terça-feira, 31 de maio de 2022

"O ÚLTIMO POEMA", DE MANUEL BANDEIRA, E "A ÚLTIMA CRÔNICA", DE FERNANDO SABINO

 


O ÚLTIMO POEMA

 

Assim eu quereria o meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas

Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume

A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

 

(Manuel Bandeira)[1]

 

A ÚLTIMA CRÔNICA

 

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "Assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(Fernando Sabino)[2]



[1] BANDEIRA, Manuel. O último poema. In: Libertinagem e Estrela da Manhã. 14. ed. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2000.

[2] SABINO, Fernando. A última crônica. In: Elenco de cronistas modernas. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

RESENHA CRÍTICA DO LIVRO "CRUVIANA", DE JOVINA BENIGNO



BENIGNO, Jovina. Cruviana. Fortaleza: OIA Editora, 2022.

O livro de poemas Cruviana, de Jovina Benigno, apresenta vinte e quatro poemas divididos em duas partes. A primeira parte é intitulada Mergulho insepulto (nela constam treze poemas). A segunda parte é intitulada Memória sepultada (nela constam onze poemas).

 

Na primeira parte, a autora inicia seu versejar com o poema Mergulho. Nele, a voz lírica, autodenominada estrangeira do tempo, se deixa abandonar e encontra na palavra a liberdade de ser e de estar no mundo. Em Erva de São Lourenço, o tom metalinguístico invade a voz lírica em busca de afirmação poética. N’O cheiro dos igarapés, a autoafirmação se configura pela compreensão do ser mulher em todas as suas possibilidades lírico-existenciais. Nele, localizamos versos de uma ousadia poética digna de nota:

 

Homens e mulheres,

beijo suas bocas

lambo seus sexos

sem olhos vendados.

(BENIGNO, 2022, p. 35)

 

Isso também ocorre n’Os alienistas, que apresenta uma voz sem qualquer medo de ser considerada insana ante os julgamentos que a atiraram “em celas / sem capelas”. Em Jacarés chegando, há um tom de observação social que vê a realidade e o não alento para vidas percebidas à margem. Há nele, ainda, a crueza de palavras que leem a existência “na putrescência” do ser. Em Olhos vazados, as palavras também são cruas, mas nesse caso observam outro aspecto da condição humana: o amor que deixa a voz lírica “feito barco naufragando” ante impossibilidades.

 

No poema Rosa, na cabeceira, temos as desventuras de um livro envelhecido e abandonado que exigia de sua leitora um processo de ressurreição. O livro, descobrimos, é de Guimarães Rosa e grita, em sua força expressiva, por um olhar de acolhimento. Em seguida, vem a leveza do Balão fugindo que, em verdade, busca liberdade e cura nas cores de chuva e de sol impregnadas de mar.

 

No poema Salvo, o dia, fragmentos do passado e alusões a Manuel Bandeira dão a tônica. A leveza desse texto contrasta com Foice volátil, que traz como tema a morte e suas reverberações dolorosas. Também a morte está presente na desilusão do primeiro amor configurado pelo preterimento, que surge como tema no Pão bolorento. O preterimento amoroso, experimentado pela voz lírica com amargura, volta a ser tema no Último desejo. O lirismo pungente que constrói a beleza desse texto é uma das melhores realizações do livro.

 

A primeira parte da obra termina com mais um texto alusivo à morte. No caso, o poema Versos mortos, construído com a expressividade de imagens líricas retiradas de “vapores com cheiro de éter”, “presas cheirando a alho” e “baratas em festa”.

 

A segunda parte do livro inicia com o texto que lhe dá título: Cruviana. Nele, novamente nascem rememorações, tempos de chuva “na casa furada”, de “baldes cobrindo o peito”, de “telhas quebradas” e de infâncias que “brincam de roda”.

 

N’A mala, Juazeiro e a poeta, a voz lírica relata uma viagem ao Cariri cearense, mais precisamente uma visita à cidade de Juazeiro do Norte, ocasião em que pode ver, na “sacola perdida”, o peso do “poema de uma vida”.

