quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

NOTAS DO LIVRO "CARTAS A UM JOVEM POETA", DE RAINER MARIA RILKE


RILKE, Rainer Maria. Poemas e cartas a um jovem poeta. Tradução de Geir Campos e Fernando Jorge. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013. 

Carta I

"E nada mais difícil de definir do que as obras de arte - seres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera. (p. 79)

Só existe um caminho: penetre em si mesmo e procure a necessidade que o fez escrever. Observe se esta necessidade tem raízes nas profundezas do seu coração. Confesse à sua alma: "Morreria, se não me fosse permitido escrever?" (p. 80)

Aproxime-se então da natureza. Depois procure como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite, de início, os temas demasiado comuns: são os mais difíceis. (p. 80)

Fuja dos grandes assuntos e aproveite aqueles que o dia a dia lhe oferece. Fale das suas tristezas e dos seus desejos, dos pensamentos que o tocam, da sua fé na beleza. Diga tudo com sinceridade, calma e humildade. Utilize, para se exprimir, os objetos que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, as suas lembranças. Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas. (p. 80)

Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. Por isto [...], apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades de onde jorra a sua vida. Só desta maneira encontrará resposta à pergunta: "Devo criar?" (p. 81)

Carta II

Utilizada pura, a ironia também é pura e não nos envergonha. Se experimenta por ela demasiada inclinação, se receia entre si e ela uma intimidade excessiva, volte-se para coisas grandes e graves, diante das quais ela se torne pequena e como perdida. Desça ao âmago: a ironia não vai até lá. (p. 83)

Carta III

Ser artista não significa contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade. Aprendo todos os dias, a custa de sofrimentos que abençoo: a paciência é tudo. (p. 86)

Carta IV

Não procure, por ora, respostas que não lhe podem ser dadas, porque não saberia ainda colocá-las em prática e vivê-las. [...] No momento, viva apenas as suas interrogações. Talvez que, somente vivendo-as, acabe um dia por penetrar, sem perceber, nas respostas. (p. 90)

Por isso, [...] ame a sua solidão, suporte as penas que dela vierem, e, se essas penas lhe arrancarem queixas, que sejam belas queixas. (p. 92)

Alegre-se da sua marcha em frente: ninguém poderá acompanhá-lo. Seja bom para os que ficarem atrás, senhor de si e tranquilo perante eles. Não os atormente com as suas dúvidas; não os assuste com sua crença, com seu entusiasmo, porque não poderiam entendê-lo". (p. 92)

Mas a sua solidão, mesmo nessas condições desfavoráveis, vai servir-lhe de lar e de apoio: a ela ficará devendo todos os seus rumos. (p. 93)

Carta VI

Ora, pense: que seria uma solidão que não fosse uma grande solidão? A solidão é "una" e, por natureza, grande, pesada e difícil de aguentar. (p. 96)

Uma só coisa é necessária; a solidão, a grande solidão íntima. Caminhar em si mesmo e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar. (p. 96)

Aplique [...] os seus raciocínios ao cosmo que traz dentro de si e dê o nome que entender a esses pensamentos. Mas, quer se trate de lembranças da sua infância ou da necessidade apaixonada de se realizar, concentre-se sobre tudo o que brotar em si, dando-lhe a primazia sobre tudo o que observar a seu redor. Os seus "acontecimentos" interiores merecem todo o seu afeto. (p. 97)

Carta VII

Não se deixe perturbar na sua solidão pelo fato de sentir desejos de a abandonar. Usadas com calma e reflexão, essas tentações devem mesmo auxiliá-lo como instrumento capaz de alargar a sua solidão num país ainda mais rico e maior. (p. 100)

É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, motivo mais forte para a desejar. Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são apenas ensaios. (p. 100 - 101)

Toda aprendizagem é uma época de clausura. (p. 101)

O amor é a oportunidade única de sazonar, de adquirir forma, de nos tornarmos um universo para o ser amado. (p. 101)

Quantos jovens existem que não sabem amar, que se limitam a entregar-se, como sucede habitualmente (e decerto a maioria limitar-se-á sempre a isto) e inclinam-se depois sob peso do seu erro! (p. 102)

