento do filho de Deus. O criador não necessitava, mais assim o fez para mostrar ao mundo que até mesmo o todo poderoso, para enviar seu filho ao mundo, escolheu um homem e uma mulher. Maria é a única mãe que é filha do filho, mãe do verbo encarnado. São Paulo, em sua epístola, diz: “Se é de viver ardendo na chama do amor, é melhor que se case”. A família é sagrada nos céus e na terra.
O texto “Célia”, se pudesse, teria escrito com tinta de sangue do coração. Ela é tudo para mim, toda minha realização está com ela. É como diz o ditado: “Por traz de um grande homem, tem sempre uma grande mulher”. Não sou grande, mas tudo que conquistei agradeço a Deus e a ela. Ela é mais forte do que eu, nela vi a verdadeira força de um ser humano, a força de todas as mulheres está nela, a bravura, a doçura, a candura, a beleza, a perfeição, a sinceridade, a verdade, a sabedoria, a caridade, a maternidade e o amor puro. O que escrevi no texto sobre ela é pouco, ela é uma deusa!

7 – Mais uma vez recorrendo à matéria de Gilmar de Carvalho, já mencionada, ele comenta: “João Pedro dorme pouco, fuma feito uma caipora, toma café de garrafa e trabalha feito um condenado”. Este ritmo o fez adoecer e passar por problemas de saúde. Como foi esta experiência e como isto repercutiu em sua produção artística?

JP – A noite é uma deusa fértil inspiradora e bondosa. Na noite, eu posso tudo, posso ser artista, escritor, poeta, filósofo, orador fervoroso, conversar com Deus, captar os sonhos dos que dormem para realizar meus trabalhos e, quando eles acordarem, encontrarem o que desejavam achar. E, de certo modo, realizarem o que desejam e realizarem o meu sonho de realizar o sonho deles e me realizar através deles!
A doença foi, por amor, no coração. Com ela, eu pude encontrar com Deus que me sustenta até hoje. Sou o homem mais feliz e sortudo! Tenho quatro pontes mamárias e safenas, seis cateterismos, uma angioplastia com três stentes, uma arteriografia com um stent, uma trombose, vários começos de infartos. Vivo sustentado por medicamentos e, na falta deles, eu morreria. Só mesmo Deus para um ser vivente continuar vivo com tudo que já passei. Morri umas cinco vezes e retornei à vida. Graças a Deus, sou o homem mais feliz da vida! Só tenho a agradecer à Santíssima Trindade todos os dias e horas de vida que tenho! Obrigado, Deus, Jesus Cristo, Divino Espírito Santo! Meu Padim Çiço e a Virgem Maria!

8 – Você aborda muitos temas em suas xilogravuras. Qual deles você mais gosta?

JP – A iconografia nordestina, toda história infinda do meu sertão.

9 – Para concluir, vou entrar numa área bem subjetiva. Neste sentido, queria perguntar a você o seguinte: você é feliz? Tem algum sonho que ainda não realizou?

JP – Sim, sou feliz, porque um matuto chegar aonde cheguei! Tenho uma família exemplar, já consegui, com meu trabalho, vários prêmios, menção honrosa, realizei exposições em vários países e conheci outros. Escrevi, ainda, dezenas de cordéis e escrevi vários livros. Considerado um dos melhores professores da arte de gravar, em 2004, no jornal, fui descrito como o maior artista do Brasil. Quando fui para Portugal, fui como artista, professor e pesquisador, tanto no convite quanto na publicação no Jornal Diário do Nordeste.  O que um matuto pode querer mais? Dou graças a Deus!
            O sonho não realizado é o de não poder mudar o mundo. Enquanto isso, vou mudando a mim e buscando fazer o máximo, que é pouco para o muito que tenho a fazer. Este é meu sonho a realizar.

10 Você considera importante que as pessoas professem uma crença religiosa?

JP – Sim, as religiões foram criadas para suprir a fraqueza das pessoas. As crenças são como pedaços de uma carta, e essa carta é Deus. Mas o homem precisa crer, pois crendo ele acreditará nele mesmo e, acreditando nele, acreditará em Deus e o encontrará dentro de si.
 “As religiões não são os meios de encontrar-se com Deus. A fé em Deus é a forma de encontrar-se com Ele dentro de nós, onde Ele sempre esteve”.

11 – E, por último, devo perguntar: como você definiria a vida?

