sábado, 25 de abril de 2020

CARTA PARA DEUS EM TEMPOS DE PANDEMIA (ou: livra-me da vaidade e suas malignas sendas)

"O povo", de Eduardo Marinho

Senhor Deus, 

Não permita que eu viva como quem acha que a morte não me chegará um dia. Que a vaidade das vaidades não me inflame a existência. Conhecimento que não humaniza, Senhor, que não me incite em tempo algum. Livra-me dos saberes inúteis, da inteligência acrítica, do conhecimento egoísta que não se abre a compartilhamentos. 

Acontece que sou humano, Senhor, e tenho tendência ao egoísmo, à maldade, à intolerância. Guardo em mim tantos outros defeitos da alma, por isto peço compaixão. Ensina-me a ser mais fraterno, torna-me capaz de amar a humanidade. Aliás, amar a humanidade nem me é tão difícil, pois o que é paisagem sempre anima os olhos. O problema, em verdade, é amar quem está próximo - quando a paisagem convida à aproximação percebemos os monstros que ela comporta em suas sombras. Ensina-me, desse modo, a ser humano o suficiente para amar a quem encontro em meu derredor. O cotidiano tende a nos massacrar demais e, por vezes, terminamos nos rendendo a seu amargor indômito. Torna-me incapaz de ser cruel ou indiferente aos que erguem a mão pedindo auxílio, mas não me permita dizer sim a tudo, como se, com isto, quisesse comprar com o afeto alheio o que me falta em dignidade. 

Há tanto a pedir, Senhor, que não sei até que ponto não incorro em nova falha: quem pede muito o faz por não reconhecer o que já foi dado? Talvez. Então peço desculpas, porque tenho tendência à ingratidão. Por falar nisto, pensando bem, eu reconheço as benesses que me foram dadas, embora ainda sinta falta de me sentir acolhido integralmente nesta vida que me foi, por muito tempo, repleta de dor e sofreguidão. Devo dizer, no entanto, que estou bem melhor hoje. Por isto, estou grato!

A humanidade, porém, como deve ser de seu conhecimento, anda um tanto apreensiva. Uma pandemia tem feito bem a ela tornando-a apta a pensar sobre uma série de fatores - dizem até que o planeta ficou menos poluído depois que um vírus mostrou que precisamos estar mais atentos ao bom-senso e à preservação da vida. Pode até ser, mas há gente morrendo demais, Criador do mundo! Desde a infância tenho visto muitas mortes perto de mim, todavia há tanta gente morrendo em decorrência desse mal que estou com medo. Medo não por mim, claro, mas por aqueles que estão guardados em minha redoma de afetos construída com vidro frágil.

Não sei em relação aos outros, mas eu estou pensativo: quando não conseguimos mais dormir (e a insônia tem me fustigado) resta-nos pensar um pouco sobre a vida e seus percalços. Gostaria de compreender teus planos, no entanto sou tão simplório no entendimento das ações dos homens, imagina se terei condições de entender as ações de um deus!

Ah! Obrigado por ter dado aos homens a capacidade de produzir arte. Sim, que alento para a alma o Senhor nos proporcionou! Sem ela, como sobreviver a pandemias e tantas outras desgraças? Claro, nem todos têm acesso à arte, porque lhes é tirado esse prazer e esse direito. Talvez seja essa a maior falha dos homens que se embriagam de poderes: tirar de seus irmãos o prazer e o direito de vivenciar um alento para a alma através da arte. Há perdão para eles, Deus?

Há três coisas que gostaria de confessar. Não, não vou confessar meus pecados, pois o Senhor está cansado de saber que tenho erros aos arroubos. Vou confessar, narcisista que sou, três qualidades: 1) tenho sensibilidade aguçada, quase vivo de eternas vertigens (normalmente, eu tento disfarçar essa minha característica, contudo, com o que tem acontecido, como ocultá-la?); 2) o silêncio e a solidão me excitam (mas eu não sei ser silêncio em épocas de medo, e a solidão tem me doído tanto, tendo em vista que há sempre alguém que, para o bem ou para o mal, pode me ampliar, em dias comuns, com a percepção de sua presença); 3) eu leio as pessoas a curtas e longas distâncias, o que me dá tempo de preparar algum plano de fuga, pois quase sempre sinto necessidade de máscaras que afixo em mim com pontiagudos pregos (e agora nem isso!). Eu fiz confissão de qualidades ou defeitos? Não sei dizer.

De qualquer modo, que libertação dizer o que disse! Obrigado por me ouvir, Deus. Posso fazer um aparte? Quando menciono a palavra Deus, preciso enfatizar o seguinte: quem é, onde está, como encontrar o ser que as religiões invocam com a palavra Deus? Parece-me, Senhor, que o encontro muito mais no mistério do que no processo de religação que querem me impor.