 

Serenata, que vem na sequência, retoma cenas e cenários de uma casa que ainda recebia canções de amor para moças na janela. Ainda no contexto imagético da casa, temos redutos de vida, memórias de cotidianos antigos e profundidade de experiências familiares reconstruídas n’O suor na bacia, que é dos textos mais emocionantes da autora.

 

O tom melancólico, apresentado anteriormente, dá espaço, em Resenha, a lembranças alegres e momentos felizes. A queda da cachoeira traz o tema do amor ausente, mas há nele a capacidade da voz lírica de “amar de novo”. Depois, em O canto do xexéu, temos um olhar novidadeiro sobre o pássaro e, ao mesmo tempo, sobre as claridades e levezas da vida.

 

No meio da sala é doloroso, com imagens de chuva e de morte. Fala-se de perdas na infância e comenta-se sobre “vida após a morte”. Em seguida, Prece aos mortos retoma a compreensão da morte pelo ângulo de visão infantil: curiosidade, medo e constatação da ausência. Nele, localizamos uma das estrofes mais belas do livro:

 

A foice erra o coração

dos fenecidos fornidos de bem

deles me restam

o pesadume da exiguidade

a revelação nas cinzas

a profundidade das covas

o dilacerante amor

sem o consolo do coro dos corações.

(BENIGNO, 2021, p. 117)

 

A morte é retomada em Retrato póstumo. Irrompem desse retrato imagens do pai, da mãe e dos irmãos, ausentes no tempo, mas presentes no tecer dos versos. E o livro termina com Sabores e saberes. O luar é um “magno presente” que observa “a noite e os notívagos”. A voz lírica confessa que não há “arrependimentos sob a luz da lua”. Existem, porém, “carícias orvalhadas” iguais a “um beijo cheio de luar” e, com isso, um universo poético se fecha nas páginas do livro para abrir-se na memória comovida de quem lê.

 

Consciente de seu fazer poético, Jovina Benigno trata, dentre outros temas, do erotismo, da condição da mulher, da praticidade da vida, das alegrias, da morte, das dores da alma e, sobretudo, da humanidade em seu sentido mais profundo. Esse livro é uma porta aberta para a brasilidade, é um encontro festivo com o simbólico, é uma viagem prazerosa (também dolorida) pelas terras áridas ou vívidas que se abrem à poesia do simples e à natureza do belo. Ele é recomendável pelo lirismo, pela profundidade, pela poeticidade e pela beleza. Há muito a ser vivido nessa obra de expressividade inconteste.

 

Jovina Benigno nasceu em Fortaleza–CE. Graduada em Letras e Direito, ela participou em diversas antologias e publicou, em 2020, o livro Versus de uma vida, pela Editora Scortecci. Em 2022, a autora publicou Cruviana, pela OIA Editora.


Onde comprar o livro: 

No instagram: @jovinagb


CARTA A LIDUÍNA BENIGNO XAVIER, AUTORA DO LIVRO "TECLADO DE AREIA"


 Juazeiro do Norte - CE, 31 de maio de 2022

Caríssima Liduína Benigno Xavier, 

Na crônica Sempre Rachel, do seu livro Teclado de areia, publicado em 2022, você comenta que leu Cartas exemplares, de Gustave Flaubert, e alude ao fato de que o gênero epistolar descortina informações sobre os autores nem sempre encontráveis em manuais ou biografias. 

Você diz, ainda, que se sentiu privilegiada por poder entrar no universo de Gustave Flaubert (autor que pesquiso atualmente) através das correspondências dele. Além disso, você criou um parágrafo no qual afirma (XAVIER, 2022, p. 26): "E, sendo pessoa afeita a devaneios, logo me imaginei recebendo cartas de escritores e sendo envolvida na aura de inspiração que sempre exala de figuras modelares". 

Escrever e receber cartas, concordo, é um exercício instigante. Amo esse exercício. Ah! Compartilho de sua tendência a devaneios. Penso que isso nos torna escritor e escritora. Escrever, a propósito, é um ofício árduo, mas ele amplia tanto nossa existência, não acha? Escrever, para mim, é o ar que eu respiro. Sem poder escrever, acho que morreria. 

