sábado, 29 de janeiro de 2022

CONTO: "UMA AMIZADE SINCERA", DE CLARICE LISPECTOR

 


Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes.

Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.

(Clarice Lispector)[1]



[1] LISPECTOR, Clarice. Uma amizade sincera. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

CONTO: "O CANÁRIO", DE KATHERINE MANSFIELD

 


... Você vê aquele grande prego à direita da porta da frente? Dificilmente olho para ele, mesmo agora, e até hoje não tive vontade de arrancá-lo. Gostaria de pensar que ele fosse permanecer ali, mesmo depois de mim. Às vezes imagino as pessoas no futuro a dizerem: "Deve ter havido uma gaiola pendurada ali." E isso conforta-me; sinto que ele não está inteiramente esquecido.

... Você não pode avaliar como era maravilhoso o seu canto: não cantava como os outros canários. E isto não é apenas fantasia minha. De minha janela, eu costumava ver as pessoas pararem em frente ao portão, para ouvir melhor, ou encostarem-se na cerca perto da falsa-laranjeira, um bocado de tempo, emocionadas. Suponho que você vá achar isso um absurdo — não acharia se o tivesse ouvido cantar —, mas parecia, realmente, que ele cantava as canções completas, com começo e fim.

... Por exemplo: à tarde, quando eu terminava o serviço, mudava de blusa e trazia minha costura para a varanda, ele costumava pular de um poleiro para o outro, bater contra as grades da gaiola, como se fosse para atrair minha atenção, bebia um gole d'água, tal como o faria um cantor, e punha-se a executar uma canção tão afinada que eu tinha de largar a agulha para ouvi-lo. Não sou capaz de descrevê-lo; bem que gostaria. Era sempre igual, toda tarde, e eu sentia que compreendia cada nota emitida.

... Eu o amava. Como eu o amava! Talvez não importe muito que coisa amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa. É claro, eu tinha minha casinha e o jardim, mas, por algumas razões, não era o bastante. Flores são maravilhosas, mas não sabem demonstrar simpatia. Naquela ocasião eu amava a estrela d’alva. Isto lhe parece uma tolice? Eu tinha o costume de ir para o jardim, depois do pôr do sol, e esperá-la até que brilhasse por cima do eucalipto escuro. Eu costumava murmurar: "Aí está você, minha querida". E exatamente nesse instante ela parecia brilhar só para mim. Ela parecia compreender isso... alguma coisa que é como um anseio, mas não é um anseio. Ou lamento — sim, é mais parecido com lamento. E, no entanto, lamento por quê? Eu tenho tantos motivos para ser grata!

... Mas depois que ele entrou em minha vida, esqueci a estrela d’alva; não precisei mais dela. Mas foi estranho. Quando o chinês chegou à minha porta vendendo pássaros, ele, em sua pequena gaiola, em vez de se debater contra as grades, como aqueles pobres pintassilgos, soltou um trinado fraco e curto, e eu me vi dizendo, como havia dito para a estrela por cima do eucalipto: "Aí está você, meu querido". Desde aquele momento, ele foi meu.

