quinta-feira, 25 de junho de 2020

NOTAS SOBRE O FILME "PACARRETE", DE ALLAN DEBERTON (PREPARE-SE PARA A ARTE NO QUE HÁ DE MAIS SINGELO)



Quando uma obra de arte vai às últimas consequências em sensibilidade e beleza: assim é Pacarrete. Este é o título do filme de estreia do cineasta Allan Deberton que traz Marcélia Cartaxo no papel principal.
A personagem evocada no título do filme, uma artista com diversas facetas (toca piano, desenha e é bailarina), deseja dar de presente à cidade de Russas – CE, sua terra natal que vai completar 200 anos, um presente de aniversário: ela quer realizar uma apresentação de balé no palco principal da festa que a prefeitura promoverá.
A meta da personagem Pacarrete está delineada: ela deseja oferecer ao povo de sua terra o que ela de melhor tem em si: sua arte. Tem início, com isto, uma sôfrega jornada para a personagem, pois o que está em jogo não é somente a ideia de convencer as pessoas da prefeitura, incumbidas de realizarem a festa, a darem espaço para que sua homenagem seja realizada, mas tentar mostrar que sua arte não está ultrapassada. Tendo em vista que ela valoriza a música erudita e o balé clássico, diante de um espaço que acorre a outros valores que diferem daqueles que ela tem a oferecer, conseguir realizar sua meta torna-se um imenso desafio.
Marcélia Cartaxo, uma das maiores atrizes do país, dá vida a Pacarrete com uma atuação singular. Essa personagem tem uma altivez de alma que entra em choque com o prosaísmo do espaço no qual está inserida. Disso resulta um descompasso: sua alma está propensa à sensibilidade, à vivência do que é belo, à criação artística, no entanto ela é tolhida, porque precisa cuidar de uma irmã doente, lidar com a incompreensão das pessoas e com a incomunicabilidade nas relações.
Marcélia Cartaxo mostra em sua atuação essas camadas da personagem com uma maestria que merece todos os elogios. É, sem dúvidas, uma das maiores atuações já vistas no cinema nacional. Ela vai do teor cômico ao mais profundo do drama, com lirismo sempre, sem nunca fugir da complexidade da personagem. Corpo e alma estão entregues à profusão de sentimentos e emoções da frágil e intensa Pacarrete que, para o povo, é uma louca, mas para o espectador é uma alma em conflito: o mundo não comporta sua mente repleta de palavras, ideias e fabulações que só canalizando para a arte a deixariam em paz.
Sem poder realizar-se em sua arte, Pacarrete transita entre dois modos de expressar-se: por vezes, ela é singela, doce e "chique" (para utilizar um termo francês tão ao gosto dela); por vezes, ela é agressiva, desbocada, arrogante e teimosa. Aliás, teimosia é o que melhor a caracteriza – é essa capacidade de teimar que a conduz, obstinadamente, à luta aparentemente vã contra um mundo que parece não comportá-la. Parafraseando uma das personagens, o que ela tem a oferecer ao povo, esse povo, infelizmente, não quer e não gosta. Numa comemoração regada a forró e seus correlatos, seria possível uma apresentação de balé clássico? Pacarrete não suporta o mundo que a rejeita – talvez por isto sua vontade de ir para a França. A França para a qual ela quer ir, em verdade, é fruto da idealização com a qual ela alimenta seu mundo repleto de arte e delicadezas.
Além da imensa Marcélia Cartaxo, contamos com atuações grandiosas nesse filme. A atriz Zezita Matos é Chiquinha (irmã de Pacarrete que depende dela por estar presa a uma cadeira de rodas) e a atriz Soia Lira é Maria (uma mulher muito solícita que trabalha na casa das duas irmãs). Essas duas atrizes dão vida a personagens delicadas, profundas e líricas. Talentosas e comprometidas em realizarem trabalhos de relevo, com a presença delas no filme temos uma tríade feminina que realiza o que há de perfeito e belo numa obra cinematográfica.
Há uma voz masculina no filme, que é o ator João Miguel. Ele interpreta o comerciante Miguel que está presente na vida das três personagens, sobretudo na vida de Pacarrete. Enquanto a cidade a vê como uma louca, ele a vê com atenção e afeto. Sua grandeza de alma o possibilita entrar na fabulação de Pacarrete e isso os aproxima, se não numa relação afetivo-amorosa (que muito a agradaria), numa relação de amizade que se mostra sincera.
Outras atrizes aparecem com atuações que também merecem nota como: Samya de Lavor (excelente no papel de “antagonista” de Pacarrete), Débora Ingrid e Edneia Tutti Quinto. Tudo concorre, nesse filme, para uma atmosfera de criatividade, dedicação e preparo. O sucesso de crítica e os prêmios recebidos comprovam que esse trabalho, de fato, foi feito com excelência. Figurino, fotografia, direção de arte, coreografia e trilha sonora, enfatizo, são irreprocháveis!
A propósito, Allan Deberton, que já havia realizado trabalhos como Doce de coco (2010), O melhor amigo (2013) e Os olhos de Arthur (2016), dentre muitos outros, estreia no cinema de longa-metragem com Pacarrete (2019). Allan Deberton é um diretor, roteirista e produtor inquieto e criativo, com Pacarrete ele mostra o quanto é promissor em sua carreira. Desde a escolha do elenco até o olhar atento para o roteiro, também escrito por Natália Maia, André Araújo e Samuel Brasileiro, esse filme dirigido por ele é realizado com maestria.  
A ansiedade para assistir a esse filme foi compensada, devo dizer, por uma das mais felizes experiências que eu tive como espectador apaixonado por cinema! Ele entra para o rol dos meus preferidos, aliás ele entra para o rol dos maiores filmes do país. Podemos nos orgulhar, como brasileiros que somos, porque apesar dos tempos sombrios que temos vivido, quando a Educação, a Cultura e as Artes têm sido desvalorizadas por visões que dialogam com o autoritarismo, nós encontramos gente produzindo arte em seu sentido mais amplo. Ver Pacarrete foi um alento para a alma! Precisamos de luz no final dos muitos túneis obscuros nos quais temos passeado no Brasil, indigestamente, e o filme Pacarrete, com sua mensagem de amor à vida e à arte, é um sol iluminando a quem tem a oportunidade de vislumbrá-lo. Eu estou feliz, porque estou inebriado com essa luz! Que esse filme premiado e aclamado ilumine, também, o Brasil e o mundo!
Émerson Cardoso
25/06/2020