Por fim, estou à espera de caminhos que me proporcionem melhores capacidades para o bem. Ainda não consigo me entender completamente, de modo que permanecerei no esforço de atirar no chão a vaidade que me faz ser patético, o orgulho que me torna medíocre, o egoísmo que me apequena. E, se me permite um último pedido: seria possível conscientizar o mundo e, principalmente, meu vilipendiado país, sobre a importância de ser solidário? Comece por mim, por favor, porque tenho meus rompantes de maldade e egocentrismo. Por ter começado falando de vaidade, pronto, lá vem mais um pedido de última hora: Senhor, que minha vaidade não me cegue, dá-me habilidade para usar o pouco que tenho para o melhor do mundo! Liberta-me, liberta-nos, Deus, do mal que é visto como banalidade!

Atenciosamente,

Um espírito inquieto que atravessou o século XX e que gostaria de ver horizontes no século XXI.

Émerson Cardoso
05/05/2020 












segunda-feira, 6 de abril de 2020

NOTAS SOBRE "ENQUANTO AGONIZO", DE WILLIAM FAULKNER (OU A ARTE DE ESCREVER COM PERFEIÇÃO)


Addie e Anse têm cinco filhos: Cash, Darl, Jewel, Dewel Dell e Vardaman. A matriarca da família morre. Cash, seu primogênito, prepara-lhe o caixão  ela ainda o vê prepará-lo através da janela. Jewel, seu terceiro filho, menciona (FAULKNER, 2017, p. 17) a este respeito: "É por isso que ele está la fora, embaixo da janela, martelando e serrando aquele maldito caixão. Onde ela pode vê-lo. Onde todo o ar que ela aspira está impregnado das marteladas e serradas onde ela pode vê-lo dizendo Veja. Veja que beleza o que estou fazendo para a senhora". 

Quando Cash nasceu, Addie fez Anse prometer que, por ocasião da morte dela, ele a sepultaria em Jefferson, sua cidade natal. Após a esposa morrer, Anse decide cumprir sua promessa - isto se torna sua meta existencial por excelência.  

Anse coloca o caixão, onde repousa Addie, sobre a carroça na qual também coloca seus quatro filhos. Jewel, o quinto filho, não sobe com os demais na carroça, acompanha os fúnebres viajantes montado em seu cavalo (que ele comprou com imenso sacrifício). Está criada a caravana cuja meta é sepultar em cidade distante do local em que moram a matriarca da família. 

O resumo que apresento acima não alcança, nem de longe, a perfeição conteudístico-formal desse romance. Trata-se de uma das experiências de leitura das mais fascinantes que já vivenciei. Esse romance foi publicado por William Faulkner, escritor norte-americano, em 1930, com o título As I Lay Dying (Enquanto agonizo, na tradução de Wladir Dupont). A obra explora o fluxo de consciência de suas personagens (muito bem delineadas psicologicamente) através de uma técnica narrativa instigante: o nome das personagens indica o foco narrativo que é adotado para explanação das impressões que cada uma delas tem sobre os acontecimentos que se desenrolam durante o trajeto que a família realiza para sepultar a matriarca. Personagens protagonistas e personagens secundárias ganham voz na narrativa, o que amplia a percepção do leitor sobre a trama complexa que o autor desenvolve nessa aclamada obra do século XX. 

Não vou pormenorizar muito o que ocorre em seu enredo, pois entrar demais nas personagens e suas misérias humanas, aqui, trará à tona seus segredos e isso poderá tirar do leitor o prazer de descobri-los por meio da leitura. Esse romance, sem querer cair em exageros encomiásticos, é um dos mais estruturalmente criativos e bem realizados dentre as narrativas que já li. Pretendo analisá-lo através de algum trabalho acadêmico futuramente, isto talvez me proporcione maior compreensão de sua construção estética, mas devo dizer que minha intenção, com estas notas, é incitar quem as lê a procurar com urgência esse livro. Nele, você poderá encontrar temas como: relações familiares com suas incomunicabilidades e segredos, a condição da mulher diante do construto patriarcal que tenta subjugá-la em vários aspectos, a morte e suas representações simbólicas, o amor e o ódio em coexistência nas diversas relações que se estabelecem na existência humana, a persistência no cumprimento de uma promessa, a cegueira a que alguém pode ser conduzido quando toma decisões que podem afetar os envolvidos nessa decisão, a dualidade humana, a lealdade e a deslealdade, a loucura e o que de fato pode ser entendido como loucura etc. 

Para concluir, devo dizer que Enquanto agonizo é leitura indispensável para quem busca entender, em profundidade, a capacidade artística de um escritor comprometido com a originalidade de uma obra artística; também para quem busca narrativas que podem trazer uma compreensão mais acentuada da condição humana no que ela tem de mais complexo e fascinante. 

REFERÊNCIA

FAULKNER, William. Enquanto agonizo. Tradução de Wladir Dupont. Porto Alegre: L&PM, 2017. 

