quarta-feira, 23 de setembro de 2020

ELEGIA PARA DONA MARIA GONÇALVES


Sabe o que torna a vida significativa, apesar dos dissabores que ela muitas vezes nos traz? A vida nos possibilita o convívio com exemplares humanos raros. Estes seres raros se tornam marcantes e permanecem, profundamente, em nossas memórias afetivas. 

Eu conheci um desses seres raros: trata-se de Dona Maria Gonçalves (a quem chamávamos carinhosamente de Dona Mariinha). Ela foi minha catequista quando eu era criança. Aliás, ela foi catequista de diversas gerações da comunidade na qual ela atuou. A propósito, era uma catequista amável, embora tivesse um jeito firme e prático de ser. Ela ensinava aos moldes da Igreja de seu tempo, mas o fazia com a doçura dos que nascem para o ato de comunicar com a melhor das bondades. 

Ao vê-la na primeira aula do catecismo fiquei tão impressionado - foi amor à primeira vista! Eu fui privilegiado por ser seu catequizando. Nem todos conseguiam. Ela era catequista disputada. As mães que ela catequizou queriam que seus filhos fossem seus catequizandos, de modo que ela era extremamente procurada. Quem conseguia estar em sua turma de catequese detinha certo "status" (ao menos era assim que nos sentíamos)!

Ainda ouço sua voz nos fazendo perguntas para, em seguida, mostrar as respostas do Catecismo com sua voz reconfortante: "Quem é Deus? É um espírito perfeitíssimo criador do Céu e da Terra!" E "Onde está Deus? No Céu, na Terra e em toda parte!" As lições se seguiam, nas tardes quentes de sábado, e ela ainda gostava de cantar comoventes canções católicas. Estou ouvindo sua voz agora, cantando a seguinte canção, que era a minha preferida: 

O meu coração é só de Jesus,
A minha alegria é a Santa Cruz. 

Eu só peço a Deus, na minha oração,
Que viva Jesus no meu coração. 

Nada mais desejo nem quero senão,
Que viva Jesus no meu coração. 

Nas ruas e praças, todos me ouvirão,
Que viva Jesus no meu coração. 

Em penas e dores, em toda aflição,
Que viva Jesus no meu coração.

Como dói lembrar! Não tenho como ouvir essa canção sem me comover profundamente. Essa canção, devo dizer, traz inteira a imagem de Dona Maria Gonçalves quando a conheci. Seu cabelo era longo, preso e bem penteado em seu cacheado cor de algodão. Trajava saia azul e blusa branca. Usava óculos. Deus, com que dedicação ela exercia seu ofício de ensinar! Eu, que sou professor por escolha e afeto, vi nela um dos mais perfeitos modelos de professora: era didática, dominava o conteúdo, era simples nos gestos e palavras, firme ao lidar com a turma e sempre atenciosa. 

Quantas crianças estiveram sob seus cuidados ao longo dos mais de 50 anos de catequese? Será impossível dizer, mas tenho por certo que foram diversas. Ela propagou Deus para muita gente. Não só como catequista ela serviu a Deus. Ela sempre encontrou outros caminhos para estar a serviço. 

Eu estive muitas vezes com ela, no entanto sinto que foi pouco. Ela era firme na fé, aconselhava sempre, tinha palavras de acolhimento, sabia dizer o que traria paz de espírito ao coração da gente. Não me recordo de ter ouvido dela, nas vezes em que nos encontramos, uma palavra que não fosse de acolhida. Eu realmente não consigo vê-la senão como uma dessas pessoas raras que, apesar do cotidiano, da vida e seus reveses, dos sofrimentos e angústias, conseque trazer luz ao mundo. Ainda que no anonimato e com simplicidade, há tantos santos que andam pelo cotidiano das nossas vidas sem que muitos percebam que eles estão entre nós. Por mim, prefiro pensá-la dessa forma: ela é santa. Sim, porque humildade, fé, caridade, dedicação e amor aos outros são características dos santos. Ela trazia em si essas e tantas outras qualidades, de modo que, para mim, ela é santa.

Nós humanos somos pequenos e frágeis quando a vida traz sua rotina e seus enfrentamos. Respondemos positiva ou negativamente aos reveses que ela traz. Talvez Dona Maria Gonçalves, em algum momento, tenha tido necessidade de mostrar que era humana, que também poderia errar. E a Igreja não está repleta de santos que invariavelmente cometeram suas divinas falhas? Que seja! E, com isso, reforço mais ainda o que disse anteriormente: ela é santa! 

Acima de qualquer visão mais passional que eu expresse aqui, ela era uma das pessoas mais lindas que eu tive a oportunidade de conhecer. O mundo não será o mesmo sem sua presença, porque precisamos de pessoas cheias de luz (igual a ela) para desfazermos as trevas que andam nos atemorizando. 

Dona Maria Gonçalves esteve conosco, espargindo luz e humanidade santa, até o dia 21 de setembro deste fatídico ano de 2020. Na última vez que nos vimos, nos abraçamos, conversamos e rimos! Que saudade sinto, que saudade sentirei. Não poderei esquecê-la, porque ela contribuiu para minha visão de mundo com tanta singeleza que será impossível não torná-la parte do que sou em essência. Enquanto eu tiver memória, ela estará comigo. Ela estará sempre rindo, com seu olhar bondoso, me dando conselhos para cuidar mais da saúde, para não me deixar levar pelo excesso de trabalho e para me dedicar mais a Deus! 

