quarta-feira, 30 de novembro de 2022

"UM APÓLOGO", DE MACHADO DE ASSIS

      


      Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: 

    — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? 

    — Deixe-me, senhora. 

    — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. 

    — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. 

    — Mas você é orgulhosa. 

    — Decerto que sou. 

    — Mas por quê? 

    — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? 

    — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? 

    — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados… 

    — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando… 

    — Também os batedores vão adiante do imperador. 

    — Você é imperador? 

    — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto… 

    Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: 

    — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima… 

    A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. 

    Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: 

    — Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. 

    Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 

    Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

CRÔNICA: "BRINQUEDOS INCENDIADOS", DE CECÍLIA MEIRELES



Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.

Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celuloide, modesto cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.

Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.

Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.

O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.

Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém?, pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.

E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!

 

REFERÊNCIA:

 

MEIRELES, Cecília. Escolha seus sonhos. 25. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

RESENHA CRÍTICA DO LIVRO "O TERCEIRO ANONIMATO", DE FERREIRA LIMA


LIMA, Valdi Ferreira. O terceiro anonimato. Fortaleza: Editora Radiadora, 2022. 

O terceiro anonimato, de Ferreira Lima, publicado em 2022, apresenta vinte e três poemas de inegável apuro técnico e expressivo. Como é evocado no título, essa obra faz parte de uma trilogia iniciada com o livro Poemas para assobiar de longe (2019) e seguida do livro Apontamentos sobre o cultivo da poesia (2021). 

Os três primeiros poemas apresentados (os mais curtos do livro) são: O anonimato, Escrever e Andarilho. No primeiro, como constatamos pelo título, temos o tema por excelência da obra. No segundo, temos um tom metalinguístico que será constante ao longo do livro. No terceiro, temos um poema direcionado para a subjetividade de uma voz lírica que reflete sobre a busca de si mesmo.

 

O anonimato, a escrita e as reflexões sobre a subjetividade de vozes líricas em contextos existenciais diversos perpassam o eixo poemático desse livro. Exemplar dessa perspectiva são os poemas: Anônimo, analógico e anacrônico, Simétrico (o melhor poema do livro seja do ponto de vista do conteúdo, seja do ponto de vista da forma), Trajeto, Pássaro, Derradeiras de quem vai partir, Um certo voo, O(s) poeta(s), Andarilho ou Adeus, anonimato! e O terceiro anonimato.

 

Instigante, sobretudo, é o poema Sísifo, um dos melhores do livro. Ferreira Lima retoma nele o mito grego do rei que ousa interferir nas ações dos deuses e acaba sendo punido, no Tártaro, com uma pedra que tenta conduzir até o cimo de uma montanha sem conseguir fazê-lo eternamente. O anonimato surge no poema metaforizado na imagem dessa pedra que se torna, também, a punição da voz lírica. Escrever é uma expurgação necessária a quem é poeta, mas pode ser torturante produzir quando se pode ser silenciado pelo anonimato.

 

Em Ulisses, poema que retoma o herói grego de uma das obras fundantes da Literatura Ocidental, temos uma reflexão sobre a escrita, uma perscrutação da subjetividade da voz lírica e explanações sobre a temática amorosa. O amor, a propósito, é retomado em vários poemas: Mil desculpas, Metas, Dotes para uma amada em segredo, Confissões de uma carta anunciada, Encontro, Cotidiano, Não quero tudo e Pra sempre.

 

Percebemos, após a leitura desse livro, que além do anonimato e do amor, reflexões sobre a escrita poética (com um tom metalinguístico evidente) também se caracterizam como recorrentes na obra do autor. Enquanto reflete sobre a escrita do poema, há predisposição do escritor a um atento trabalho com a linguagem. Não há rebuscamento linguístico, tampouco excessos imagéticos construídos a partir de metaforizações simplistas, em seus poemas. Quando recorre a figuras de linguagem (hipérbole, metáfora, símile, antítese, anacoluto, anáfora, aliteração etc.), ele está comprometido com a construção de imagens criativas e de perceptível lirismo.

 

No epílogo da obra, Nirton Venâncio comenta (apud LIMA, 2022, p. 110): “E onde estava Valdi Ferreira Lima que eu não via, que não víamos, que não líamos?” Reforço a pergunta, pois ao ler essa obra tive a sensação de estar diante de um dos grandes poetas do Ceará e, até pouco tempo, eu o desconhecia. É urgente, portanto, conhecê-lo. Há muito a descobrir na poesia que ele nos apresenta sem preciosismos e sem imbricadas soluções vocabulares.


Ressalvo que O terceiro anonimato encerra uma trilogia de poesias de Ferreira Lima, este poeta que descobri recentemente e é, sem dúvidas, um notável escritor. A poesia dele merece atenção, de modo que jamais poderá ser obscurecida pelo anonimato. O talento do autor e a beleza de sua obra precisam chegar ao mundo. Precisamos de poesia para ampliar nossas existências cotidianas. Leiamos, urgentemente, a poesia de Ferreira Lima.

 

Valdi Ferreira Lima nasceu em Serra da Donana, município de Jucás–CE, mas mora há anos em Sobral–CE. Vencedor de diversos prêmios, ele publicou: O guardador de raízes (2018), Poemas para assobiar de longe (2019) e Apontamentos sobre o cultivo da poesia (2021).