Na medida em que estamos sós, o amor e a morte tocam-se. As solicitações dessa terrível empresa que é o amor, através da nossa existência, não são à medida dessa vida, e jamais estaremos à altura de merecer o amor desde os primeiros passos. ((p. 103)

Este será o amor [...]: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e se inclinam uma para a outra. (p. 104)

Carta VIII

As tristezas são autoras novas em que o desconhecido nos visita. A alma, assustada e temerosa, cala-se, tudo se afasta, faz-se uma grande tranquilidade e o incognoscível surge em silêncio". (p. 105)




HINÁRIO DA INDEPENDÊNCIA: OU NÃO APOLOGIA À DESINTELIGÊNCIA BRASILEIRA


Quando Frei Tito de Alencar – preso político vítima do (des) governo ditatorial – saiu da cela, por ocasião de seu exílio conquistado por meio da luta de jovens que sequestraram um embaixador, os demais companheiros cantavam, através das janelas, trechos do Hino da Independência.
A propósito do Hino da Independência, recordo-me de que o aprendi quando era aluno da 4ª série do fundamental. Foi Dona Ieda, minha professora, quem o ensinou à turma. Não consigo escutar esse hino sem que me venha à mente o rosto e a voz dessa professora – ela, que se atirou da janela de um hospital psiquiátrico na tentativa de libertar-se, fez de tudo para que o aprendêssemos corretamente.
A propósito, nasci no Brasil, Nordeste, Ceará, Cariri, Juazeiro do Norte – e como queria ser orgulhoso de ser brasileiro! Como queria cantar o Hino da Independência com a convicção de que cada vocábulo, de fato, poderia ser efetivado em nossa sociedade ainda assaltada por visões obsoletas! Queria orgulhar-me por ser dessa terra, porém, do ponto de vista político, não sei se isto é possível... Como fazê-lo se Brasil e corrupção são sinônimos? Não sei se posso, diga-se de passagem, cantar o Hino da Independência contente por ver a “mãe gentil” ser iluminada pelo sol da liberdade que raiou em seu horizonte se tal liberdade sequer existe. Não sei se posso me sentir parte de uma “brava gente” capaz de morrer para alcançar a liberdade dessa pátria. No meu serviço militar, dentro de coturno e fardamento, fui instigado a crer na pátria como algo de imenso valor e que eu deveria, com o sacrifício da vida, preservá-la, no entanto...
Sou filho de uma pátria outrora colonizada por megalomaníacos europeus e, desde o início da colonização, um breve passeio pela história nos mostra que fomos construídos sob domínio de condições pouco amistosas. Posteriormente, os europeus não conseguiram ver, nos nativos, possibilidades simpáticas de exploração do trabalho, caiu sobre os ombros dos negros, vindos de alguns países africanos em situações subumanas, a marca abjeta da escravização, vergonhosamente necessária para a manutenção do poder de brancos sem escrúpulos. Como orgulhar-me disso?
Tantas coisas aconteceram de lá para cá... O Brasil foi o covil do rei de Portugal, vivenciou a escravatura e viu: a república ser implantada por marechais, Canudos ser destruída, um governo militarista destruir a paz da população, após a democracia ser restituída morrer o presidente eleito, uma emissora aberta de poucos escrúpulos manipular uma eleição a favor de um dos candidatos (e este ser retirado do poder posteriormente) e um sociólogo ser presidente e desejar privatizar, dentre outras instituições, universidades públicas. Como orgulhar-me disso?