Adeus, Dona Maria Gonçalves, nossa grande catequista! Olhe por todos nós, seus frágeis catequizandos, e continue apontando os melhores caminhos para que alcancemos a paz e o bem!  

Émerson Cardoso

23/09/2020


sábado, 12 de setembro de 2020

CRÔNICA: "SOBRE INGRATIDÃO"


No conto "A confissão de Leontina", de Lygia Fagundes Telles, nos deparamos com uma história lastreada pelo monstro sem caráter desprovido de memória que é a ingratidão. Esta palavra tem a ver com a incapacidade que alguns seres humanos têm de não reconhecer o bem que alguém lhe fez. A ingratidão é palavra curiosa: nomeia o ausente em uma pessoa - quem não sabe retribuir ou demonstrar gratidão mediante uma ajuda que outrora lhe foi direcionada cai em seus lastros. 

No conto, a personagem evocada no título tem um primo chamado Pedro que é a personagem mais ingrata que já vi numa obra literária. Ele é monstruoso, infame e cruel! Para entender sobre o que falo, leia o conto e confirme minha assertiva. Ele se chama Pedro (nome de origem grega que remete à palavra "rocha") e traz no nome uma nítida relação com a imagem do discípulo que negou Cristo - negar o outro não é a ingratidão manifestada com toda maldade e força?  

Por vezes, uma pessoa que se doa em excesso e exige muito dos outros tende a considerar ingrata qualquer pessoa que não atenda às suas expectativas de retorno em relação ao que foi ofertado. Faz-se necessário, portanto, que se tenha cautela para não cair em acusação contra tudo e todos. Querer uma contrapartida por uma ação benéfica dispendida a alguém é comportamento de gente mercenária, claro, mas não deveria ser preciso que a pessoa com tendência à doação exigisse do beneficiado um reconhecimento por aquilo que foi feito por e para esse outro. A pessoa beneficiada deveria ser, em verdade, capaz de demonstrar dignidade a ponto de ser grata a quem lhe estendeu a mão. 

Ocorre que gratidão é característica de quem tem espírito aberto às percepções mais elevadas dos laços humanos. O prudente é observarmos, em nossas condutas, o quanto nos é dada a possibilidade de demonstrar diante de um gesto nobre o reconhecimento por esse gesto. Retribuir, reconhecer e retornar o que foi dado por alguém é gesto de gente digna. Como é raro perceber no cotidiano demonstrações de gratidão, sobretudo se pensarmos a rapidez que tem feito girar o mundo. Gratidão, ressalvo, é gesto de quem tem espírito elevado. No simples e no complexo, gratidão é conduta de quem sabe encontrar caminhos em direção ao outro. 

O ser humano que não tem gratidão, penso, é pobre de alma, é podre de espírito. Será que eu devo atirar pedra nos ingratos do mundo de cima de minha torre de marfim de homem moralmente blindado? Não, obviamente não! Escrevo reflexões sobre o assunto, aqui, mais para manter contato com ele do que para atirar pedra contra alguém. Eu, quantas vezes, fui e tenho sido ingrato! Ninguém está livre de ser fadado à falibilidade que nos resume. Agora, escrevendo sobre, tenho pensado no quanto poderia ter sido mais grato em relação a algumas pessoas. Penso, porém, que não sou o monstro sem caráter e desprovido de memória que metaforiza a ingratidão neste meu texto de reflexão sem jeito. 

Lygia Fagundes Telles é capaz de cada coisa em termos de escrita! Sempre que leio "A confissão de Leontina" mergulho na profundidade de meu ser ainda em formação e descubro que sou capaz de atrocidades tantas, por isso devo ficar atento. Que eu me livre ao menos desta falha humana: não quero ser ingratidão. Quanto aos que foram ingratos em relação a mim: estão desculpados. Vamos zerar as culpas e começar tudo de novo! 

 Émerson Cardoso

12/09/2020

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

NESTE 11 DE SETEMBRO DE 2020, ANO DE PANDEMIA, O QUE ME FARIA FELIZ?


1 - Escrever;

2 - Ler sem obrigação;

3 - Caminhar;

4 - Conseguir dormir;

5 - Conseguir ficar livre de redes sociais ainda que temporariamente;

6 - Descansar a mente; 

7 - Tomar banho sem pressa; 

8 - Conversar com pessoas com as quais eu não precisasse me preocupar muito se iria cometer gafes;

9 - Receber notícias positivas sobre a situação do Brasil e do mundo;

10 - Rir um pouco de bobagens do cotidiano;

11 - Receber a notícia de que foi encontrada vacina para destruir o vírus que amedronta a todos e descobrir que o presidente atual nunca foi presidente do país; 

12 - Ver meu quarto limpo e organizado; 

13 - Concluir os trabalhos que estão pendentes;

14 - Não sentir culpa por existir; 

15 - Encontrar soluções para as coisas práticas da vida;

16 - Ir ao ponto mais alto da cidade (ir ao Horto)!