sábado, 26 de fevereiro de 2022

CRÔNICA: "FAZENDO AS PAZES COM A ACADEMIA"


Eu sempre considerei as academias (de ginástica, de musculação etc.) espaços inabitáveis. Acontece que o mundo gira e nossas percepções a respeito de certas práticas podem mudar. Foi assim comigo em relação a esses espaços que eu denominava templos da superficialidade e da falta-do-que-fazer. 

Não deixo de observar o quanto, para algumas pessoas, realmente a academia pode ser um templo não só da superficialidade, mas da vaidade exacerbada e do culto à aparência aos moldes do padrão construído e propagado contemporaneamente. Nesse sentido, é engraçado observar alguns seres caricatos e, por vezes, patéticos na constante tentativa de se sentirem bem diante dos espelhos que lhes fustigam o ser-estar-no-mundo. Minha visão sobre as academias, no entanto, saiu desse olhar preconceituoso e passou a enxergar outras possibilidades.

A academia pode ser um espaço extremamente agradável ao proporcionar descobertas. A primeira descoberta, creio, é sobre o corpo. A musculação e as demais atividades criam uma percepção mais aguçada do corpo e, com isso, reduz a ansiedade, melhora o humor, restitui a saúde, produz melhores condições de sono, proporciona a organização do pensamento, ajusta a postura, promove sociabilidade e minimiza a depressão. 

Enumerei esses itens porque falo de minha experiência, mas é provável que existam outras benesses para quem se dispõe a enfrentar o cotidiano das academias. Eu costumo brincar dizendo que os aparelhos são instrumentos de tortura medieval (alguns realmente parecem), no entanto é divertido descobrir meus limites na possibilidade de uso desses objetos capazes de moldar os corpos não só esteticamente, mas no que há de saudável e lúdico da fisiologia e da psicologia do ser humano. 

Eu, que antes criticava, descobri o quanto pode ser saudável realizar exercícios físicos em espaço construído para essa finalidade. A sensação que tenho, quando estou lá, é a de que não preciso me preocupar se pareço ou não ridículo quando realizo os exercícios. Quem está naquele ambiente vê com naturalidade o que é realizado e, consequentemente, se compreende parte de um todo em busca da vida pelo corpo em movimento.  

Quanto à minha experiência, existe uma indumentária criada para o evento. Existe uma ritualística engraçada no processo de ir, chegar, entrar, permanecer e sair. A ida é um desafio. O retorno é a sensação de missão cumprida. O movimento durante o ato parece exacerbar em alegria estranha. Tudo se torna caminho de endorfina e serotonina revisitadas. 

Eu gosto mais de exercícios aeróbicos, porém não me fecho às demais possibilidades. Tenho gostado da experiência e quero construir a disciplina necessária para prosseguir nessa prática recém-descoberta por mim com estranhamento. Cada pessoa deve encontrar um prazer particular na academia. Eu encontrei bicicleta, esteira, corda e dança. Sim, para minha surpresa, também se aprende a dançar na academia. Incrível como tenho me desconstruído com essa experiência.  

Na luta para viver, para se manter de pé no caos, para construir espaços de existência em plenitude, creio que a academia (e tantas outras formas de exercitar a mente e o corpo) pode ser muito útil. Eu, por mim, estou rendido. Os instrumentos de tortura medieval contemporâneos são mais atrativos do que eu poderia imaginar. Vivendo e mudando a visão sobre as coisas... Por que não? 

Émerson Cardoso

26/02/2022

RESENHA CRÍTICA: "ENQUANTO A CHUVA CAÍA E OUTRAS HISTÓRIAS", DE JEAN PAULINO


SOUZA, Francisco Jean Paulino de. Enquanto a chuva caía e outras histórias. São Paulo: All Print Editora, 2021. 

O livro "Enquanto a chuva caía e outras histórias" apresenta dezesseis contos e cinco microcontos. Entre enredos românticos e cômicos, temos nesse livro uma passarela de personagens invariavelmente bem construídas.