E agora, alguns anos após a redemocratização ter sido conquistada a duras penas – o governo militar durou vinte e um anos, não podemos esquecer esta afronta ao bom senso! –, alguns brasileiros têm ido às ruas com intenções de se manifestar contra o atual governo. Uns querem externar o descontentamento proporcionado pela reeleição da candidata do “PT” que venceu as eleições contra o candidato do “PSDB”, outros querem reclamar pelas medidas de urgência tomadas pela presidenta no começo do ano – e até, neste caso, têm razão, porque ela alterou obscenamente leis trabalhistas. Alguns confundem um momento de manifestar suas indignações, inclusive o desejo de que ocorra “impeachment” da presidenta, com uma apologia a algo que eu considero grave demais: falam em intervenção militar ou retomada do governo ditatorial ou novo golpe militar...
Pergunto: quando raiará a liberdade no horizonte do Brasil? Sobretudo a liberdade intelectual: quando ela surgirá? Um brasileiro ser capaz de manifestar-se a favor de que haja intervenção militar somente porque não aceita a vitória de um candidato numa eleição, ou porque não suporta medidas tomadas por este, não me parece algo crível. Se, assim como eu, a população brasileira clama por uma reforma política, isto é louvável – e quanto melhor será que essa população de fato se manifeste –, mas não consigo entender cartazes que alguns erguem sob o sol da nação fazendo menções à ditadura militar. Será que a desinteligência pode estar tão presente assim na consciência (não) política de alguns brasileiros?
“Não temais ímpias falanges, / Que apresentam face hostil; / Vossos peitos, vossos braços / São muralhas do Brasil”? Quem dera ante “ímpias falanges” de “face hostil” nós brasileiros fôssemos capazes de nos tornar muralhas aptas a, em uníssono, clamar por melhores dias para nosso país. Mas, pelo que me consta, ir às ruas, para alguns, tem sido sinônimo de defesa de interesses excessivamente particulares – a pátria parece ser lembrada apenas em algumas cores presentes em seus figurinos. Temo que as “ímpias falanges” de “face hostil”, de que trata o hino, sejam formadas, no momento, por brasileiros. Desse modo, as muralhas formadas por nossos peitos e nossos braços deveriam proteger o Brasil contra a face de alguns dos seus próprios filhos pouco abertos à reflexão e à coerência?
Frei Tito de Alencar, meu caro conterrâneo, mártir nacional fustigado pela ditadura, como queria que sua imagem não fosse profanada por certos brasileiros capazes de implorar pelo retorno dos anos de chumbo! Dona Ieda, minha professora inesquecível, que canta sempre o Hino da Independência em minha memória, como queria poupá-la de cantar esse hino que, para alguns, traz apenas palavras de pouco significado e motivações pouco exequíveis!
Uma reforma política, contra a gentalha dada à bestialidade típica de quem deseja o poder, seria viável agora, porém me parece pouco provável que certos brasileiros sejam capazes de buscar isso com o mesmo afinco com que são capazes de escrever, em português ruim, mensagens que fazem apologia à ditadura militar! E isso tudo me entristece... 
Texto: Émerson Cardoso
15/03/15