JP – A vida é o que você planta! Temos que plantar árvore que dê bons frutos para a posteridade, para lembrarem que você plantou algo benéfico, para saciar a fome: material, mental e espiritual.

Émerson Cardoso 
09/06/018









[1] CASIMIRO, Renato. João Pedro. In: Xilogravura: a arte de gravar (Catálogo das Exposições Itinerantes e Oficina de Xilogravura realizadas pelo CCBNB em Araripe, Mossoró e Juazeiro do Norte). Fortaleza – CE: 2006.
[2] CARVALHO, Gilmar. João Pedro do Juazeiro e do mundo. In: Cariri Revista, n. 07, Juazeiro do Norte, p. 49 – 52, out. 2012.  

terça-feira, 27 de março de 2018

A ILUSTRE SENHORA DA RUA DE SÃO BENEDITO


(Para Etelvina Cabral)

Maria Raquel da Conceição. Era este seu nome. O nome de uma das mulheres mais fortes que já conheci. E quando digo forte não digo apenas por sua imponente estatura e fortaleza do corpo, que eram características notáveis, mas por ela ser uma mulher que suportou muitas dores na vida.
Estou vendo-a agora, sentada à cabeceira direita da mesa, sempre impetuosa e capaz de impor a quem quer que fosse aquele seu modo de ser. Impressionava que uma mulher que não estudou soubesse tanto. Era capaz de dizer com educação as mais duras palavras, mas sabia dizer a verdade também sem poupar o ouvido daquele que merecesse uma boa exortação.
Lembro-me sempre dela e, quando a trago à memória, é como se ela ainda estivesse na velha casa da Rua de São Benedito na qual ela viveu a maior parte da vida.  
Os netos e bisnetos chamavam-na de Mãezinha. Ela era cheia de manias: tinha a xícara em que costumava tomar os fortes cafés que muito estimava; o cachimbo que fumava apertando bem o fumo com uma brasa; a colher que ela dizia que era sua e com a qual sempre comia; os longos vestidos pregueados; a trança (meu Deus, a protegida trança de palha que ela produzia pacientemente para fazer chapéu e que, se alguém molhasse, poderia ser punido ferozmente); o anel de ouro que tinha a letra inicial do seu filho Ivo, que morreu em Goiás; as sandálias da marca Samello, pretas e de rosto; as mãos compridas e cheias de veias sobre a mesa; o olhar atento que dava com a porta da entrada que vivia sempre aberta para quem quer que fosse (mesmo sob protesto da filha que não casou e que se sentia invadida com a muita visitação da casa) e o cabelo muito crespo e grisalho que prendia em nó centralizado sobre a cabeça com auxílio de vaselina e de um pente preto. 
Na casa da Rua de São Benedito havia algo que muito lembra Dona Maria Raquel: a imagem de uma Nossa Senhora das Dores que ela conservava há anos num zelo sem tamanho. A santa tinha um manto azul com detalhes dourados e o rosto de tristeza pelo filho na cruz. Eu sempre contemplei àquela imagem e só me vinha à mente a ideia de que se um dia alguém a quebrasse Dona Maria Raquel, além de ficar muito triste, poderia matar o desastrado.
O Coração de Jesus, muito antigo, ficava logo acima da mesa do santo. A moldura deveria ter sido produzida no começo do século XX. Havia outros santos muitos: na porta da entrada estava o Padre Cícero e, na outra porta, que tinha sido fechada há séculos, estava São João segurando o carneirinho tranquilamente. A renovação da casa acontecia no dia de São Pedro. Neste dia, Dona Maria Raquel ficava pensativa e, às vezes, chorosa.
Nascida em Barbalha, no dia 15 de abril de 1917, veio para o Juazeiro do Norte ainda menina. Com certeza, como muitos nordestinos que fizeram a vida nesta terra, veio por estar certa de que poderia contar com a proteção do Padre Cícero. E assim foi. Ela mesma disse-me várias vezes que na terrível seca de 1932, quando seu pai precisou sair da cidade à procura de trabalho, ela ficou com a mãe e o irmão mais novo em situação de muita privação. Ao contar suas histórias do “outro tempo” (era assim que ela se referia a seu passado) costumava fazer inúmeras pausas.  
Ela, certa vez, num dia de domingo, ao contar esse episódio de sua vasta vida começou a chorar lembrando-se certamente da mãe e do irmão naquele tempo de sofrimento. Sua mãe estava fraca e o irmão estava de “beiço branco” de fome – era neste trecho que ela costumava chorar –, aí aproveitou que uma madrinha ia à casa do Padre Cícero pedir ajuda e a acompanhou. Como a menina Maria Raquel sabia que no Buriti, caminho do Crato, o povo ia buscar mantimento mandado pelo governo, para os flagelados da seca, ela decidiu que deveria pedir consentimento ao padre e ir com sua mãe para tentar conseguir algum auxílio.
