Foto: Pablo Pinheiro |
A sensação que tenho, depois de ver as duas
apresentações da peça teatral Abrazo,
dirigida por Marco França, é de encantamento. Lirismo, irreverência, densidade
temática e sutileza são os ingredientes por excelência do texto. Atrelado a
isto, a peça conta com um elenco que se reveza ao dar vida, com maestria, a
diversas personagens. É um espetáculo digno de nota e reverência!
Nos dias 13 e 14 de março de 2018, no Teatro SESC
Patativa do Assaré, de Juazeiro do Norte, um trio do Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal – RN, apresentou a segunda
parte da trilogia latino-americana Abrazo.
Camille Carvalho, Dudu Galvão e Paula Queiroz realizaram proezas cênicas dignas
dos maiores elogios. A segurança no revezamento das personagens, o carisma, a
preparação corporal, as expressões faciais e a entrega ao universo que tentam
expressar com economia de palavras são aspectos que devem ser considerados. O
trio consegue uma unidade na construção do ato cênico que salta aos olhos. Tudo
é harmônico, bem articulado, construído com minúcias.
Diante disto, não poderia ser diferente: o
espetáculo foi um sucesso! Nos dois dias em que foi apresentado, o teatro esteve
lotado, o público (constituído de adultos e crianças) aplaudiu de pé com
visível entusiasmo. Foi, de fato, uma experiência enriquecedora ter visto,
através do SESC, esse Grupo privilegiar o Cariri com seu talento e beleza.
Além da direção e do elenco serem magistrais, devo
ressaltar aspectos técnicos que ampliam o encanto do espetáculo: a trilha
sonora, o figurino, a cenografia, a cenotecnia e as animações também merecem
elogios. A peça conta, ainda, com acessibilidade para pessoas com deficiência
visual, uma vez que apresenta audiodescrição. O roteiro e argumento dramatúrgicos
são de César Ferrario e o roteiro de audiodescrição é de Karol Nascimento. A
produção da peça, no Cariri, ficou por conta da atriz Rita Cidade – uma das mais
completas artistas que conheço.
Quanto à história contada, Abrazo é resultado de larga pesquisa histórico-cultural sobre a
América Latina e traz reflexões sobre: ditadura, morte, amor, liberdade,
desencontro amoroso, dentre outros pontos. Temas densos, como a tortura
impetrada pela ditadura, irrompem com sutileza, mas com o grau de profundidade
que o tema exige.
Do ponto de vista enredístico, as personagens
apresentadas estão inseridas em um espaço em que preponderam, já no início da história, inúmeras proibições. O título evoca uma destas proibições: as
pessoas não podem se abraçar. O General – que em determinados momentos termina
por demonstrar que vive de reprimir até suas próprias pulsões – parece querer
boicotar, com a interdição do abraço, a demonstração de afetividade entre as
pessoas. Ele só não conta com o fato de que as pessoas podem se reunir e, desse
modo, se fortalecer contra o despotismo de líderes políticos desalmados. Em meio a essa realidade conflitante, surge o amor entre um Rapaz e uma Florista. Eles encontram um no outro ternura e afetividade, mas são impossibilitados de vivenciar tais experiências porque o amor que sentem está perpassado por coerções advindas do cenário político que representa ausência completa de liberdade. Sequer eles podem demonstrar afeto por meio do abraço, pois lhes foi tirado este direito.
Algumas cenas são emblemáticas, do meu ponto de
vista: 1) o General atravessa o palco em marcha puxando um exército de patinhos
amarelos (qualquer semelhança com a realidade política brasileira não é mera
coincidência!), 2) o General, temporariamente livre de suas autorrepressões, dança
com uma rosa na boca e ensaia passos de balé clássico, 3) a Florista e o Rapaz
despedem-se na estação sem que possam se abraçar, 4) o General tortura a
Florista, 5) o Rapaz procura a Florista e a espera enquanto as estações do ano
passam e, ao final, seu coração se parte e ele segue sozinho (um pássaro metaforiza
o caminho de solidão que ele percorre) e 6) o Menino e a Vovó abraçam-se após
ficarem livres do jugo ditatorial.
Dentre as cenas que menciono, permaneceu com maior ênfase
em minha memória a cena em que a Florista contraria o General e, por isto, é presa
e torturada. A tortura a que o General a submete é construída por meio da simbologia de uma rosa que ele fustiga e atira numa espécie de varal em que
repousam outras rosas que, como fica sugerido, também são vítimas do mesmo tipo
de violência.
Essa cena confirma o que já apontei: temas densos
são trabalhados em Abrazo com muita sutileza.
Isto não quer dizer que a tortura, a morte e a tirania são apresentadas de modo
superficial – superficialidade é algo que não ocorre em nenhum momento na peça.
Em decorrência do público a que se direciona, se mostrou necessário um tratamento
não explícito desses aspectos configuradores de violência e, desse modo, a peça
ganhou em originalidade: tudo passa por um crivo da metaforização e exige que a
plateia esteja atenta aos seus aspectos polissêmicos.
Em suma, Abrazo,
que foi inspirada na obra O livro dos
abraços, de Eduardo Galeano, é pertinente porque, além de proporcionar entretenimento
de qualidade, nos instiga à reflexão sobre luta em tempos sombrios. E, mais do
que isto, proporciona a fruição porque, como arte no melhor sentido do termo, amplia-nos
a sensibilidade e abre-nos os olhos para concepções mais críticas acerca da
realidade. Abrazo é, portanto, uma
peça indispensável para quem pensa o mundo e deseja liberdade. Que privilégio
ter visto esse espetáculo!
Émerson Cardoso
15/03/2018
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