RESENHA DO LIVRO "AS PORTAS DO TEMPO NOS MUROS DA VIDA", DE ELIELDO CARVALHO E EPITÁCIO RODRIGUES


Gostei demais do título da obra de Elieldo Carvalho e Epitácio Rodrigues: As portas do tempo nos muros da vida. Esta obra reúne prosa e poesia em edição realizada pela BSG, em 2013, na cidade de Crato – CE.
            Quando li essa obra pela primeira vez, busquei nos textos a mesma criatividade com que os autores construíram o título. Tentei ler os textos em prosa – escritos por Epitácio Rodrigues – e os textos em poesia – escritos por Elieldo Carvalho – em busca de uma relação entre eles. Busquei, ainda, sensação parecida com a que sentiu Ivan Nascimento no prefácio: “Ao ler As portas o tempo nos muros da vida, senti-me como um capitão do meu próprio barco, um lobo solitário, a vagar num mar de dúvidas, questionamentos, segurando na corda da popa, vento no rosto, solene silêncio...”
            A criatividade do título eu encontrei em textos como: A poesia, O Cronos e as crônicas, Vidiária, A cisão humana: condição de liberdade, Identidade, Do ninguém à pessoa, Paisano e O elogio.
            Percebi relações entre os textos dos dois autores à medida que encontrei neles discussões pautadas no cotidiano da vida – cotidiano dado ao efêmero e tão incerto quanto fascinante. No prosador, que é um sóbrio cronista, deparei-me com reflexões fadadas a afirmar: “Tudo é efêmero!” E o cotidiano foi muito bem personificado na metáfora da “nuvem cinzenta e pálida que mascara a existência efêmera”. Mas, do prosador, o melhor texto é, sem dúvidas, O elogio que, segundo seu autor, “humaniza o homem”. Esse texto realmente me chamou atenção, porque faz uma apologia inteligente a esse vocábulo mal interpretado que, neste tempo de poucas harmonias, e relações tão tumultuárias, poderia ser – se bem empregado – um paliativo para as misérias da alma.
            Quanto aos poemas, a advertência que se faz é: a quem busca poesia complexa, de ares rebuscados e figurações herméticas eles não são recomendáveis. Mas para quem busca a poesia do simples, para quem se comove com o cotidiano também transposto para a palavra, para quem sente o fazer poético como algo a ser leveza e despretensão deve, sem dúvidas, satisfazer-se com a poesia de Elieldo Carvalho. Eu gostei, por exemplo, do tom metalinguístico do primeiro poema: A poesia. Também vi muita qualidade no poema Vidiária, texto em que o poeta cria um eu lírico lamentando o fato de que o tempo, fugaz demais para que o acompanhemos, se vai impiedoso. Mas, no irremediável, esse eu lírico vislumbra algum conforto porque, afinal de contas: “Acabou o tempo... e surgiu um neologismo”. E como se fosse possível esperar, ante uma vidiária repleta de obrigações a cumprir, o eu lírico ousa dizer que “depois pensa nisso”.
            Por último, remeto-me à ideia exposta por Ivan Nascimento a propósito das sensações que ele experimentou ao ler esse livro. Não, no meu caso a metáfora criada tão bem por Ivan Nascimento não me cabe, prefiro dizer diferente a partir da experiência que vivenciei: ao ler As portas do tempo nos muros da vida fiquei com a sensação de que preciso colocar cada vez mais os pés no chão e, sobriamente, tentar entender o quanto sou pequeno ante o tempo – esse monstro devastador que me conduz ao irreversível.
            Tenho a sensação, ao discorrer sobre essa obra, que muito mais os autores teriam para dizer. Elieldo Carvalho ainda tem muito a experimentar poeticamente, Epitácio Rodrigues tem assuntos vários a percorrer em sua filosófica prosa. O livro é simples em sua estrutura física, porém prenuncia o quanto esses autores ainda têm a expressar por meio da arte literária e, com isto, ampliar seus horizontes poéticos.
           Elieldo Carvalho nasceu em Exu – PE, é graduado em Letras, é especialista em Língua Portuguesa e é professor das redes públicas de ensino do estado do Ceará e Pernambuco. Além de poeta, tem interesse profundo por música, com ênfase em MPB e música regional.
           Epitácio Rodrigues é graduado em Filosofia e Teologia, atuou no Instituto Diocesano de Filosofia e Teologia e na Universidade Vale do Acaraú. Atualmente é professor das redes públicas de ensino do estado do Ceará e Pernambuco. Além de cronista, ele desenvolve trabalhos de pesquisa na área de Filosofia.