Émerson Cardoso
06/04/2020


sexta-feira, 3 de abril de 2020

UMA ESPERANÇA, POR CARIDADE! (ou lições da famigerada COVID - 19)


O que está acontecendo com o mundo, com as pessoas do meu derredor e comigo? O que eu vou fazer com a vida que ainda há no mundo, nas pessoas do meu derredor e em mim? Tenho tantas dúvidas, medos e preocupações, neste momento, que me sinto, como diz um trecho da canção de Chico Buarque, "como quem partiu ou morreu".

Quero enumerar algumas sensações que me percorrem, agora, quem sabe assim eu não consiga expurgar um pouco das angústias que me fazem doer corpo e alma!

A primeira sensação que me vem à alma é medo: quem sobreviverá, os meus sobreviverão, eu sobreviverei? Até quando estaremos rendidos, perdidos, desesperados e inseguros? Quem sobreviverá para contar a história? Quem poderá segurar minha mão agora e dizer, me olhando nos olhos, que vai passar, sim, tudo isso vai passar! E como poderei desenvolver em mim essa crença? 

A segunda sensação é de impotência: não tenho muito a fazer a não ser aceitar minhas limitações diante do caos e torcer para que algo externo a mim, um deus ex machina, talvez, salve-nos finalmente. Uma vacina, uma medicação, uma luz no fim do túnel, uma esperança que seja, ó Deus: quem nos protegerá de nós mesmos em meio a tanta impotência? 

A terceira sensação é de surpresa: nunca enfrentei pandemia nesta proporção. Mesmo as barbáries do século XX, como as tão próximas guerras mundiais, que me pareciam as piores experiências em proporção mundial dos últimos tempos, elas me vinham à mente como acontecimentos que foram vencidos, que acabaram e que, portanto, deveriam ficar na lembrança como exemplo do que nunca mais deveria acontecer. Eu me deixei iludir: pensei que nunca aconteceria comigo tragédia tamanha. Entre doenças de larga escala e guerras, sei que aconteceram algumas, desde meu nascimento, mas eu as via com o olhar de lamento distante. Quem me perdoará por me ater apenas ao lirismo dos acontecimentos e não à realidade? 

A quarta sensação é de raiva: como podemos suportar o fato de que temos que lidar com certos governantes incapazes de um mínimo de bom-senso em momento tão funesto? Como podemos aceitar que cientistas estejam perdendo bolsas de incentivo à pesquisa neste momento fulcral para o fomento à ciência? Como podemos entender seres humanos dizendo que outros seres humanos deverão morrer, sim, mas a economia deve prevalecer para que o país não pereça? Burgueses unidos, em seus empreendimentos diversos pautados nos lucros e na exploração de trabalhadores, jamais serão vencidos, é isto? Eu terei que aceitar com amor no coração algo tão descabido e indigno? 

A quinta sensação é de dor: pelos mortos, pelos que sofreram perdas familiares, pelos que não têm como se alimentar, pelos que perderam empregos, pelos que não terão o que fazer para reverter o quadro de dor nas próximas datas, pelos que moram nas ruas, pelos que choram... 

A sexta sensação é de desconfiança: por que eu, que já enfrentei momentos pesados na vida, ando tão fragilizado? Não era para eu ser forte agora, depois de tantos ensaios de sofrimento? Alguém poderia me dar uma dose cavalar de esperança ou força? Por que ainda há tanta ignorância, egoísmo e falta de solidariedade envolvidas nessa guerra contra um vírus monstruoso que nos faz tatear o chão? Se bem que descer ao chão, nele estar caído, é experiência das mais profundas. A vaidade humana precisa do chão, também de algumas quedas, de vez em quando. Deus, podemos conversar sobre o que tenho sentido, ou o Senhor acha melhor que eu me reequilibre primeiro?

A sétima e última sensação é de algo que não sei nomear. Eu não sei nomear porque a trago em mim desde o nascimento. Sabe quando se olha o mundo com saudade de algo que não há ou nunca houve no mundo? Sei que é difícil de entender na mesma proporção que é difícil de explicar. Saudade, talvez, ou mesmo dor de não estar em ou com. Sim, é mais ou menos isso: saudade do que poderia ter sido e não é, não foi e não será. Enquanto tenho que lidar com isso, eternamente enquanto dure, preciso dizer que estou triste pelo mundo, pelas pessoas em meu derredor e por mim mesmo. Autocomiseração, será? Não sei, tem mais a ver com o desejo de sobreviver para prosseguir na marcha que me daria a mim mesmo um ser humano melhor do que sou. Também quero pedir... Não, quero implorar: que me venha uma esperança! Vou erguer a mão e pedir, ainda que permaneça com ela estendida até o fim dos tempos. Quem sabe assim eu não entenda, definitivamente, o que me trouxe aqui neste mundo: a humildade de estender uma mão pedindo algo é o maior reencontro existencial consigo mesmo que a vida pode proporcionar. Então, com mãos estendidas, peço: uma esperança, pelo amor de Deus, uma esperança! 

Émerson Cardoso
03/04/2020