(Para Etelvina Cabral)
Maria Raquel da
Conceição. Era este seu nome. O nome de uma das mulheres mais fortes que já
conheci. E quando digo forte não digo apenas por sua imponente estatura e fortaleza
do corpo, que eram características notáveis, mas por ela ser uma mulher que
suportou muitas dores na vida.
Estou vendo-a agora, sentada à cabeceira direita da mesa, sempre
impetuosa e capaz de impor a quem quer que fosse aquele seu modo de ser.
Impressionava que uma mulher que não estudou soubesse tanto. Era capaz de dizer
com educação as mais duras palavras, mas sabia dizer a verdade também sem
poupar o ouvido daquele que merecesse uma boa exortação.
Lembro-me sempre dela e, quando a trago à memória, é como se ela ainda estivesse
na velha casa da Rua de São Benedito na qual ela viveu a maior parte da vida.
Os netos e bisnetos chamavam-na de Mãezinha. Ela era cheia de manias:
tinha a xícara em que costumava tomar os fortes cafés que muito estimava; o
cachimbo que fumava apertando bem o fumo com uma brasa; a colher que ela dizia
que era sua e com a qual sempre comia; os longos vestidos pregueados; a trança (meu Deus, a protegida trança de palha que ela produzia pacientemente para fazer
chapéu e que, se alguém molhasse, poderia ser punido ferozmente); o anel de ouro
que tinha a letra inicial do seu filho Ivo, que morreu em Goiás; as sandálias
da marca Samello, pretas e de rosto;
as mãos compridas e cheias de veias sobre a mesa; o olhar atento que dava com a
porta da entrada que vivia sempre aberta para quem quer que fosse (mesmo sob
protesto da filha que não casou e que se sentia invadida com a muita visitação
da casa) e o cabelo muito crespo e grisalho que prendia em nó centralizado
sobre a cabeça com auxílio de vaselina e de um pente preto.
Na casa da Rua de São Benedito havia algo que muito lembra Dona Maria
Raquel: a imagem de uma Nossa Senhora das Dores que ela conservava há anos num
zelo sem tamanho. A santa tinha um manto azul com detalhes dourados e o rosto
de tristeza pelo filho na cruz. Eu sempre contemplei àquela imagem e só me
vinha à mente a ideia de que se um dia alguém a quebrasse Dona Maria Raquel,
além de ficar muito triste, poderia matar o desastrado.
O Coração de Jesus, muito antigo, ficava logo acima da mesa do santo. A
moldura deveria ter sido produzida no começo do século XX. Havia outros santos
muitos: na porta da entrada estava o Padre Cícero e, na outra porta, que tinha
sido fechada há séculos, estava São João segurando o carneirinho
tranquilamente. A renovação da casa acontecia no dia de São Pedro. Neste dia,
Dona Maria Raquel ficava pensativa e, às vezes, chorosa.
Nascida em Barbalha, no dia 15 de abril de 1917, veio para o Juazeiro do
Norte ainda menina. Com certeza, como muitos nordestinos que fizeram a vida
nesta terra, veio por estar certa de que poderia contar com a proteção do Padre
Cícero. E assim foi. Ela mesma disse-me várias vezes que na terrível seca de
1932, quando seu pai precisou sair da cidade à procura de trabalho, ela ficou
com a mãe e o irmão mais novo em situação de muita privação. Ao contar suas
histórias do “outro tempo” (era assim que ela se referia a seu passado) costumava
fazer inúmeras pausas.
Ela, certa vez, num dia de domingo, ao contar esse episódio de sua vasta
vida começou a chorar lembrando-se certamente da mãe e do irmão naquele tempo
de sofrimento. Sua mãe estava fraca e o irmão estava de “beiço branco” de fome
– era neste trecho que ela costumava chorar –, aí aproveitou que uma madrinha ia
à casa do Padre Cícero pedir ajuda e a acompanhou. Como a menina Maria Raquel
sabia que no Buriti, caminho do Crato, o povo ia buscar mantimento mandado pelo
governo, para os flagelados da seca, ela decidiu que deveria pedir
consentimento ao padre e ir com sua mãe para tentar conseguir algum auxílio.
Ao chegar ao casarão da Rua São José, local em que o padre morava, ela teve que
pedir três vezes até escutar a enérgica pergunta do padre tido como santo:
“Você quer que sua mãe morra?” Ao que ela respondeu: “Quero não, meu Padim!” E
ele disse mais uma vez: “Pois se sua mãe for ela vai morrer, já viu?” E
chamando uma das beatas que o auxiliava, ordenou que entregasse à menina alguns
“tões” e alguns “vinténs”, e ordenou que a menina fosse buscar o dinheiro todo
dia. Ela recebeu a quantia por quase três meses. Ao receber a quantia pela primeira vez,
ela foi para a feira e comprou alguns mantimentos e uma pequena quantidade de
fumo que sua mãe, quando a recebeu em plena felicidade, começou a chorar. E
Dona Maria Raquel, lembrando-se da mãe, chorava também.
