segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

GRAMATIC (ARTE): CRASE


REGRA GERAL: 
A crase ocorre somente diante de palavras femininas determinadas pelo artigo definido a ou as e subordinadas a termos que exigem a preposição a. 


A CRASE OCORRERÁ SEMPRE NOS SEGUINTES CASOS: 

1 - Fusão da preposição a com o artigo feminino a.
Ex: Fui a + a escola. = Fui à escola.

2 - Fusão da preposição a com o a dos pronomes demonstrativos aquele (es), aquela (as), aquilo.
Ex: Refiro-me a + aquela menina. = Refiro-me àquela menina / Não dei atenção a = aquilo que você fez. Não dei atenção àquilo que você fez.

3 - Fusão da preposição a com o pronome relativo a qual e as quais. 
Ex: A artista a + a qual me referi fará uma exposição no próximo sábado. = A artista à qual me referi fará uma exposição no próximo sábado. 

4 - Antes de:

a - Locuções Adverbiais: às vezes, às claras, à beça, à noite,  às escondidas, à toa, à tona...
b - Locuções Prepositivas: à espera de, à margem de, às vésperas de, à custa de, à beira de...
c - Locuções Conjuntivas: à proporção que, à medida que...

5 - Na indicação de horas:
Ex: Maria chegou às 13 horas. / Ele permaneceu das 13h às 15h. 

6 - Haverá crase quando subentendidas as Locuções à moda de e à maneira de:
Ex: Ela usa sapato à Luiz XV. [à moda de] / Ele nada à César Cielo. [à maneira de]

7 - Nas palavras casa, terra e distância quando estas estiverem especificadas:
Ex: Voltou à casa materna. / Foi à terra do Padre Cícero. / Vi a moça à distância de 3 metros. 

CRASE FACULTATIVA:

1 - Antes de pronomes possessivos femininos.
Ex: Enviei o presente à minha mãe. / Enviei o presente a minha mãe.

2 - Antes de nomes próprios femininos:
Ex: Entreguei o livro à Carmem. / Entreguei o livro a Carmem.

3 - Antes da Locução Prepositiva até a:
Ex: Vou até à rua de baixo. / Vou até a rua de baixo. 

A CRASE EM TRECHOS DE CANÇÕES DA MPB:

"Eu levo a sério, mas você disfarça
Você me diz à beça e eu nessa de horror
E me remete ao frio que vem lá do sul
Insiste em zero a zero e eu quero um a um..."
(Djavan) 

"Às vezes te odeio por quase um segundo
Depois te amo mais
teus pelos, teu gosto, teu rosto, tudo
Tudo que não me deixa em paz..."
(Herbert Viana)

"À noite sonhei contigo
E não tava dormindo!
Justo ao contrário,
estava bem desperto..."
(Kevin Johansen / Paula Toller)

"Eu fui à Europa
Pra cantar samba-de-breque
Numa rádio de lá,
Quando estreei, foi um chuá,
Meti minha bossa
Pra mostrar que a gente nossa 
Também sabe cantar..."
(Chiquinho Salles) 





LEITURA: POEMAS DE ANA CRISTINA CESAR


Ana Cristina Cesar nasceu em 1952, no Rio de janeiro, e suicidou-se em 1983. Apesar de precocemente interrompida, sua obra a colocou entre nomes mais importantes da literatura brasileira dos anos 1970-1980, época marcada pela poesia publicada à margem do mercado, em edições caseiras, produzidas e distribuídas pelos próprios poetas. Além de poemas, dedicou-se a traduções e textos críticos. Sua poesia se caracterizou pelo tom intimista e pela coloquialidade da linguagem. Seus principais livros de poesia são: "A teus pés" (1982) e "Inéditos e dispersos" (1985). 


*
Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca 
e limpa à minha espera:




*
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes 
um filete de sangue
nas gengivas


Fisionomia

não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra dor que dói


*
Quando entre nós só havia
uma carta certa
 correspondência
completa
 o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d'água
 a espera do café


*
faz três semanas
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
 do país



Que desliza

Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouso negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.


REFERÊNCIA:

Mário de Andrade et al. Intimidade feminina: Ana Cristina Cesar. In: Na onda dos versos. São paulo: Ática, 2003. p. 39 - 46. (Coleção literatura em minha casa; v. 1. Poesia)




A ALMA DE ALMODÓVAR


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A Alma de Almodóvar. Revista Sétima de Cinema, n. 09, p. 04 -05, nov. de 2013.

