sexta-feira, 29 de outubro de 2021

DESPEDIDA DA SÉRIE "POSE"


Pose tem três temporadas. Série transmitida entre junho de 2018 e junho de 2021, foi a que mais trouxe no elenco pessoas trans dando-lhes protagonismo. Ela trouxe profunda reflexão sobre vida, morte, superação, amizade e tantos outros temas.

Pose trouxe personagens de sensibilidade transbordante. Dificilmente Blanca será esquecida em sua capacidade de acreditar nos outros e em si mesma, Elektra em sua elegância arrogante e Angel em sua beleza ingênua. 

Mesmo diante de personagens que aparentam encerrar em si o pior do caráter, ainda elas trazem perspectivas valiosas para a reflexão sobre o que é ser e estar no mundo quando tudo lhes é negado. As pessoas tendem a criar mecanismos de defesa, porque a vida nem sempre lhes possibilita riso e festa.

Essas personagens, no entanto, têm os bailes. Neles, é possível brilhar, ter aceitação e construir vínculos. Blanca, Elektra e outras mães representam lideranças das casas que se tornam abrigos para pessoas excluídas socialmente.

Assim, surgem figuras singulares para construírem o dinamismo da série: Candy, Lulu, Papi, Damon, Ricky, Judy, Lemar e o grande Pray Tell. Todas podem agir bem ou mal, pois o que está em jogo na vida delas é transformar abandono em forças para sobreviver ao caos do mundo.  

Se me perguntassem qual o tema principal da série, eu diria que é solidariedade (que é personificada pela personagem Blanca Evangelista). A solidariedade se manifesta de várias formas, porque ela apresenta um panorama histórico que compreende as décadas de 1980 e 1990 (inicia em 1986 e termina em 1998). Com isso, ela aponta para um tema tão complexo quanto doloroso: os primeiros casos de AIDS e o preconceito que essa doença trouxe como consequência. Além disso, ela traz a resistência e a luta para se discutir e construir espaços na política da vida contra um vírus que representou, por muito tempo, dor, abandono e morte.

Resiliência, portanto, é um tema a ser considerado nessa série. Crer no potencial do outro, e ver o que de melhor pode ser apreendido no convívio, dá a tônica nessa obra que trata de construir família fora dos padrões e das normas. 

As personagens também são passíveis de erro. Elas conseguem falhar e mesmo assim serem capazes de reconfigurar o mundo no qual estão inseridas. Humanidade tem a ver com acertos e erros, com agir no mundo e aprender enquanto se está em movimento, então Pose acerta nisso.

Foi significativo demais que essa série tenha ficado em pauta, recebido prêmios e despertado a atenção. São tempos de desconstrução, de modo que nela podemos encontrar caminhos diversos para construir novos olhares sobre política, democracia, gênero, sexualidade, homofobia, transfobia, racismo, diversidade etc. 

Algo que me chamou atenção foi o fato de que as personagens vivenciam conflitos,  rivalidades e competitividades entre elas, mas quando o assunto é proteger umas às outras, elas se unem. Elas compreendem que somente dessa maneira poderão resistir em espaço social que se compraz em marginalizá-las. 

Eu assisti comovido a essa série que é o melhor em entretenimento e o melhor em reflexão. Temos tanto a aprender quando a questão é entrar em contato com o que há de beleza e dor nas relações humanas. Assistir Pose, para mim, representou muito em aprendizagens. Que tal assisti-la?

Émerson Cardoso

29/10/2022


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

ANTÍGONA 442 a.C. (PEÇA-FILME-PONTE)

Foto: Divulgação 


Antígona, ensina-me a não calar o gesto, a não guardar a voz, a não fugir da luta. Agora, mergulhei meus pés nas sombras de tua estirpe desventurada. O girar da fortuna, Antígona, nos impele à queda, ou à altivez apesar da tirania que nos deseja arrebatar? Teus entes queridos do pó ao grito, Antígona, quero tuas mãos em meu olhar sem força.

Andrea Beltrão engoliu tua estirpe e a vomitou sobre nós, trágica irmã, com que entrega de corpo e alma! Sabe atriz impelida ao que não é medo, mas intensidade e força? Sabe mulher com olhar despido cuja vida subiu à grandeza inestimável? Sabe um ser humano que traça uma curva entre o existir e o despejar sua arte com sensibilidade para nos ampliar em alegria-dor? 

Antígona, de dentro de Andrea Beltrão percebi teus cabelos, teus olhos e tua boca jamais silente. O corpo de teu irmão, Antígona, em cenário construído no rebrilhar do gesto fez Andrea Beltrão ressuscitá-lo por ti, também matá-lo, para obrigar-te a sepultá-lo mais uma vez. Ela, atriz sem trégua, abriu caminhos para te fazer cumprir o destino em nova batalha. 

Andrea Beltrão desapareceu em cena. Não é ela quem está sob luz e direção. A estirpe de Laio entra e sai de sua voz insone, profunda e complexa. Vozes sobem e descem da atriz, que invoca filhos de Édipo para nos fazer sofrer por eles e por nós mesmos. Adereços, Antígona, ela os utilizou com maestria. Quantas vezes ela reviveu essa história nada simples tão ampla em sensibilidade e violência? 