sábado, 20 de junho de 2020

CARTA ENVIADA PARA MIM PELO SR. ANO DE 2020 (E QUE FOI VAZADA DESCARADAMENTE)


Caro Émerson Cardoso,

Você pensava que 2018, aquele sádico de chicote na mão e olhar de cobra, seria um ano desolador? Pensava que nada poderia ser pior do que ele, que proporcionou aquela eleição fatídica que deu espaço ao mal em sua pior dose de banalidade? Lamento, querido, mas há mais desgraça resguardada a um país sem criticidade do que supõe a nossa vã capacidade de imaginação!

Foi tragicômica a eleição, hein! Ignorância, ilusão, racismo, homofobia, misoginia, despreparo técnico, dentre outros predicativos nada simpáticos, deitaram e rolaram nos palanques do país! Não tem como não rir diante da falta de bom-senso: o Brasil tem vocação para piada, é isso? Ou foi só tendência masoquista momentânea? Não, talvez seja outra coisa: a elite brasileira, inteligente como uma porta, passou à frente, foi isso? E o povo que teve um pouco de melhora de vida achou que já fazia parte da elite também, foi isso? Gente, ri muito agora! Sabe a risada de Paulina, a mexicaníssima vilã d'A Usurpadora? Mas deixa eu me recompor e prosseguir com minha cartinha amorosa. 

Veio sorrateiramente, então, com seus dentinhos de serrote, o ano de 2019, lembra? Aquele sabe tirar onda da cara das pessoas! Antes de prosseguir, queria perguntar uma coisa: você comemorou a chegada dele? Seja sincero. Comemorou? Se a resposta for sim: outra risada de Paulina na sua cara sonsa, querido! Não gosto de falar mal de meus colegas, mas devo dizer que 2019 não vale a bactéria presente na casca da barata que desliza no esgoto que recebe os excrementos do traidor de uma figa do michel temer, aquele infame que vocês, brasileiros ingênuos, viviam dizendo que ficassem de FORA e fazendo alusões ao vampirismo dele. Mal sabiam vocês que michel temer era um anjinho de candura, um coraçãozinho gelado incapaz de ver o sol, sim, golpista, sim, aprovador de PECs demoníacas, sim, mas tão menos maligno que a figura que viria em seguida!

