sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CARTA PARA A VIDA APESAR DO CAOS DO MUNDO

Não sabemos totalmente onde localizar a fronteira entre o que é certo e o que é errado. Existem muitas implicações nessa dualidade, porque o que é certo para mim pode ser errado para o outro. Talvez seja esse, por excelência, o desafio de nossas existências: refletir sobre o melhor caminho para um possível equilíbrio e descobrir forças para agir conforme uma ética, um senso de justiça, um construto de respeito. 

Somos dois lados de uma página em branco que pode ser construída por quem melhor acolhe a capacidade de articular palavras na tentativa de contar uma história. Chimamanda Ngozi Adichie ensina que há um perigo inerente à legitimação de uma história única. Sempre existem dois ou mais lados quando uma narrativa é apresentada.

Tudo o que sabemos (do muito que desconhecemos) é que ainda é possível respirar apesar da dor e da angústia reveladas no cotidiano. Respirar ainda é possível?

Cada caminho percorrido e cada decisão tomada, tenho por certo, é como o caos afogado nas linhas das mãos sem qualquer resquício de correnteza. 

Assim é a vida: e tudo o mais é encontrar forças para prosseguir na jornada que pode ser curta ou pode ser longa, mas está repleta de paisagens verdejantes, apesar do cinza. 

Émerson Cardoso

11/10/2022




quarta-feira, 21 de setembro de 2022

CARTA PARA QUEM ESCREVE UMA TESE DE DOUTORADO


Caros irmãos e irmãs, 

Antes de iniciarmos a escrita da tese, que nos deixa em tensão constante, passamos por um processo seletivo excludente e massacrante, concorda? Quando saiu o resultado, devo dizer, a alegria foi sem tamanho. A sensação de vitória não nos cabia no peito, lembra? 

Depois, vêm as disciplinas a cumprir, com seus respectivos trabalhos de conclusão. Em seguida, temos que retomar nossos projetos e reorganizá-los para iniciar o trabalho de pesquisa. Tudo em atendimento a burocracias e a cumprimento de prazos. Faz parte do métier, sei disso, mas não é tão simples quanto parece. 

Não sei como aconteceu com vocês, mas, no meu caso, eu estudei em João Pessoa-PB, cidade muito distante da minha, de modo que ir para as aulas, semanalmente, foi uma experiência entre alegre e angustiante: 1) alegre porque ir para as aulas era a certeza de que eu havia entrado no Programa de Pós-Graduação tão desejado e a oportunidade de estudar com professores e professoras, sem exceção, incríveis; 2) angustiante porque voltar para casa era ter que ir da rodoviária, depois de quase nove horas de viagem, para a escola em que trabalho. Gosto muito de ser professor, mas na ocasião, quando eu esperava o afastamento do Estado (que me veio seis meses depois e, por questões burocráticas, durou apenas um ano), a sala de aula me consumia.

Agora, que estou na escrita da tese, penso muito no seguinte: que tal transformar esse processo que pode ser angustiante em algo suportável? 

Para começar, devo dizer que escrever uma tese é um processo extremamente solitário. Ele exige solidão, sem dúvidas, porque só se desenvolve quando se tem, minimamente, um espaço adequado para a leitura e a escrita, quando se tem ambiente silencioso e tranquilo com a menor quantidade possível de interferências etc. Que tarefa difícil encontrar esse espaço para muitos de nós!

Quando consigo esse espaço, coloco cânticos gregorianos, sons da natureza ou de harpas. Os livros de que preciso coloco-os todos muito próximos de mim. Escrevo seguindo um roteiro mental diariamente construído. Como faço mapeamento das obras literárias que analiso, também fichamentos das obras teórico-críticas lidas ao longo da pesquisa, isso me ajuda significativamente. Devo dizer, todavia, que não deixa de ser desafiador cumprir esse ritual!

Nesse processo que exige organização e momentos solitários, Deus sabe, corremos o risco de vivenciar dores físicas e psíquicas. Psíquicas, sobretudo, pois sentimos pressões de todos os lados. Os familiares raramente consideram nossa atividade como um trabalho relevante. Os amigos raramente conseguem a empatia que nos representa acolhida para lidar com a necessidade de distanciamento, por vezes, tão sofrida. Quem tem relacionamentos afetivos pode sofrer com cobranças de atenção quando, em verdade, o que queremos é empatia e apoio. Os ambientes de trabalho (caso estejamos vinculados a algum ambiente de trabalho) não têm a verdadeira dimensão do sacrifício que é estudar, produzir uma tese e sobreviver às exigências inerentes às atividades a serem realizadas. Os programas (não são todos) criam seminários acadêmicos e relatórios a serem entregues periodicamente com o objetivo de, por vezes, burocratizar o que já é burocratizante ao extremo. Faz parte do métier, claro, mas ainda é desafiador!