No primeiro conto, Jeremias (em verdade, Jairo Messias cujo nome prenuncia o tom paródico que se desenvolve em torno do atual presidente do Brasil) aproveita-se de certa posição de privilégio e arquiteta uma realidade mentirosa para a população de uma cidade. O contexto é de pandemia. A gripe espanhola, que assolava a Europa no início do século XX, se aproxima do Rio de Janeiro e da cidade interiorana na qual Jeremias é carteiro. Ele se esforça para criar uma atmosfera de aparente tranquilidade ante a notícia alarmante de um vírus mortal que, na concepção negacionista dele, não passa de uma "gripezinha". Assim, de carteiro a pastor, de pastor a prefeito, ele alcança status e credibilidade, mas termina por ser vítima da gripe espanhola que ele tanto quis esconder e negar. O texto lembra, em vários aspectos, o universo de Lima Barreto, seja no trato irônico que configura as personagens, seja no tom de parábola satírica que configura o enredo. 

Da pertinente crítica social, o autor vai para o romance rasgado. No conto O caso da moça da fotografia, o protagonista se apaixona por uma moça encontrada numa foto, em um cemitério, e fica obcecado por ela. Depois, ele morre. Um desencontro de almas gêmeas se dá, porque uma jornalista (com as características da moça da foto), anos após a morte do rapaz, também se apaixona pela foto dele. Temos nesse texto uma atmosfera novelesca, melodramática e gótico-romântica. 

Um romance também configura o conto Lembranças da Lene. Neste caso, um rapaz inconformado com a perda de seu grande amor não suporta qualquer alusão a ela, o que o torna uma personagem patética em sua busca desenfreada para fugir daquilo que tanto o massacra afetivamente. O humor caracteriza esse texto de perda e desilusão, sobretudo porque na tentativa de fugir de sua amada ele está cada vez mais preso a ela. Além disso, o rapaz não contava com a capacidade de vingança do primo Juca, personagem que é responsável pelo desfecho cômico do texto que tem perspectivas de anedota. O desfecho inusitado que conduz ao riso confirma essa possibilidade de diálogo com o gênero anedota. 

Em seguida, o texto Deixa eu ir "no" banheiro confirma a inclinação do autor para a comicidade. O ambiente é a sala de aula e o contexto é um diálogo entre professor e estudantes durante uma sôfrega aula de Gramática da Língua Portuguesa. O alheamento dos estudantes só não é maior do que a paciência (com momentos de extrema impaciência) do professor na tentativa de obter da turma o conceito de verbo. Esse texto é dinâmico e, por meio do humor, recria o universo de caos ou alegrias que pode ser a sala de aula. Com esse conto percebemos que o autor é um fidelíssimo pupilo de Luís Fernando Veríssimo.

No texto A rosa, o muro e a flor o autor cria uma espécie de apólogo que, através das personagens evocadas no título, apresenta a seguinte moral: é preciso valorizar o que se tem, é pertinente observar o entorno com gratidão (enquanto se tem possibilidades para isso), é preciso não permitir a construção de muros que possam representar distanciamentos e separações. O autor também é pupilo de Rubem Alves!

O presente de Lurdinha segura a atenção do leitor em torno de um presente dado, por engano, para uma moça insegura e ingênua cuja grande angústia é ter que conviver com suas parentas amargas e escarnecedoras. O texto poderia retomar a comicidade que tem sido a tônica de alguns contos, mas termina por optar pelo teor folhetinesco ao criar no desencontro o encontro de almas afinadas. 

CONTINUA...



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

RETRATO DE MINHA AVÓ


Da beleza que era dela, 

meu Senhor, o que sobrou?

Só despedida tristonha,

porque a morte veio cedo. 


O domingo no vestido, 

meu Senhor, se acabou.

Tempo é festa de não-mais

engolindo mãos e dedos.


Onde o riso de batom,

Deus do Céu, onde o olhar?

Traz rosário no pescoço, 

ou colar de sonho aflito? 


Os cabelos são tão presos,

Deus do Céu, querem voar?

Na voz longe da memória 

vem silêncio em quantos gritos? 


Preto e branco, vento e força,

meu Senhor, é sagitário?

Sobrancelhas comportadas

em lunar revelação. 


Moça altiva sempre intensa,

Deus do Céu, belo retrato:

que me invade matriarca

com vestido e solidão.


Émerson Cardoso

Novembro de 2021