             Émerson Cardoso
27/02/15

CARTA AO ATUAL PREFEITO DA CIDADE DE JUAZEIRO DO NORTE - CE


Senhor Prefeito,

Inicio esta carta com um questionamento um tanto sentimentaloide: em que grau afetivo – se é que podemos estipular graus para o afeto de alguém – o senhor se encontra em se tratando da cidade de Juazeiro do Norte?
            Talvez eu tenha iniciado meu texto com este evidente apelo emocional porque desejo sensibilidade de sua parte – terá sido uma falha exigir de um homem “devotado” à esfera pública resquícios de sensibilidade? Talvez não, porque testemunhas oculares dão conta de que o senhor era tão solícito com algumas pessoas: até nas tradicionais renovações de algumas delas era possível vê-lo refestelando-se antes e durante sua campanha eleitoral!
Eu suponho que tomarei um rumo mais objetivo em minha escrita, daqui para frente. Falarei, portanto, de sua popularidade por ocasião da campanha cujo slogan era: Pela vontade do povo, se não estou equivocado. Aludia-se, neste caso, abertamente à sua simpática proximidade com a população juazeirense porque, como o senhor enfatizava com pungência, o senhor é um romeiro que, como tantos outros, acorreu à terra do Padre Cícero e, por amor e devoção a esta, pretendia fazer dela um espaço melhor para a população e para seus visitantes romeiros.
         O senhor foi eleito, desse modo, “pela vontade do povo”, fez carreatas comemorativas, foi aclamado por uma parcela da população e tomou posse, pela segunda vez, como prefeito com uma porcentagem de 51,55% dos votos. É chamado carinhosamente de Raimundão, o que só comprova sua amistosa ligação com o povo e suas idiossincrasias.
           Não quero tocar em assuntos embaraçosos, para preservar sua saúde, e promover seu bem-estar, mas poucos meses após sua posse já se ouvia falar em possibilidade de cassação – que chato! –, insatisfação das pessoas pela falta de pulso administrativo, também por sua tendência a querer livrar-se das críticas com explicações não muito convincentes – seja pela fragilidade dos argumentos, seja pela dicção, que alguns dizem ser constrangedora.
         O Cariri cearense sempre teve destaque nacional pelos valores culturais de que é dotado. O senhor, como pode ser comprovado fazendo uma simples pesquisa por sites da internet, divulgou para o país a imagem de Juazeiro do Norte em jornais a que os brasileiros recorrem com frequência, na simpática “dona” do Brasil que nasceu sob a égide da famigerada ditadura militar: a Rede Globo de Televisão. Vi o senhor ser mencionado, por exemplo, no Bom Dia Brasil, Jornal Nacional e Fantástico. Queriam expandir sua já proeminente fama, por certo!
            Da sua gestão tenho guardada e resguardada uma imagem comovente: a fotografia em que aparece a Professora Antônia Lucimeire Oliveira, que teve repercussão nacional ao ser fotografada chorando em decorrência do desrespeito com que ela e demais educadores foram tratados pelo senhor. O resultado foi a manifestação que culminou com seu – que horror! – confinamento no Banco do Brasil. Nesta ocasião eu estive lá e, recentemente, li um cordel alusivo a este acontecimento que tanto o fez sofrer. Trata-se do cordel de estreia de Lívio do Sertão: No dia em que o povo de Juazeiro ocupou as ruas ou a história do prefeito enjaulado. Sem dúvidas um texto que ataca sua pessoa com mordacidade, e que registra um recorte importante da cidade que o senhor administra tão dedicadamente.
            Sua dedicação é tanta que temos visto grandes ações em seu governo: uma fotografia sua, outro dia, não mostrou seu empenho na tentativa de limpar um esgoto a céu aberto com um palitinho? Sua rádio, a Vale FM, não tem exposto seu desempenho com ares de que o senhor seria digno de admiração e louvor? As ruas não estão com o melhor em termos de organização e asfaltamento? Drenagens não foram realizadas com rigor em bairros que sofriam em épocas de chuva? Hospitais e postos de saúde não têm desenvolvido atividades exemplares, por serem assistidas por profissionais bem pagos que dispõem de medicamentos e produtos hospitalares em quantidade e qualidade irreprocháveis? A educação não tem sido prioridade, com professores valorizados e alunos tratados com dignidade?
            Prefeito, senhor prefeito, não seria possível observar com maior afeição o que ainda precisa ser realizado a favor do povo cuja vontade o colocou no poder? Precisa fazer só um pouquinho e tudo será melhorado: quase não se vê problema na cidade, não é? Não se vê...
            Recentemente, escrevi um texto sobre a violência que tem tirado a paz da população. Lá eu fui um tantinho malvado com o senhor, pois eu me indagava, ingenuamente, sobre a causa de tanta violência. A causa desta seria a má distribuição de renda, o crescimento desordenado da cidade, a péssima (só um pouquinho péssima, pútrida, desavergonhada, infame, claro!) administração impulsionadora das discrepâncias sociais mais que nítidas? Haverá resposta?
A propósito de minha mania de perguntar: no primeiro parágrafo eu perguntava qual o grau de afeto que o senhor despendia em relação à histórica cidade de Juazeiro do Norte. Agora eu vou perguntar algo relacionado a isto, porém de outro modo: por que o senhor odeia, hostiliza, despreza e repudia com tanta veemência a cidade em que nasci, fui criado e que vi ser administrada por prefeitos cujo compromisso quase nunca condizia com o que era prometido nos discursos em época de eleição?
Não vá chorar, porque não o quero triste. Para preservá-lo, não vou transcrever o seguinte trecho de uma crônica que postei em meu blog, e que intitulei: Obviedades sobre uma cidade, um estado e um país.