Sobre Almodóvar sabemos que é um dos mais premiados e mais notáveis diretores de todos os tempos. Sabemos também que é de uma evidente versatilidade – para comprovar isto basta dizer que ele, além de diretor, é ator, roteirista, produtor e compositor...
            Para mim, Almodóvar é o diretor de um dos mais belos filmes da história do cinema. Refiro-me, apaixonadamente, ao filme Tudo sobre minha mãe. Alguém pode até considerar exagero meu, mas com este filme Almodóvar conseguiu realizar um dos seus melhores trabalhos – nem seria preciso, mas para confirmar o que eu digo citarei alguns dos prêmios que ele obteve pela realização deste filme: Óscar de melhor filme estrangeiro, Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, Palma de Ouro de melhor diretor, César de melhor filme estrangeiro e BAFTA de melhor filme estrangeiro.
            A propósito ainda do filme Tudo sobre minha mãe, faz-se necessário destacar a força das personagens femininas – sem dúvidas fruto da atuação de majestosas atrizes – que compõem talvez o mais bem-resolvido retrato da capacidade feminina de superar as adversidades que a vida, sorrateiramente, proporciona.
            Mas o talento de Almodóvar não cessa nessa obra tão enfaticamente citada, gosto muito também de: Má Educação, A flor do meu segredo, Carne trêmula, Fale com ela, A pele que habito, dentre outras tantas.
Exagerado em suas explanações? Repetitivo em relação a certas temáticas mais-que-recorrentes em sua obra, ou um gênio da arte cinematográfica no sentido mais valorativo do termo que, por ser experimentalista, não se rende ao óbvio?
Parece mais coerente considerarmos esta última ideia porque, em Almodóvar, a ousadia, a criatividade e a construção de personagens – sobretudo porque ele enfatiza o universo feminino – nada convencionais torna sua obra uma das mais inovadoras e, consequentemente, belas do cinema universal.
Dentre as características de seus filmes, podemos perceber uma espécie de ritmo diferenciado que o torna peculiar, além de sua ênfase na constante metalinguagem cinematográfica. Dentre suas temáticas, podemos apontar: discussões amplas sobre sexualidade, identidade de gênero, feminilidade, perversões sexuais, passionalidade amorosa, além de uma forte crítica à religiosidade e observação, por vezes tragicômica, do dilaceramento do universo familiar tradicional.
            Uma idiossincrasia de Almodóvar é a frequência com que ele trabalha com alguns atores e atrizes em seus filmes – o que eu, sinceramente, considero muito interessante. A parceria com atrizes sempre foi mais frequente em decorrência da constante discussão em torno de temáticas femininas. Suas grandes parceiras foram: Carmem Maura, Marisa Paredes, Rossy de Palma, Chus Lampreave e Penélope Cruz. Com atores, podemos destacar sua parceria com Antonio Banderas.   
            Acerca das peculiaridades da obra do cineasta, podemos enfatizar sobretudo o excesso de cores que torna – com raras exceções – seus cenários supostas telas vibrantes que parecem dar o tom necessário para os dramas humanos que ele costuma retratar. As tramas em que ele imerge suas personagens costumam ser movimentadas, tensas e, por vezes, caótica, mas do caos ele extrai os valores da alma humana com suas fragilidades, anseios e subterfúgios ante os vazios da vida. A música utilizada por ele acompanha o intenso universo de personagens que tentam se sobressair às amarras socioculturais impregnadas por falsos moralismos e visões obsoletas.
Sobre a alma de Almodóvar – alma que ele esparge sem hesitações em suas obras cinematográficas que, para alguns, são um tanto controversas – podemos dizer, sem receio: é de uma feminilidade arrebatadora, por isto bela, forte e encantadora! E tenho dito. 

PARÁFRASE: COMO FAZER?



Segundo Garcez (2001, p. 57), a paráfrase é "um texto que traz as mesmas informações de um outro texto, por meio de outras palavras: tem a mesma função, mas apresenta uma forma de organização diferente." Parafrasear é, deste modo, apresentar as ideias de alguém com um vocabulário próprio e uma construção sintática própria. A paráfrase torna possível a construção de gêneros textuais, como o artigo, a resenha e o resumo.  

Para Garcez (2001, p. 58), na paráfrase podemos simplificar frases e períodos ou transformá-los estilisticamente; palavras complexas podem ser substituídas por expressões mais simples e familiares, também pode ocorrer o contrário, dependendo do objetivo do produtor. As informações, porém, devem manter fidelidade com relação ao que é apresentado pelo texto original. Ao realizarmos uma paráfrase de uma obra de certo autor, devemos fazer menção direta quanto ao autor, para que a paráfrase não se caracterize como plágio.  

Segundo Köche (2006, p. 91), a "paráfrase não pode ser confundida com resumo, pois este é uma condensação fiel das ideias. Também não pode ser confundida com paródia, pois nessa a organização textual é semelhante, porém as informações são diferentes."

