CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Mary & Max: uma amizade diferente. Revista Sétima de Cinema, n. 20, p. 03 - 05, nov. de 2014.
Alguém me disse, certa vez, que amizade não passa de uma utilidade prática – eu discordo. Eu prefiro apoiar-me, talvez romantizando o termo – o que é um problema a ser dirimido –, na assertiva de Clarice Lispector (1999, p. 78)[1]: “Amizade é matéria de salvação.”
Alguém me disse, certa vez, que amizade não passa de uma utilidade prática – eu discordo. Eu prefiro apoiar-me, talvez romantizando o termo – o que é um problema a ser dirimido –, na assertiva de Clarice Lispector (1999, p. 78)[1]: “Amizade é matéria de salvação.”
A propósito, uma das mais belas
discussões sobre a amizade – amizade que se adéqua à linha do que Clarice
Lispector compreende como matéria de salvação – podemos encontrar na obra cinematográfica
Mary & Max: uma amizade diferente,
do australiano Adam Elliot.
Mary Dayse Dinkle, filha única de
uma família visivelmente disfuncional, aos oito anos decidiu escrever para alguém
da América apresentando, para seu interlocutor, alguns questionamentos que sua
mente de criança ainda não conseguia compreender. Sua carta foi, por acaso,
direcionada a um homem americano chamado Max Jerry Horowitz que, solitário,
comedor compulsivo, portador da Síndrome de Asperger, viu seu cotidiano, por
vezes sombrio, ser alterado completamente.
A partir desta primeira carta, que Max responde após
intenso conflito, uma amizade nasce entre os dois e os acompanha,
salvificamente, por anos, resistindo à distância, às impossibilidades de
encontro, às angústias que cada um, em seu universo particular, sofria ante uma
existência nem sempre tão amigável.
O tom sombrio que perpassa a vida de Max é indicado
pela fotografia em preto e branco; a fotografia que compõe as cenas em que Mary
aparece tem um tom amarronzado com poucas variações de cores.
Mundos, idades e experiências existenciais tão
diferentes poderiam representar uma impossibilidade para o estabelecimento de
uma amizade, no entanto a solidão, o vazio existencial, a ausência de afeto os
reuniu. O mundo de Max, antes em preto e branco, passa a sofrer alterações
também nas cores, através dos objetos que Mary envia junto das cartas.
Inúmeros temas são abordados nesta obra e podemos
afirmar que todos eles convergem para o estreitamento da relação que se
desenvolve entre Mary e Max. Para ilustrar, consideremos o fato de que a
solidão da menina surge em decorrência da falta de atenção dos pais – seu avô
comete suicídio no início do filme, seu pai trabalha numa fábrica de chá e,
quando está em casa, procura ficar sozinho num quarto dos fundos, empalhando
aves mortas, e sua mãe, além de cleptomaníaca, é alcoólatra e viciada em
antidepressivos. Max, por sua vez, de família judia, não conheceu o pai e
sofreu pela morte da mãe que cometera suicídio quando este ainda era um garoto.
Na escola, Mary era maltratada por ser gorda e por ter
uma mancha marrom no rosto; Max sofria algo parecido: era atormentado em seu
bairro por ser, além de gordo, portador da Síndrome de Asperger que o tornava
aparentemente estranho em relação às crianças de sua faixa etária.
Por esta identificação mútua, Mary encontra em Max a
atenção que não encontrava em casa. Max, por sua vez, sentia-se reconfortado
por ter encontrado finalmente uma amiga – já que fazer amigos (além de ter um
estoque de chocolate para a vida inteira e a coleção inteira dos “noblets”) era
o seu principal objetivo.
Um impasse ocorre entre eles, e simula um rompimento
da amizade, quando Mary decide realizar um trabalho acadêmico com a intenção de
conhecer a Síndrome de Asperger e, posteriormente, curar seu amigo. Ele, que
não se sente com necessidade de cura, rompe a amizade que construíram causando
nela uma sensação de culpa que a encoraja a destruir sua carreira acadêmica.
Embora casada, Mary sentia-se cada vez mais
solitária, infeliz e dependente de antidepressivos – tal qual sua mãe. A
angústia se acentua quando seu marido escreve uma carta dizendo-lhe que a
abandonaria para viver com outro homem. Nesta ocasião, grávida, Mary decide
suicidar-se e, no auge de sua dor existencial, ocorre sua redenção: Max
envia-lhe uma nova correspondência e ela reencontra o ânimo para viver.
Comovente, intensa, dotada de uma ironia que margeia
o macabro do humor, esta obra cinematográfica, excedente em singeleza, dá-nos
uma dimensão profícua sobre o que a amizade deve representar para um indivíduo:
conforto, auxílio, cumplicidade, compreensão e, sobretudo, aceitação.
Por aceitar Max em sua diferença, Mary reencontra a
si mesma e ressignifica sua vida: estar com o outro não significa,
necessariamente, tentar curá-lo. Ela passa a compreender, portanto, o que nós
muitas vezes não compreendemos com facilidade: ninguém se cura de ser um ser
humano – eis a mais indevassável das verdades.
E como escreve Rachel de Queiroz (1989, p. 93)[2]
numa crônica sobre o tema: “Respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não
procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo
da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos
defeitos”. E tenho dito!
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