... Até hoje me surpreendo, quando me lembro de como ele e eu partilhávamos nossas vidas. Na hora em que eu descia, pela manhã, e retirava a toalha que cobria sua gaiola, ele saudava-me com uma notinha sonolenta. Sentia que ele queria dizer: "Tia! Tia!" Então, pendurava a gaiola no prego do lado de fora, enquanto servia o café aos meus três rapazes, e nunca o levava de volta para dentro enquanto não tínhamos a casa só para nós dois. Depois, enquanto eu lavava a louça, era uma diversão completa. Eu abria um jornal sobre um canto da mesa e, logo depois que eu punha a gaiola sobre o jornal, ele costumava bater as asas desesperadamente, como se não soubesse o que ia acontecer. "Você é um perfeito ator", eu gostava de dizer-lhe com ar de zangada. Eu raspava o fundo da gaiola, espalhava areia em cima, renovava a água e o alpiste das latinhas, espetava um pedaço de couve e meia pimenta malagueta na grade. Tenho plena certeza de que ele compreendia e apreciava cada item dessa pequena operação. Sabe, ele era por natureza muito asseado. Nunca havia uma sujeira em seu poleiro. E era preciso ver como gostava de se banhar, para se perceber que ele tinha verdadeira paixão por limpeza. Sua banheira era colocada por último; no mesmo instante ele pulava nela. Primeiro batia uma asa, depois a outra; então, mergulhava a cabeça e umedecia as penas do peito. Gotas d'água espalhavam-se por toda a cozinha, mas ele ainda não queria parar. Eu costumava dizer-lhe: "Agora basta. Você está apenas se exibindo”. E por fim ele pulava para fora e, de pé sobre uma das pernas, começava a se bicar para enxugar-se. Finalmente sacudia-se, dava uma pirueta, um gorjeio, levantava a cabeça e... Ah! como dói lembrar. Nessa hora eu estava sempre enxugando as facas e quase me convencia de que elas também cantavam quando eu as esfregava para brilharem em cima da tábua.

... Companhia! É isso, veja, isso é o que ele era. Uma companhia perfeita. Se você algum dia viveu só, compreenderá o quanto isto é precioso. É verdade que havia meus três rapazes, que chegavam para o jantar todas as tardes e algumas vezes ficavam na sala, lendo o jornal. Mas eu não podia esperar que eles se interessassem pelas pequenas coisas corriqueiras do meu dia a dia. Por que se interessariam? Eu nada era para eles. Na verdade, eu os ouvira certa vez na escada referindo-se a mim como "O espantalho". Não importa. Não tem importância. Eu entendo muito bem. Eles são jovens. Por que haveria eu de ficar ressentida? Mas lembro-me de me sentir grata por não estar inteiramente só, naquela noite. Eu lhe disse, depois que os rapazes tinham ido embora. Eu lhe disse: "Você sabe de que nome eles chamam a Tia?" E ele deixou cair a cabeça para um lado e olhou-me com seu olhinho brilhante até que eu não pude conter o riso. Aquilo pareceu diverti-lo.

... Você já criou pássaros? Se não, tudo isto vai talvez parecer-lhe exagerado. As pessoas têm ideia de que os pássaros são seres sem coração, pequenas criaturas frias, ao contrário de cães e gatos. Minha lavadeira costumava dizer, nas segundas-feiras, quando queria saber por que eu não criava "um bonito fox-terrier": "Ter um canário não traz conforto, senhora". Não é verdade. É um grande engano. Lembro-me de uma noite. Eu tinha tido um sonho horrível — os sonhos podem ser muito cruéis — do qual, mesmo depois de acordada, não podia livrar-me. Então, vesti minha camisola e desci à cozinha, para tomar um copo d'água. Era uma noite de inverno e chovia forte. Acho que eu estava ainda meio adormecida. Pela janela da cozinha, que não tinha veneziana, a escuridão parecia estar olhando fixamente para dentro, espionando. E de repente senti que era insuportável não ter alguém a quem pudesse dizer: "Tive um sonho tão horrível" — ou "Defenda-me da escuridão". Até mesmo cobri meu rosto, por um momento. Então veio o agradável som "Psiu! Psiu!" A gaiola estava em cima da mesa, e o pano que a cobria havia escorregado, deixando uma fenda, por onde entrava um raio de luz. "Psiu, psiu!" — disse o encantador bichinho outra vez, docemente, como para dizer "Estou aqui, Tia! Estou aqui!" Aquilo soou tão agradável e confortante para mim, que quase chorei.

... E agora ele se foi. Nunca mais terei um outro pássaro, nem qualquer outro animal de estimação. Como poderia ter? Quando o encontrei, deitado de costas, os olhos turvos, as patinhas retorcidas, quando percebi que nunca mais ouviria seu canto tão querido, alguma coisa pareceu morrer em mim. Meu coração ficou vazio, como se fosse a gaiola dele. Eu hei de superar isso. É claro. Preciso fazê-lo. Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.

... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? ah, o que é isto?

 

(Katherine Mansfield)[1]



[1] MANSFIELD, Katherine. Felicidade e outros contos. Tradução de Julieta Cupertino. Rio de Janeiro: 2008. 

FOLHETO DE CORDEL: "A PUNIÇÃO DO PADRE BELO"


 
Sei que muito tempo faz

que se passou esta trama:

uma punição mordaz,

enredo de melodrama,

fez o Padre aí do título

viver o triste capítulo

que logo mais se derrama.

 

Era o Padre do Rosário

da batina um prisioneiro.

Um jovem que foi ricaço

e esqueceu todo o dinheiro

para servir ao Senhor,

o grande Deus criador,

a quem amou por inteiro.

 

Padre se tornou um dia

por amor à vocação.

Viver Deus, com alegria,

fez pulsar seu coração.

Da família se afastou

e do mundo se ocultou:

apegou-se à solidão.

 

Sofreu toda dor possível

em seu seminário austero.

No estudo era incrível

dizia: “Estudar eu quero

para Padre me tornar,

vou a salvação pregar

com amor ao ministério!”

 

Em seguida à ordenação,

tornou-se logo o vigário

d’uma gente de oração

na igrejinha do Rosário.

Era muito inteligente,

um homem de pura mente,

mas também um solitário.

 

Tão sério e tão belo era,

de cabelo muito preto.

Tinha olhar de quem espera

o poder do Deus perfeito.

Toda a paróquia o adorava,

tanta gente o admirava:

ele era sem defeito.

 

Porém dentro da batina,

batina frígida e escura,

sentia a dor mais ferina:

“Na vida, quanta amargura!”

Em seu íntimo trazia,

que fraqueza e covardia,

por mulher, viva loucura!

 

Por nome José Maria,

mas chamado Padre Belo,

pela grande simpatia

e pelo rosto singelo,

segredos trazia na mente:

um fogo intenso, fervente,

que inundaria um castelo.

 

Com olhar de azul bem forte,

era de rosto alongado.

Elegante e de bom porte,

tinha sido desenhado.

Apesar da pouca idade,

mostrava maturidade

em seu jeito ensimesmado.

 

Ficava de dia na igreja,

mas à noite solitário.

Se dormia como quem beija

a cruz de pé no calvário,

em seus sonhos só luxúria

serpenteava-lhe com fúria:

como sofria o vigário!

 

Certa noite aconteceu

missa de sétimo dia:

um fazendeiro morreu,

homem ruim e que fazia

o mal a todo cristão,

um monstro sem coração

que de maldade vivia.

 

O Padre Belo rezou

desse fazendeiro a missa

e nos bancos avistou

a perfeição que enfeitiça.

Se viu confuso e sem norte,

parecia até que a morte

tinha por ele cobiça.

 

A mulher muito arrumada,

com grande busto a exibir,

mostrava-se preparada

para de amor explodir.

O Padre santo e castíssimo

pressentiu do inferno o abismo

 e aspirou nele cair.

 

Com cabelos cacheados

caídos nos ombros finos,

com olhos esverdeados

em seu rosto feminino:

“Que beleza de mulher!”

Disse o serviçal da fé

com desejo mais ferino.

 

Quando a missa terminou,

o Padre ficou sabendo:

a mulher que tanto olhou

muito estava lá sofrendo.

Era a tristonha Viúva

com olhar a verter chuva

feito nuvem derretendo.

 

Imaginou-se lamber

da Viúva todo o pranto

e, ao lado dela, fazer:

do mundo, lascivo canto;

do amor, um impuro ninho;

da paz, imoral caminho;

da vida, prazer e encanto...

 

Sentiu-se tão pecador,

sem serventia para a fé.

Como sentir tal ardor

por um corpo de mulher?