Köche apresenta vários exemplos de paráfrase, dentre elas destacaremos a seguinte: 

FRASE INICIAL:

O sucesso do futebol brasileiro deve-se ao empenho dos nosso jogadores.

PARÁFRASES:

A - O empenho de nossos jogadores garante o sucesso do futebol brasileiro.
B - O sucesso do futebol brasileiro é fruto do empenho de nossos jogadores.

As orações (A) e (B) são paráfrases da oração anterior porque as construções sintáticas, embora diferentes, preservam o mesmo sentido. 


REFERÊNCIA:

KÖCHE, Vanilda Salton; BOFF, Odete Maria Benetti e PAVANI, Cinara Ferreira. Prática textual: atividades de leitura e escrita. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.


EXEMPLO INTERESSANTE DE PARÁFRASE:


Texto de Shakespeare, da peça "Hamlet"



Turma da Mônica, de Maurício de Sousa



RESENHA CRÍTICA DA OBRA: “MA MÈRE” (MINHA MÃE), DE CHRISTOPHE HONORÉ


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Resenha Crítica da obra "Ma Mère" (Minha Mãe), de Christophe Honoré. Revista Sétima de Cinema, n. 09, p. 06 - 07, nov. de 2013.

MA MÈRE (Minha Mãe). Direção de Christophe Honoré. Produção: Paulo Branco & Bernard-Henry Lévy. Elenco: Isabelle Huppert, Louis Garrel, Emma de Caunnes e Joana Preiss. França: 2004. Filme (110 min), DVD.
Contundente? Excedente e de forte teor apelativo? Imoral, indecente e pervertido? Muitos questionamentos (ou insatisfações pautadas em juízos de valor falso moralistas?) a obra cinematográfica francesa, do diretor Christophe Honoré, instiga. “Ma Mère” (Minha Mãe), baseado no livro de mesmo título de Georges Bataille, não parece agradar de fato a olhares mais ortodoxos.
No elenco, Isabelle Huppert e Louis Garrel dão vida, respectivamente, à Hélène (a Mãe) e Pierre (o Filho). No enredo, Pierre vê na mãe um objeto afetivo para além da relação materna típica de uma família tradicional e, em decorrência disto, vive a angústia: como lidar, no auge dos seus 17 anos, com a sensação de culpa que traz em si por devotar à sua mãe, também eroticamente, um intenso amor?
Pierre fora criado pelos avós e, após a morte destes, reencontra a mãe num momento cruciante de sua vida. Incertezas, sensação de desamparo e carência afetiva o conduzem, talvez inconscientemente, a buscar nos pais o afeto que estes lhe negaram em sua infância. Em seguida ao seu retorno à casa dos pais (um filho pródigo às avessas?), seu pai também morre. Resta-lhe, portanto, na figura materna a possibilidade de reencontrar o afeto outrora negado. Ante tantas perdas, a mãe passou a representar-lhe segurança e proteção – sua visão, no entanto, não correspondia à realidade: sua mãe era dada a condutas pouco arquetípicas do que se convencionou, socialmente, para uma mãe. As atitudes de Hélène eram antípodas a tudo o que Pierre idealizava – ela, no entanto, fez com que ele a acompanhasse em suas saídas noturnas para que, assim, se o filho a quisesse amar, a amasse por aquilo que ela de fato era. Hélène tenta desconstruir no filho a visão idealizada que ele construíra, como podemos perceber por suas palavras extremamente (não) maternais: “Sou uma porca, uma vaca, ninguém me respeita!”
As perguntas que iniciaram esta breve explanação ainda suscitam resposta. Sim, este filme é contundente, excedente em nudez e erotismo, mas é dotado também de uma pungência extrema por mostrar a fragilidade humana em sua mais deplorável manifestação: o corpo, que no auge de suas vicissitudes encontra, na busca pela satisfação do prazer, um norte, parece cair na mais deprimente sensação de desamparo e solidão.
Para fugirem da sensação de abandono as personagens desse filme parecem utilizar-se do corpo e suas possíveis experiências como um subterfúgio para superar uma existência fadada à deterioração moral, física e psicológica. Se o diretor, por meio desse filme, tenta mostrar um Complexo de Édipo mal resolvido, ou se tenta chocar pelo tema que aborda, o que podemos afirmar é que o enredo hiperboliza a necessidade que o corpo tem de encontrar conforto na satisfação dos desejos. Quando a mãe percebeu a ligação que tinha com o filho e tentou afastar-se, o que poderia sugerir uma necessidade de reprimir o que ela também provavelmente sentia por ele, parece-nos ter sido em vão o afastamento, pois as perversões do sexo, tão vivenciados pela mãe, foram fácil e intensamente assimiladas pelo filho.  
Voyeurismo, sadomasoquismo, bissexualidade, homoafetividade feminina e masculina, incesto, nudez, conflito religioso, drogas, saídas noturnas, sensações de culpa, vida, morte, prazer, autodestruição psíquica e física, que culminam com o suicídio de Hélène, compõem a atmosfera de desconforto, mal-estar e náusea mais que recorrentes nessa obra provocadora.
Não é uma obra recomendável para quem busca no cinema: leveza, tradicionalismos familiares, beleza como a concebe o senso comum e um enredo que não discorra sobre personagens mórbidas e sob efeito de conflitos psicológicos expressivos. Quem resolver assistir à obra de Honoré deve, antes de tudo, despir-se de uma visão mais puritana e adentrar (nem precisa ser empaticamente!) não sem choro e ranger de dentes na atmosfera lúgubre em que Hélène e Pierre estão envoltos. Vale considerar que a canção “Happy Together”, na interpretação da banda “The Turtles”, canção que também é trilha sonora de pelo menos mais três outros filmes polêmicos, foi uma boa escolha para compor a cena mais marcante e, ao mesmo tempo, deprimente de todo o enredo.
Christophe Honoré nasceu em 10 de abril de 1970, em Carhaix-Plouguer, e é diretor, roteirista e escritor. Diretor de filmes como “Les chansons d’amour” e “Les bien-aimés”, discorre sobre temáticas por vezes polêmicas e nada amistosas para quem não suporta mergulhos intensos na alma humana. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