Nascido e criado em Juazeiro do Norte, terra de valor histórico incomensurável, terra de Maria de Araújo – a santa sem sepulcro –, acompanho com olhar mais crítico a administração de minha cidade apenas há alguns anos. A “lucidez” só nos vem com certa idade – falo por mim e por alguns, apenas, porque gente há que sequer tal “lucidez” foi capaz de fazê-la acordar.  
Esgoto a céu aberto na maior parte das ruas, terrenos baldios que funcionam como lixões, bairros que necessitam de obras de drenagem, bairros – maior parte da cidade – que não têm saneamento, praças carcomidas e desmatadas e sujas, ausência de lixeiro em quase todos os espaços de maior movimentação, falta d’água diária em alguns bairros – sobretudo em época de romaria –, centro da cidade desestruturado e vitimado por poluição sonora e visual, impostos gritantes e abusivos pouco revertidos em melhoria para a população, decadência de escolas, defasagem dos vencimentos do funcionalismo público, desrespeito explícito contra os visitantes que vêm para a cidade em época de romaria, desrespeito diário aos moradores da cidade que vivem à mercê da própria sorte ante a crescente violência, ruas com péssimas camadas de asfaltos, cultura pouco valorizada, o universo artístico pouco incentivado, em decorrência da chuva um mundo de enchentes e ampliação ou abertura de novos buracos, deficiência mordaz e vergonhosa da saúde, assaltos, assassinatos, transporte público indigno, desestrutura total e absoluta e absurda do trânsito, vereadores em sua maioria omissos, prefeitos – desde que eu nasci – absolutamente negligentes e apáticos à causa do povo e tirânicos e opressores e frágeis de caráter e sem inteligência e pútridos em suas condutas (des) administrativas...


Não leve a sério minha tendência a atirar contra o senhor minhas reivindicações. Não suporto ver pessoas constrangidas. Espero que os juazeirenses, sobretudo os que o tratam amavelmente como Raimundão, continuem apáticos e silenciosos, porque assim sua cabeça continuará deitando-se no travesseiro com a consciência tranquila – mais tranquila do que Raskólnikov, de Crime e castigo, após utilizar-se de sua machadinha para fins beneficentes, enfatize-se.
   Direciono uma pergunta, agora, para mim mesmo: como seria se um dia minha cidade dispusesse de um político capaz de olhar, com coerência, para as necessidades do seu povo e para suas possibilidades de desenvolvimento? Já pensou, senhor prefeito, se os romeiros chegassem aqui, um dia, e vissem minha cidade revitalizada! Quem dera! Eu fugirei destas visões romantizadas, obviamente, porque elas são tão exequíveis quanto a possibilidade de um político – sem menção ao presente nestas linhas, claro! – ser honesto no Brasil.
  No último aniversário da minha cidade escrevi um poema – uma paródia do poema Romance da Guarda Civil Espanhola, de Federico García Lorca – para homenageá-la. Em verdade, escrevi mais um texto de revolta, senhor prefeito. Não o quero ver sofrer – não quero mesmo... Não vou transcrever o tal poema, não vou! O título dele é Ode inconformada para Juazeiro do Norte.

 Ó cidade dos romeiros
Que à mercê da própria sorte
Debulha preces sentidas:
Quem te dará proteção
Contra facínoras, crápulas,
Que te roubam vorazmente
Eleição pós eleição?