Ele, guardião do templo,

e do povo o grande exemplo,

viu a culpa o corroer.

 

O problema só piorou

e, de forma assustadora,

quando a Viúva falou:

“Seu Padre, sou pecadora!

Sempre traí meu marido...

Ele morreu tão sofrido,

sou serpente tentadora!”

 

Revirou a mente dele

a tal confissão ouvida.

Tinha chance, agora, ele

para fazer da sua vida

uma perdição completa,

uma loucura repleta,

tinha a alma revolvida.

 

“Dona Clara, eu também

sou mais que vil pecador.

Digo-lhe, agora, um amém

ao que hoje me contou.

Sinto o fogo em mim arder

desde que avistei você.

Estou vivendo um horror!”

 

A Viúva bem depressa

entrou no confessionário.

Deu um beijo sem conversa

e despiu logo o vigário.

A virgindade perdeu,

o Padre santo de Deus,

dando as costas ao sacrário.  

 

E assim o Padre, qual louco,

perdeu-se nessa aventura.

A bela Viúva, em pouco,

aumentou sua cintura.

A cidade percebeu

e a conversa se estendeu

com muita descompostura.

 

Mas ninguém ia saber

quem era o pai do menino

se não fosse o povo ver

a Viúva e o tão divino

Padre Belo do Rosário,

dentro do confessionário,

com agarro clandestino.

 

Houve tão grande alarido,

o povo se apavorou.

A Viúva sem vestido,

que o bom Padre retirou,

quase morreu de vergonha

e, com cara mais bisonha,

uma porta procurou.

 

Ficou só o Padre nu,

sem batina e sem calção,

branco, quase cor azul,

se cobrindo só co’a mão.

Foi inútil se esconder,

porque o povo ousou dizer:

“Mas que Padre do corpão!”

 

Da cidade, bem depressa,

a Viúva se mandou.

O povo toda repulsa

pela Viúva expressou.

Era a serpente corrupta

que destruiu, mais abrupta,

do Padre a pureza e o ardor.

 

Pensaram em mil torturas,

na reunião levantada:

fogueira, pedrada, surra,

denúncia foi aventada.

Tão-somente o Sacristão,

com gritos e comoção,

fez-lhe defesa apressada:

 

“Minha cidade querida,

me escute, por seu favor:

não podemos tirar vida

do Padre Belo — que horror!

O melhor é repensar,

uma estratégia criar:

quem aqui nunca pecou?”

 

Depois de muita conversa,

a cidade decidiu

que, apesar da ação perversa,

na qual o Padre caiu,

morrer não era remédio

ele curaria o tédio

do povo qu’ele feriu...

 

Ele não iria morrer,

mas seria aprisionado.

Além de missa e afazer

que o deixavam fatigado,

Padre Belo suportou

punição que o devastou:

ao sexo foi condenado!

 

O Padre Belo entraria

no seu frio confessionário,

dia e noite, noite e dia,

sempre mais, pobre vigário.

Homens, mulheres e moças,

as multidões iguais moscas,

queriam provar do vigário.

 

O Sacristão defendeu

o Padre Belo contra o mundo,

mas foi quem mais acendeu  

desejo intenso e profundo.

Cobiçava o Padre Belo,

com seu fogo e olhar singelo,

dentro dele bem no fundo.

 

O Padre Belo sofreu

uma triste punição.

Ele dava ao povo seu

de seu fogo um bom tostão.

Se o Padreco recusasse,

ele então se preparasse

e enfrentasse a multidão.

 

Assim se deu a história

do Padre do fogo quente

que perdeu sua fama e glória,

a vida santa e inocente,  

e entregou-se à chantagem

sem poder fazer viagem

dando o corpo à toda gente. 

 

Émerson Cardoso

(30.05.2008 / 01.11.2021)


CARDOSO, Émerson. A Punição do Padre Belo. Fortaleza: Tipografia Padre Cícero, 2022.