LEITURA: UM OLHAR SOBRE CLARICE LISPECTOR



Olga Borelli, no texto a seguir, descreve Clarice Lispector:

"Ela possuía a dignidade do silêncio. Seu porte altivo era todo contido e movia-se pouco. Quando o fazia, era como se estivesse procurando uma direção a seguir: então, encaminhava-se diretamente, sem desvios, ao seu objetivo. O cabelo era louro-dourado, muito fino e sedoso, as orelhas pequenas. Os olhos tinham o brilho baço dos místicos. Pareciam perscrutar todos os mistérios da vida: profundos, serenos, fixavam-se nas pessoas como se fossem os olhos da consciência, e ninguém os aguentava por muito tempo, tal a sua intensidade. O olho esquerdo tinha uma expressão de inquietante expectativa.

Os lábios, de rebordos bem definidos, eram perfeitos e em harmonia com o contorno do rosto, de maçãs ligeiramente salientes. O nariz, quase imperceptível na serenidade meditativa do conjunto. Mas possuía narinas que se dilatavam nos raros momentos de "cólera sagrada", como costumava definir suas zangas. 

A voz soava grave e profunda. Quando irritada, emergia rascante, em estranha autoridade, dotada de algo que infundia respeito. Tinha um pequeno defeito de dicção: arrastava nos erres por causa da língua presa. 

A mão esquerda era um milagre de elegância. Muito móvel, evolucionava no ar ou contornava os objetos com prazer. No trabalho, ágil e decidida, parecia suprir deficiências da outra dura, com gestos mal controlados, de dedos queimados, retorcidos, com profundas cicatrizes. 

Cumprimentava às vezes com a mão esquerda. Talvez por pudor, receosa de constranger as pessoas, dirigia-se com economia de gestos. Alguns de seus manuscritos eram quase ilegíveis. Assinava com bastante dificuldade, mas utilizava ambas as mãos para datilografar.

Era profundamente feminina, exigia e se exigia boas maneiras. Bem cuidada no vestir, vaidosa, mas sem sofisticação. 

Nunca saía sem estar maquiada e trajada às vezes com algum requinte: turbante, xale, vários colares e grandes brincos. O branco, o preto e o vermelho eram uma constante em seu guarda-roupa.

O batom geralmente era de tom rubro forte; o rímel negro, colocado com sutileza, aumentava a obliquidade e fazia ressaltar o verde marítimo dos olhos. Indiscutivelmente era mulher interessante, de traços nobres e, talvez, inatingível. [...]

Dois atributos imediatamente visíveis: integridade e intensidade. Uma intensidade que fluía dela e para ela refluía. Procurava ansiosamente, lá, onde o ser se relaciona com o absoluto, o seu centro de força - e essa convergência a consumia e fazia sofrer. Sempre tentou de alguma maneira solidarizar-se e compreender o sofrimento do outro, coisa que acontecia na medida da necessidade de quem a recebia. O problema social a angustiava. 

Sabia o quanto doíam as coisas e o quanto custava solidão. 

São muitos os "mistérios" que aos olhos de alguns a transformaram em mito. Simplesmente, porém, em Clarice não aparecia qualquer mistério. Ela descobrira intuitivamente o mistério da vida e do ser humano; em compensação, era capaz de dissimular o seu próprio mistério."

BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.