Antígona, Andrea Beltrão é atriz que nos oferece luz nestes nossos tempos sombrios. Creonte apodreceu nas hamartias colecionadas, enquanto ela nos fez reviver mil personagens assegurada sempre pelo destemor que a perpassa. Com quem ela mais se identifica, dentre as vozes que lhe percorrem? Quando uma atriz se apaga para fazer brotar a Grécia trágica, o que dizer para ser justo no elogio que ela tanto merece? Andrea Beltrão não tem cordas que ousem tolher sua atuação irreprochável. 

Andrea Beltrão, se pudesses me ver, aqui, na plateia, poderias ler as emoções derramadas em meu olhar? Ele diria, o meu olhar, que nosso país se fraterniza com tua existência! Cada palavra tua é imersão e busca, sabes disso? Cada gesto é retorno a um tempo de antigos cabelos, sabes disso? Antígona grita destemida em tuas mãos de precisos gestos, saiba disso!

Antígona, irmã de tristeza e luta, Andrea Beltrão te honrou. Ela te honrou e fez o país reencontrar teus entes queridos com perfeição difícil de mensurar. Vamos construindo pontes, Antígona, tu com tua capacidade de reivindicar, Andrea Beltrão com a natureza tempestuosa que a fez ocupar todos os lugares do palco-tela e eu com minha escrita em busca de algum estilo.

Temos sede de honrar, também, neste momento doloroso, nossos mortos que sucumbiram pelo descaso das tiranias. Não iremos, tenho por certo, não iremos nos calar jamais. A arte abre portas e pede passagem. Esperança.

Émerson Cardoso

25/10/2021



 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

VIAGEM EM OUTUBRO QUENTE


Isto não é diário de bordo, relato de experiência ou memória. É sobre a tríade da Terra e um gato. Gatos gostam de Terra, como pulam pela própria natureza e miam em busca da mãe. 

Quando alguém viaja também está em busca. Cada um que traga a motivação para a fuga em setembro amargo, ou outubro quente. 

Gatos já nascem prontos. Nada de questões profundas de vida ou morte para ruminar. Humanos à sua volta é que estão perdidos. No tempo de sono demorado para gatos, humanos tecem fotografias. Recortes de momentos ou desenhos na alma? Ambos. Acontece que fotografar é menos pelo aparelho tecnológico e mais pelos sentidos. 

Gatos eriçam a pele quando Redemption song é cantada em noite de lua-não-cheia ao léu? Sobre a lua, os pescadores me garantiram. E era mais uma mentira. O reggae na caixa de som de um homem sentado aos pés de uma palmeira, tendo um balanço ao lado, não foi mentira. Sabe fotografia impossível de realizar? A solidão balançando de um lado para outro em ritmo noturno de mar sem trégua.

Quando ele, o gato, apareceu, era noite e a paisagem fazia festa de mal-estar. Bar amargo, café ciumento e futuro sem bancos de praça. Os gatos já nascem pobres, porém já nascem livres? Humanos nascem de maneiras diversas, mas livres talvez nunca sejam. Mesmo no impulso teimoso de Virgem, na vitalidade cômica de Capricórnio e na pasmaceira bruta de Touro, ser livre é batalha de todo sempre.

Os gatos têm medo do inesperado? Eles percorrem estradas com velocidade e atravessam curvas sem prudência? Gatos só querem miar, porque existem assim. Humanos é que se distraem em busca de. É tão bonito o que escapa ao registro. Virgem conduzindo o mundo. Capricórnio e precipícios superados. Touro, o fixo, colhendo vida no medo que não disfarça. 

Pessoas desconhecidas surgem sempre pelas vidraças. Feliz quem é, nesta vida de ausências? Talvez nem seja triste o olhar cansado dos homens e mulheres ressurgindo urgentes.

Andar com areia nos pés. Tudo sol ou noite em movimento. Passado. Presente. Futuro? A vida com seu jogo de brincar de infâncias pobres. Ela que não contava com a teimosia de três almas de vigor terrestre. Vento no rosto queima, mas ainda é resquício de liberdade. A vida sem resposta. 

O destino tem vontade de rir da gente com barulho e olhar sedento. Para ele, nossa desforra. Dançar e cantar e viver até o corpo ranger agradecido por se alegrar um pouco que seja. 

Houve a anfitriã de leveza e riso, pois Gêmeos pode ser movimento e força. Seria o caso de fugir com o circo para encontrar no mundo o direito de ser o que se é? Desencanto de pedra. Travessia em escombro. Caminhar pela noite. Não sucumbir. 

Depois, o retorno. Estrada sempre com curvas, almoço em paisagem simples, arcanos querendo voar e canções para preencher vazios. Já a rapidez engolia o tempo. 

O gato, depois de ter seus humanos nas mãos, arranjou-se em novas paragens. Ele que não chorou na despedida. A tríade de Terra, às pressas, também teve momentos de adeus. O gato ficando para trás. É que nas despedidas dançam mãos cansadas pedindo chão para repousar. O gato constatando seu lugar ao sol. Alguém cantou Valsa da despedida

Agora, bagagem aos pés. Uma questão filosófica se imprime nas linhas da mão: quantos passeios de vida ainda teremos em outubros quentes?   

Émerson Cardoso

11/10/2021