Por falar em devaneio, você, em seu devaneio-lucidez, imagina a possibilidade de enviar uma carta para algum talento da "constelação literária" que você tanto ama e escolhe a incrível Rachel de Queiroz, autora cuja obra pesquiso desde 2004 e que apresentarei por meio de estudos acadêmicos em livro que está em processo de revisão para ser publicado em breve. Pensei, em verdade, que você fosse escrever essa carta para Rubem Braga. Eu percebi seu amor devotado a ele em Crônica de um amor que nunca houve, O velho Braga, Rubem Braga mora na minha estante, Moqueca de siri e Madeleines e Recado de verão. Ele merece, certamente, esse amor. Que escritor grandioso! 

Ao escolher Rachel de Queiroz para enviar sua carta, essa autora cuja obra amo tanto, você, inteligente que é, inicia uma crônica na qual explana sua experiência de leitura de obras da autora e, desse modo, trata de características dessa obra trazendo, também, breves informações biográficas acerca da escritora cuja obra tem valor literário inconteste. Você é esperta, viu? Enquanto cria expectativas no leitor sobre uma carta que pretende escrever para Rachel de Queiroz, você escreve uma crônica. Sim, uma crônica metalinguística (e seu livro traz exemplos incríveis de textos que exploram a metalinguagem, como é o caso de Ofício de cronista, Uma crônica é uma crônica é uma crônica, Receita de crônica, Ser cronista e Crônica, eu te amo etc.) que é uma louvação a essa mestra fundamental quando o assunto é a história da crônica no Brasil.  

Por falar em seu livro, acredita que o li, de fôlego, no primeiro dia que o recebi? Sou professor de Língua Portuguesa e Literatura, então levei crônicas suas para sala de aula. Eu tinha aulas planejadas sobre o gênero crônica na semana em que recebi seu livro e o incorporei de imediato em minhas aulas. Li em sala de aula: Receita de crônica, Notas de aula no caderno novo e Louvação ao álcool gel (como crônica traduz o cotidiano, esta me foi indispensável para tratar com estudantes sobre essa peculiaridade do gênero). 

Eu teria dificuldade de dizer qual foi a crônica de minha preferência. Em geral, seus textos são maravilhosos. Não entenda esse elogio como algo simplório, hein, porque li e reli seus textos com interesse. Sua prosa é simples, leve, imagética, lírica e tem a peculiaridade de construir uma linguagem acessível sem, contudo, perder em qualidade literária. Agora, a crônica que me deu um nó na garganta foi Precisamos falar dos mortos. A morte é um tema doloroso, mas envolvente. Essa crônica me fez entrar em contato com a tragédia que vivemos recentemente: ainda caminhamos sobre os escombros da pandemia. Perdi pessoas queridas para a Covid-19. Seu texto me foi catártico à medida que me levou a pensar e repensar essas perdas tão dolorosas vividas por mim e pelo mundo. 

Teclado de areia é um livro de metalinguagens e reflexões sobre o ofício de escrever. Não estranhe se alguns textos seus forem retomados em atividades de escrita literária, porque eles seriam exemplos criativos do que é postar-se diante do papel em busca de algo a ser escrito. 

Para concluir, devo dizer: você escolheu Rachel de Queiroz para destinatária de sua carta, e eu escolhi você. Sim, eu escreveria uma carta para você. Eu diria nela o quanto seu texto é criativo, valoroso e repleto de qualidades. Seus textos são um exercício de pensar, de sentir, de ver o mundo com sensibilidade e, sobretudo, de construir novos horizontes quando a ideia é expurgar pela escrita o que a alma resguarda. 

Você precisa escrever uma carta para Rachel de Queiroz, Liduína Benigno Xavier, e eu precisava escrever essa carta para você. Nela, vai o meu abraço comovido. Espero nos encontrarmos para um café literário dia desses, pois quero ouvi-la dizer sobre o processo de escrita desse livro que recebeu prêmio e tudo, merecidamente, viu? 

Cordialmente, 

Émerson Cardoso