Nesse contexto todo, ainda existe a relação com o orientador, que pode ser maravilhosa ou desalentadora (eu tive a sorte de ter o melhor orientador do mundo, tendo em vista que ele tanto orienta trabalhos acadêmicos com dedicação e vasto conhecimento, quanto ajuda na compreensão de conteúdos que podem ser complexos, sempre com respeito e gentileza). Há casos, porém, em que as pessoas não têm essa mesma sorte. O sofrimento, quando isso acontece, pode ser triplicado. Torço para que vocês estejam bem nesse quesito! 

Quanto ao processo de escrita da tese propriamente dito, invade-nos, frequentemente, o MEDO. Temos medo de não dar conta do trabalho, de não cumprir os prazos, de não conseguir realizar um trabalho digno da leitura do orientador (no meu caso, como meu orientador é, realmente, maravilhoso, eu fico com o receio de decepcioná-lo), de falhar, de não alcançar os objetivos propostos no projeto etc. São muitos os medos - e isso amplia nossa angústia e ansiedade. Muitos de nós (eu que o diga) precisamos de psiquiatras e psicólogos para sobreviver a esse período. Em nosso caso, principalmente, somos sobreviventes de uma pandemia e estamos em contexto de desvalorização completa das pesquisas científicas em nosso país. A coisa não anda das mais tranquilas!  

Assim, entre angústias e medos, por vezes, ficamos paralisados. Então, não vamos deixar que isso aconteça. Vamos organizar nossos horários de escrita de modo a ter, também, um momento de distanciamento. Lazer, atividade física e distrações podem nos ajudar. Não vamos tomar café, por Deus, porque ele pode aumentar nossa ansiedade (se bem que algumas pessoas precisam do café para se manterem acordadas). Eu, se tomar café, não escrevo mais nada.

Além disso, vamos usar protetor solar para ficarmos diante do computador. Tive problemas de vermelhidão na pele e o protetor me ajudou. Seria interessante usarmos lubrificantes oculares para amenizarmos o ressecamento dos olhos. Vamos tomar muita água, viu? Também chás e sucos. Devemos acalmar a cabeça com músicas agradáveis. Assistir a filmes leves também pode ser uma boa ideia. Eu gosto de comédias. Vamos nos levantar, de vez em quando, e fazer alongamentos? Isso minimizará nossos problemas de circulação. 

Nesse momento em que o tempo corre indiferente ao nosso desespero, vamos acreditar em dias melhores e criar o hábito de escrever sem desanimar. Pausas para distanciamento, sim, mas dedicação também, pois escrever é criar um hábito, como tudo na vida, e exige algum sacrifício. Criado o hábito, o sofrimento tende a amenizar, porque o hábito dá a sensação de dever cumprido.

Depois, o que mais queremos é nos superar, construir um espaço de aprendizagens e ser capazes de olhar para esse momento de "sofrimento" e dizer: foi um tempo difícil, sim, mas vencemos. Vencemos!

Pode parecer clichê, tudo o que escrevi, porém: vai passar essa fase mais difícil, viu? Em breve, conseguiremos aquilo a que tanto nos dedicamos. E todo esse processo doloroso terá valido a pena!

Muita força, coragem e dedicação! Estamos na luta por dias melhores! Estudar nesse país é resistência, então resistamos! 

Atenciosamente, 

Émerson Cardoso






terça-feira, 6 de setembro de 2022

CARTA DE ANIVERSÁRIO PARA PAULO HENRIQUE


Juazeiro do Norte - CE, 06 de setembro de 2022


Caro sobrinho Paulo Henrique, 


Resolvi dar de presente, neste seu aniversário de dezoito anos, o que de mais importante eu poderia oferecê-lo: minhas palavras escritas nesta que se pretende uma carta pessoal não muito extensa, porque você anda preguiçoso demais e tem fugido de leituras. 