Ao chegar ao casarão da Rua São José, local em que o padre morava, ela teve que pedir três vezes até escutar a enérgica pergunta do padre tido como santo: “Você quer que sua mãe morra?” Ao que ela respondeu: “Quero não, meu Padim!” E ele disse mais uma vez: “Pois se sua mãe for ela vai morrer, já viu?” E chamando uma das beatas que o auxiliava, ordenou que entregasse à menina alguns “tões” e alguns “vinténs”, e ordenou que a menina fosse buscar o dinheiro todo dia. Ela recebeu a quantia por quase três meses. Ao receber a quantia pela primeira vez, ela foi para a feira e comprou alguns mantimentos e uma pequena quantidade de fumo que sua mãe, quando a recebeu em plena felicidade, começou a chorar. E Dona Maria Raquel, lembrando-se da mãe, chorava também.
Além desta história que eu escutei várias vezes, sem que ela nunca se contradissesse, lembro-me de suas recordações sobre um gato. Ela dizia que só tinha sorte se criasse gata, porque gato dava problema.
Certa vez, ganhou um “gato macho”, quando meninota, e um dos irmãos chutou o bendito gato não se sabe o porquê. Segundo ela, houve uma briga tão dos diabos que eles derrubaram uma parede. Ela dizia rindo que o irmão disse a seguinte desfeita: “Vou olhar se essa nega é homem, ou mulher!” Foi briga feia e intriga por toda uma vida.
Além de ter convivido com o Padre Cícero e ter brigado em defesa de seu animal de estimação, ela também colocou vela na mão de muitos que estavam agonizando e foi parteira. Muitas crianças nascidas na Rua de São Benedito, daquela época, foram colocadas no mundo com sua ajuda – ela tinha equilíbrio emocional invejável.  
E agora me vieram lembranças engraçadas sobre ela. Ela dizia “chacolate” ao invés de chocolate, gostava de dizer: “Abra do olho!” – dizia isto para que seu interlocutor se orientasse de alguma coisa errada que estivesse fazendo. Hilários eram os seus embates com a comadre Missia, sua cunhada que era ranzinza, embora fosse boa pessoa. Ela era bem magra e Dona Maria Raquel vivia rindo das magrezas dela. Missia dizia que só andava naquela casa porque tinha Maria lá. De fato, Missia deixou muito de visitá-la depois que Dona Maria se foi.
Dona Maria Raquel dizia que, um dia feliz, iria comprar um rádio para escutar só a Rádio Progresso AM de Juazeiro do Norte. Após o almoço, era comum alguém entrar na casa e vê-la deitada no canto da parede, com a cabeça sobre a “forma” de chapéu forrada com um pano, cochilando enquanto a Rádio Progresso falava. Rádio Progresso, eis a marca maior de Dona Maria Raquel. Ouvinte assídua desta rádio, ai de quem mudasse a sintonia! Em certo domingo, antes do almoço, ela ouviu Altemar Dutra cantar a canção O Troco, e chorou muito. Eu observava sem entender e sem saber o que dizer. O que lembrava ou de quem se lembrava naquele momento?
Um retrato triste me vem quando reencontro a casa em minha memória. Abre-se a porta da sala e há um corredor, no corredor há duas portas que dão para dois quartos e, no meio do corredor, sempre de pé, está uma máquina de costura. Logo à frente, na sala de jantar, está ela, sentada na ponta da mesa numa cadeira forrada com um tipo de couro que não sei quem lhe deu. A rádio progresso, a televisão ou a trança de chapéu de carnaúba a distraem.
Eu não queria falar sobre a ida de Dona Maria Raquel, mas a viagem que ela fez é algo inevitável para todos nós. Eu queria, em verdade, falar só sobre o quanto aquela senhora, de presença tanta, representou para mim. Nos últimos dias que a encontrei, eu comemorava a aprovação no vestibular – eu tinha passado para o Curso de Letras, que mudou minha vida. Ela, já doente, olhou para mim, na calçada da casa da Rua de São Benedito, e disse, chorando, que estava muito feliz por mim e que eu ia ser uma coisa grande. Eu ia ser uma coisa grande! Na simplicidade das palavras, ela disse algo que eu nunca soube se serei, no entanto que eu luto sempre para ser.
Dona Maria Raquel foi o porto seguro de muita gente. Foi rigorosa quando achou que deveria ser. Para alguns, pode ter sido injusta, mas também foi um ser humano sofrido, que lutou sempre para sobreviver, que teve muito motivo para desistir da vida, no entanto não o fez. Corajosa, tornou-se mais que uma simples mulher de fortaleza incalculável. Foi, antes de tudo, grande. E foi grande para ser porto seguro de tantas pessoas que, como eu, precisariam ao menos de sua presença reconfortante e que assegurava tanta força para todos.
Entrar na casa da Rua de São Benedito e não ver Dona Maria Raquel, aquela que foi nossa maior, é muito doloroso. Então gravo, para sempre, neste texto tão simples, a lembrança dessa figura de personalidade ímpar. Como sei que um dia nos reencontraremos, ficarei apenas esperando o grande dia do nosso reencontro, aí vou dizer o quanto foi difícil perder, por toda uma vida, a nossa figura tão grandiosa.                                                                                                                                                                                              
                                                                                                                                                 Émerson Cardoso
15/04/09