Além desta história que eu escutei várias vezes, sem que ela nunca se
contradissesse, lembro-me de suas recordações sobre um gato. Ela dizia que só
tinha sorte se criasse gata, porque gato dava problema.
Certa vez, ganhou um “gato macho”, quando meninota, e um dos irmãos chutou
o bendito gato não se sabe o porquê. Segundo ela, houve uma briga tão dos
diabos que eles derrubaram uma parede. Ela dizia rindo que o irmão disse a
seguinte desfeita: “Vou olhar se essa nega é homem, ou mulher!” Foi briga feia
e intriga por toda uma vida.
Além de ter convivido com o Padre Cícero e ter brigado em defesa de seu
animal de estimação, ela também colocou vela na mão de muitos que estavam
agonizando e foi parteira. Muitas crianças nascidas na Rua de São Benedito, daquela
época, foram colocadas no mundo com sua ajuda – ela tinha equilíbrio emocional
invejável.
E agora me vieram lembranças engraçadas sobre ela. Ela dizia “chacolate” ao invés de
chocolate, gostava de dizer: “Abra do olho!” – dizia isto para que seu
interlocutor se orientasse de alguma coisa errada que estivesse fazendo. Hilários
eram os seus embates com a comadre Missia, sua cunhada que era ranzinza, embora fosse boa pessoa. Ela era bem magra e Dona Maria Raquel vivia
rindo das magrezas dela. Missia dizia que só andava naquela casa porque tinha
Maria lá. De fato, Missia deixou muito de visitá-la depois que Dona Maria se
foi.
Dona Maria Raquel dizia que, um dia feliz, iria comprar um rádio para escutar só
a Rádio Progresso AM de Juazeiro do Norte. Após o almoço, era comum alguém
entrar na casa e vê-la deitada no canto da parede, com a cabeça sobre a “forma”
de chapéu forrada com um pano, cochilando enquanto a Rádio Progresso falava.
Rádio Progresso, eis a marca maior de Dona Maria Raquel. Ouvinte assídua desta
rádio, ai de quem mudasse a sintonia! Em certo domingo, antes do almoço, ela
ouviu Altemar Dutra cantar a canção O
Troco, e chorou muito. Eu observava sem entender e sem saber o que dizer. O
que lembrava ou de quem se lembrava naquele momento?
Um retrato triste me vem quando reencontro a casa em minha memória. Abre-se
a porta da sala e há um corredor, no corredor há duas portas que dão para dois
quartos e, no meio do corredor, sempre de pé, está uma máquina de costura. Logo
à frente, na sala de jantar, está ela, sentada na ponta da mesa numa cadeira
forrada com um tipo de couro que não sei quem lhe deu. A rádio progresso, a televisão
ou a trança de chapéu de carnaúba a distraem.
Eu não queria falar sobre a ida de Dona Maria Raquel, mas a viagem que
ela fez é algo inevitável para todos nós. Eu queria, em verdade, falar só sobre
o quanto aquela senhora, de presença tanta, representou para mim. Nos últimos
dias que a encontrei, eu comemorava a aprovação no vestibular – eu tinha
passado para o Curso de Letras, que mudou minha vida. Ela, já doente, olhou
para mim, na calçada da casa da Rua de São Benedito, e disse, chorando, que
estava muito feliz por mim e que eu ia ser uma coisa grande. Eu ia ser uma
coisa grande! Na simplicidade das palavras, ela disse algo que eu nunca soube
se serei, no entanto que eu luto sempre para ser.
Dona Maria Raquel foi o porto seguro de muita gente. Foi rigorosa quando
achou que deveria ser. Para alguns, pode ter sido injusta, mas também foi um
ser humano sofrido, que lutou sempre para sobreviver, que teve muito motivo para
desistir da vida, no entanto não o fez. Corajosa, tornou-se mais que uma
simples mulher de fortaleza incalculável. Foi, antes de tudo, grande. E foi
grande para ser porto seguro de tantas pessoas que, como eu, precisariam ao
menos de sua presença reconfortante e que assegurava tanta força para todos.
Entrar na casa da Rua de São Benedito e não ver Dona Maria Raquel, aquela
que foi nossa maior, é muito doloroso. Então gravo, para sempre, neste texto
tão simples, a lembrança dessa figura de personalidade ímpar. Como sei que um
dia nos reencontraremos, ficarei apenas esperando o grande dia do nosso
reencontro, aí vou dizer o quanto foi difícil perder, por toda uma vida, a
nossa figura tão grandiosa.
Émerson Cardoso
15/04/09
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