Para começar, lembro-me de que fiquei em choque quando sua mãe (minha irmã muito querida) disse que estava grávida. Fiquei em choque porque, na ocasião, a idade dela era a mesma que você tem hoje. Seu pai e sua mãe, aliás, tinham a mesma idade, isto é, eram jovens demais, na minha concepção, para colocarem uma criança no mundo. Eles moravam em bairro distante, de modo que não tínhamos tanta proximidade na ocasião da boa nova propagada sobre os telhados. 

Quando você nasceu, em um dia de segunda-feira, véspera do feriado no qual se comemora a "independência" do Brasil, eu experimentei sensações contraditórias: se, por um lado, fiquei alegre, porque o parto aconteceu dentro da normalidade (você e sua mãe estavam bem), por outro, fiquei triste porque eu analisava, já naquela época, que colocar uma criança no mundo era um problema filosófico sem precedentes. Sim, porque sua mãe e eu tivemos uma infância e adolescência difíceis demais. Eu temia, portanto, que isso também viesse a acontecer com você. A vida nem sempre é uma festa repleta de risos, de doces e de cores agradáveis em torno de uma mesa que resplandece sob efeito de flashes. A vida, em verdade, tem a mania de ser em preto e branco e, por vezes, festejar é um luxo de poucos. 

Você nasceu no ano bissexto de 2004. Neste ano, tínhamos perdido, em abril, nossa bisavó materna: Dona Maria Raquel. Estávamos sobrevivendo ao luto. Para mim, foi como se você fosse amenizar o vazio deixado com a partida dela. 

O dia do seu nascimento é uma data que tem desde a oficialização do Hino Nacional Brasileiro, de autoria de Joaquim Osório Duque Estrada, em 1922, até o aniversário de uma figura como Di Cavalcante (pintor brasileiro). Você nasceu sob o Signo de Virgem, somos do Elemento Terra, por isso nos damos tão bem?

Você nasceu rodeado de nomes de santos, afinal é juazeirense: a maternidade se chama São Lucas (sua mãe e eu nascemos nela também), localizada entre a Rua São Benedito, a Rua Santa Tereza, a Rua São Francisco e a Rua da Conceição. Ela fica ao lado da Igreja de São Miguel. A Igreja Católica, nesse dia,  celebra o dia de São Liberato de Loro. 

Por falar em nome, você iria se chamar Erick, mas seu pai optou por utilizar dois nomes: Paulo (nome de Saulo após sua conversão) e Henrique (nome vinculado à realeza). Ao pesquisar mais pormenorizadamente, Paulo Henrique significaria o pequeno rei da casa. Faz sentido, então, seu nome. Para sua avó, sobretudo, você é, desde sempre, o pequeno rei da casa e do coração dela.  

Na sua primeira infância, você viveu entre as cidades de Juazeiro do Norte e de Crato. No Juazeiro, conviveu com seus familiares paternos (a bisavó e o avô, infelizmente, já se foram) e, no Crato, conviveu com sua avó materna (também as duas tias mais novas). Com sua avó, você viveu longas temporadas no sítio em que ela morava. Ela comentou que sua infância foi tumultuada, a ponto de você quase ter pisado em uma cobra coral, de ter brincadeiras periculosas como perseguir sapos, de quase ter sido fulminado por um raio, dentre outras coisas. 

Ao retornar para Juazeiro, você começou a estudar efetivamente. Sempre me chamou atenção o fato de que você gostava demais de datas comemorativas, de festas, de eventos da escola. Parece uma predisposição para celebrar, para divertir-se, para coisas mais aproximadas do riso do que das melancolias. Suas escolas, desde o primeiro momento, foram particulares. Sua mãe sempre trabalhou para dar a você o que ela considerava a melhor Educação. 

Por falar em Educação, lembra que eu fui o primeiro a dar um livro de presente a você? Lembra que eu o fiz ler dez livros infantis nas férias de 2013? Lembra que eu o levei diversas vezes para peças teatrais nos sábados do CCBNB-Cariri? A propósito, um dos mais lindos espetáculos que já vi, intitulado Felinda, apresentado na Praça Padre Cícero, eu estava ao seu lado, recorda? 

Vimos muitos filmes juntos, também séries, vídeos etc. Gosto de assistir ao meu desenho animado favorito com você: Os Cavaleiros do Zodíaco. Também sua companhia é a melhor para assistir filmes de comédia, de aventura e de animação. Nada pode ser melhor do que fazer pipoca, produzir algum suco e assistir, até altas horas, aos filmes de nossa predileção - incrível como temos gosto parecido. 