sexta-feira, 23 de março de 2018

NOTAS SOBRE LÍNGUA PORTUGUESA


·     Formada por um conjunto de signos linguísticos, a língua dispõe de regras específicas para organização e combinação das palavras, que se alteram ao longo do tempo, conforme mudam os aspectos culturais e históricos da comunidade linguística.

·  Entre os falantes, existem diferenças que podem ter impacto na língua. Uma das variações mais perceptíveis está relacionada às diferenças no uso da língua portuguesa nas diversas regiões do mundo. Particularidades lexicais e diferentes pronúncias são alguns dos aspectos que distinguem as variedades do português.

·      A propósito da língua portuguesa, devemos dizer que ela é oficial nos seguintes países: Portugal, Brasil, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e Timor-Leste. Além disso, Macau, na China, e Goa, na Índia, também têm comunidades falantes do português. Em 2014, a Guiné Equatorial também incluiu a língua portuguesa como língua oficial.

·   Sobre o ensino da língua, Marcuschi (2008, p. 51) sugere que “deva dar-se através de textos”. Ele enfatiza, ainda, o fato de que esta postura é consenso tanto entre linguistas teóricos como aplicados. Essa proposta é uma prática comum na escola e orientação central dos PCNs, e a questão, para o autor, não reside no consenso ou na aceitação deste postulado, mas no modo como isto é posto em prática, já que muitas são as formas de se trabalhar textos.

·   Desse modo, apresentamos, a seguir, alguns textos para que, a partir deles, possamos desenvolver reflexões sobre a aplicabilidade de conteúdos gramaticais diversos.

 

GRAMÁTICA APLICADA AO TEXTO

 1 – Análise comparada de textos que discorrem sobre a Língua Portuguesa:                                                                                                                   

                                                                   Língua Portuguesa

 

Última flor do Lácio, inculta e bela,

és, a um tempo, esplendor e sepultura:

ouro nativo, que na ganga impura

a bruta mina entre os cascalhos vela...

 

amo-te assim, desconhecida e obscura,

tuba de alto clangor, lira singela,

que tens o trom e o silvo da procela,

e o arrolo da saudade e da ternura!

 

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

de virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

 

em que da voz materna ouvi: “meu filho”!

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

o gênio sem ventura e o amor sem brilho!

 (Olavo Bilac)

 

A FORÇA DO DESTINO 

Língua portuguesa, que é [...] um feudo forte e lírico ao mesmo tempo. Um barco que até hoje singra generoso o Atlântico, ora consolando Portugal, ora perturbando o Brasil. E porque esta língua tem vocação marítima, entende bem os impróprios do vento, mais que qualquer outra se deixa levar pelos sentimentos. Os ais e os prantos a seduzem tanto, que esta língua busca as estradas das mágoas que só ganharão o corpo e expressão através de seus recursos. E porque se orgulha, de rosto e sexo ardentes, é capaz de saber, apenas pelo apito do trem, se quarta-feira é dia dos amantes usarem-na quando se querem perder para sempre.

(Nélida Piñon)