Ó cidade atormentada
Pela falta de respeito
De monstruosos políticos:
Quem brigará por tuas lutas
Quem te dará novos homens
Que resguardem teus valores
E que tenham gestos dignos?

Ó cidade inconformada
De trânsito insuportável
E precária infraestrutura:
Quem te vê que não deseja
Novos rumos, novas eras,
Renovação dos teus bairros,
A segurança nas ruas?

Ó cidade sobranceira
De nordestinas sapiências
E de imponente memória:
Quem salvará do abandono
Teus recantos e riquezas?
Esqueceram-se de ti
Desprezaram tua história...

Queria limpar-te as feridas
Lavar teus olhos chorosos
Verter abraços queria
Sobre ti, cidade minha!

Queria salvar-te, Juazeiro,
Dar-te futuro honroso
Abrir-te as mãos com preclaras
Aconchegar-te em meu peito...

Ó cidade resistente,
Tenho pouco para dar-te:
Meus versos inconformados
São um presente simplório...

Mas os entrego, saudoso,
E espero ver-te, quem sabe,
Assistida e refulgente
A vestir novas roupagens!

Concluo, caro prefeito, afirmando que precisamos ver com urgência novas perspectivas para a cidade de Juazeiro do Norte. Não sei quanto seria suficiente para dar novas roupagens à nossa terra – o senhor, por um acaso, pediu os 22 milhões emprestados com esta intenção? Empréstimo será realmente uma boa ideia, hein? Sem mais, certo de que o senhor refletirá sobre minhas simplórias palavras, despeço-me com votos de que o senhor seja muito feliz, e de que o senhor tenha muitos anos de vida – afinal de contas, somente com muitos anos de vida o senhor poderá aproveitar a modesta quantia que o senhor tem colecionado com os muitos mandatos que já experimentou.
Atenciosamente:

Émerson Cardoso

NOTAS SOBRE A AMIZADE EM "MARY & MAX: UMA AMIZADE DIFERENTE", DE ADAM ELLIOT


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Mary & Max: uma amizade diferente. Revista Sétima de Cinema, n. 20, p. 03 - 05, nov. de 2014. 