Sabia que um dos melhores livros que eu li foi em sua companhia? Lemos O Hobbit juntos, anotando trechos, fazendo as vozes das personagens, rindo ou nos emocionando. Sabia que esse foi um dos melhores momentos de minha vida? No final do livro, eu caí no choro. Você deve se recordar disso, porque não deve ter me visto chorar muitas vezes. Nem sei ao certo o porquê do choro: se foi porque o livro chegou ao fim, se foi porque nossa leitura divertida tinha acabado ou se porque você realizou, naquele momento, o meu sonho de ler com meu filho (que não tive e não terei) uma obra literária que nos transformasse de algum modo. 

Depois do livro, fizemos uma maratona para assistir O Hobbit: você, seu irmão Paulo Victor e eu. Essa foi uma das noites mais felizes. Havia pipoca para todo lado e a alegria de poder compartilhar a experiência de ler uma obra e ver sua adaptação para o cinema. No final do ano, fizemos o chá d'O Hobbit, com direito a RPG, biscoito élfico e muita diversão. Esse foi outro momento inesquecível.

Quando preparávamos a festa, fazendo o biscoito élfico, lembrei daquele dia em que, altas horas, fui fazer panquecas e terminei fazendo outra receita. Sim, porque errei a receita e como saldo tivemos muita bagunça e riso. Lembra? Outro dia rimos muito em torno de minhas trapalhadas no preparo de um molho de beterraba. Aí estava em pauta meu embate muito comum com sua avó, que você costuma achar muito engraçado.  

Você é uma excelente companhia para caminhadas. Também é muito divertido para momentos de pizza, açaí, sorvete e outras guloseimas que são uma tentação difícil de resistir. Você é engraçado, porque tem um humor inteligente. Tem um humor sarcástico. Acho que aprendemos com Sheldon e Leonard - da minha série preferida The Big Bang: Theory. Por falar em série, estamos unidos quando o assunto é  Chaves e Chapolin - somos fãs incondicionais.

Ainda não disse, mas uma das coisas que mais gosto é de esperá-lo chegar da escola para almoçarmos juntos. Eu pergunto coisas da escola (quando você não falta, claro, porque anda faltando demais), você pergunta coisas do meu cotidiano, aí brigamos, rimos, conversamos, trocamos ideias, assistimos a algum vídeo etc. 

Neste seu aniversário, Paulo Henrique, vou dizer o que me disse um primo quando eu tinha a mesma idade que você: "Homem é aquele que sabe entrar e sabe sair de qualquer lugar". O primo me disse isso quando me viu todo fardado, em decorrência do serviço militar, e falou algo que o pai dele havia dito em sua adolescência: "Homem é aquele que sabe entrar e sabe sair de qualquer lugar". Eu, portanto, jogo essa frase para você, mas com alguns complementos: ser homem é ser você mesmo, é ser capaz de humanidades redescobertas, é ser dedicado a algum projeto que dê sentido à sua vida, é ser passível de erro, mas apto a refletir sobre esse erro e melhorar, é ser inteligente o suficiente para compreender que a vida é de quem se movimenta, é ser forte para os momentos de dor e de sofrimento, é ser corajoso para demonstrar suas fragilidades quando isso for necessário, é ser determinado a construir conhecimentos e saber compartilhá-los, é ter a humildade de admitir os erros, é ser honesto e lutar contra o que corrompe, é ser enfrentamento quando estiver em pauta defender sua dignidade, é ser coerente com o que você compreende ser sua verdade, é existir em plenitude e não deixar que ninguém impeça você de crescer e tornar-se uma pessoa melhor. 

Sabe o melhor presente que você poderia receber nesse dia festivo? O elogio que uma professora me ofertou, certa vez, durante o Ensino Médio (você e eu estudamos na mesma escola): "Você é um grande ser humano!"

A professora me deixou pensando nessa frase até hoje. Então, atiro-a para você também: "Você é um grande ser humano!" Por que ela disse isso? O que significa ser um grande ser humano? Sugiro que passe a vida inteira pensando nisso e, mais do que pensando, tentando ser esse grande ser humano. 

Para concluir, desejo um feliz aniversário. Você é o filho que eu gostaria de ter. Torço sempre para você se tornar algo verdadeiramente significativo para este mundo complexo no qual você foi atirado há exatos dezoito anos. 

Parabéns!

Com um abraço do seu Timerson.