E em 2019 muita coisa aconteceu: a extinção do Ministério da Cultura; o Ministério da Educação foi entregue a um (que adjetivo utilizar?) ordinário-vulgar-estúpido-crápula-sacripanta-salafrário-mor; o tal paulo guedes foi fazer a festa no Ministério da Economia; houve a criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que foi entregue às mãos da pastora evangélica (com mestrados atribuídos pela Bíblia e visões nada lunáticas de Jesus na goiabeira) damares alves; dentre outros tantos pontinhos que se eu fosse elencar, menino, seria um romance, não uma carta. Ah! Quase ia me esquecendo: e o demônio do sérgio moro, querido! No Ministério da Justiça, menino, logo ele? Nunca iria para um cargo político, o falsiane! Ah! Traste! Mal o desgoverno o convidou e ele foi correndo fazer parte do conluio de cão - não que ele já não tivesse parte com o diabo, é óbvio! 

Foi aí que, sob festas e louvores, eu cheguei! Cheguei incisivo e ridente, como sempre, porque sou um solzinho para amenizar a neo-idade-das-trevas que vocês amargam em pleno século XXI. Sempre tive tendência a fazer bondades - caridade é meu sobrenome! Estamos em junho e veja o tanto de benesses que eu trouxe para você e seus compatriotas: a casa do indigno está caindo, embora eu sinta que ainda virá coisa dolorida a ser enfrentada por vocês, se não ficarem de olho bem aberto. Querido, não é para me gabar, mas eu ajudei vocês demais: veja que sérgio moro deixou de ser ministro; regina duarte (Secretária Especial de Cultura) deixou de ser secretária em pouco tempo após ter assumido o cargo; queiroz foi finalmente achado; o ministro vulgar-canalha-estúpido-monstruoso-crápula-sacripanta-salafrário-mor da deseducação caiu; a Polícia Federal está no encalço do filhote do indigno que, ao que tudo indica, está mais sujo do que banheiro químico em dia de reveillon. Tudo bem que eu trouxe, assim, uma problemática econômica aqui, uma pandemia ali, mas... Sou ou não sou melhor do que o sádico 2018 e o infame 2019? 

Vou encerrando por aqui a minha epístola amável e cheia de boas novas a serem propagadas sobre os telhados. Beijos de luz, paz e amor para você e seus compatriotas! Cuide-se, porque chumbo grosso só dói quando a gente já não tem mais como reverter o quadro. E, para concluir, o deixarei com essa mensagem de luz: "Grite por São Bento antes que a cobra arranque o tampo de sua perna!" 

Amorosa e queridamente, 

2020
(ANO BISSEXTO, ANO DO RATO, MMXX)
20/06/2020




quinta-feira, 11 de junho de 2020

PARA "A OBSCENA SENHORA D" (PERSONAGEM DE HILDA HILST)


Caríssima Senhora D., 

Queria que alguém dissesse de mim o que disse a seu respeito o Porco-Menino. Ele disse que a Senhora é "um susto que adquiriu compreensão". 

E assim, depois de tudo o que foi dito, sinceramente, fiquei entre confuso e comovido: sua solidão é intensa como a prosa de Hilst é complexa. 

Posso confessar uma coisa? É que me perdi no imenso desejo de alentá-la em sua solidão. 

Somos tão solitários: a senhora em seu vão de escada, vivendo o amor perdido e os fragmentos de memória, e eu sem ter encontrado o melhor de mim e do amor.

Estou entregue, Senhora D., a uma busca irrefreada. Deus em mim é tão silente, embora vivo! Queria olhá-la e não ser recebido com violência ou mal-estar em minha tentativa de aproximação  desejo apenas abraçá-la quando, em verdade, não sei de afetos e de demonstração de força.

Retomarei seu vão de escada logo mais, porque a vida solitária e louca, pulsante em seus gritos, me inundou de identificação e fez-me cair, descuidado, na piscina obscura e melancólica que são nossos olhos em derrelição e medo.

Com amor,
Émerson Cardoso
02/06/2020