Alguém me disse, certa vez, que amizade não passa de uma utilidade prática – eu discordo. Eu prefiro apoiar-me, talvez romantizando o termo – o que é um problema a ser dirimido –, na assertiva de Clarice Lispector (1999, p. 78)[1]: “Amizade é matéria de salvação.”
          A propósito, uma das mais belas discussões sobre a amizade – amizade que se adéqua à linha do que Clarice Lispector compreende como matéria de salvação – podemos encontrar na obra cinematográfica Mary & Max: uma amizade diferente, do australiano Adam Elliot.
            Mary Dayse Dinkle, filha única de uma família visivelmente disfuncional, aos oito anos decidiu escrever para alguém da América apresentando, para seu interlocutor, alguns questionamentos que sua mente de criança ainda não conseguia compreender. Sua carta foi, por acaso, direcionada a um homem americano chamado Max Jerry Horowitz que, solitário, comedor compulsivo, portador da Síndrome de Asperger, viu seu cotidiano, por vezes sombrio, ser alterado completamente. 
A partir desta primeira carta, que Max responde após intenso conflito, uma amizade nasce entre os dois e os acompanha, salvificamente, por anos, resistindo à distância, às impossibilidades de encontro, às angústias que cada um, em seu universo particular, sofria ante uma existência nem sempre tão amigável.
O tom sombrio que perpassa a vida de Max é indicado pela fotografia em preto e branco; a fotografia que compõe as cenas em que Mary aparece tem um tom amarronzado com poucas variações de cores.
Mundos, idades e experiências existenciais tão diferentes poderiam representar uma impossibilidade para o estabelecimento de uma amizade, no entanto a solidão, o vazio existencial, a ausência de afeto os reuniu. O mundo de Max, antes em preto e branco, passa a sofrer alterações também nas cores, através dos objetos que Mary envia junto das cartas.
Inúmeros temas são abordados nesta obra e podemos afirmar que todos eles convergem para o estreitamento da relação que se desenvolve entre Mary e Max. Para ilustrar, consideremos o fato de que a solidão da menina surge em decorrência da falta de atenção dos pais – seu avô comete suicídio no início do filme, seu pai trabalha numa fábrica de chá e, quando está em casa, procura ficar sozinho num quarto dos fundos, empalhando aves mortas, e sua mãe, além de cleptomaníaca, é alcoólatra e viciada em antidepressivos. Max, por sua vez, de família judia, não conheceu o pai e sofreu pela morte da mãe que cometera suicídio quando este ainda era um garoto.
Na escola, Mary era maltratada por ser gorda e por ter uma mancha marrom no rosto; Max sofria algo parecido: era atormentado em seu bairro por ser, além de gordo, portador da Síndrome de Asperger que o tornava aparentemente estranho em relação às crianças de sua faixa etária.
Por esta identificação mútua, Mary encontra em Max a atenção que não encontrava em casa. Max, por sua vez, sentia-se reconfortado por ter encontrado finalmente uma amiga – já que fazer amigos (além de ter um estoque de chocolate para a vida inteira e a coleção inteira dos “noblets”) era o seu principal objetivo.  
Um impasse ocorre entre eles, e simula um rompimento da amizade, quando Mary decide realizar um trabalho acadêmico com a intenção de conhecer a Síndrome de Asperger e, posteriormente, curar seu amigo. Ele, que não se sente com necessidade de cura, rompe a amizade que construíram causando nela uma sensação de culpa que a encoraja a destruir sua carreira acadêmica.
Embora casada, Mary sentia-se cada vez mais solitária, infeliz e dependente de antidepressivos – tal qual sua mãe. A angústia se acentua quando seu marido escreve uma carta dizendo-lhe que a abandonaria para viver com outro homem. Nesta ocasião, grávida, Mary decide suicidar-se e, no auge de sua dor existencial, ocorre sua redenção: Max envia-lhe uma nova correspondência e ela reencontra o ânimo para viver.
Comovente, intensa, dotada de uma ironia que margeia o macabro do humor, esta obra cinematográfica, excedente em singeleza, dá-nos uma dimensão profícua sobre o que a amizade deve representar para um indivíduo: conforto, auxílio, cumplicidade, compreensão e, sobretudo, aceitação.
Por aceitar Max em sua diferença, Mary reencontra a si mesma e ressignifica sua vida: estar com o outro não significa, necessariamente, tentar curá-lo. Ela passa a compreender, portanto, o que nós muitas vezes não compreendemos com facilidade: ninguém se cura de ser um ser humano – eis a mais indevassável das verdades.
E como escreve Rachel de Queiroz (1989, p. 93)[2] numa crônica sobre o tema: “Respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos”. E tenho dito!
                





[1]LISPECTOR, Clarice. Uma amizade sincera. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 78.
[2]QUEIROZ, Rachel de. Amigos. In: Mapinguari: crônicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 93.

"A TRISTE PARTIDA", DE PATATIVA DO ASSARÉ (MUSICADA COM ADAPTAÇÕES POR LUIZ GONZAGA)


Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz

A treze do mês
Ele fez experiença
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal

Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem

Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"

Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Sinhô São José
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé

Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nóis vamo a São Paulo
Viver ou morrer

Nóis vamo a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Ai pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar

E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem

Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
A seca terrive
Que tudo devora
Ai, lhe bota pra fora
Da terra natal

O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar

No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Iscrama a dizer

De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer

E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou

E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
O pai, pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul

Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão

Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar

Se arguma notíça
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos óio
Começa a cair

Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não

Distante da terra
Tão seca, mas boa
Exposto à garoa
A lama e o paul
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul

Antonio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré) nasceu em 05 de março de 1909 e faleceu em 08 de julho de 2002. Suas poesias discorrem, algumas com humor, outras com intenso lirismo, sobre política, valores identitários do sertanejo, a condição social do nordestino, a religiosidade, as relações familiares e afetivas do matuto, dentre outras.