quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

LEITURA: UM OLHAR SOBRE CLARICE LISPECTOR



Olga Borelli, no texto a seguir, descreve Clarice Lispector:

"Ela possuía a dignidade do silêncio. Seu porte altivo era todo contido e movia-se pouco. Quando o fazia, era como se estivesse procurando uma direção a seguir: então, encaminhava-se diretamente, sem desvios, ao seu objetivo. O cabelo era louro-dourado, muito fino e sedoso, as orelhas pequenas. Os olhos tinham o brilho baço dos místicos. Pareciam perscrutar todos os mistérios da vida: profundos, serenos, fixavam-se nas pessoas como se fossem os olhos da consciência, e ninguém os aguentava por muito tempo, tal a sua intensidade. O olho esquerdo tinha uma expressão de inquietante expectativa.

Os lábios, de rebordos bem definidos, eram perfeitos e em harmonia com o contorno do rosto, de maçãs ligeiramente salientes. O nariz, quase imperceptível na serenidade meditativa do conjunto. Mas possuía narinas que se dilatavam nos raros momentos de "cólera sagrada", como costumava definir suas zangas. 

A voz soava grave e profunda. Quando irritada, emergia rascante, em estranha autoridade, dotada de algo que infundia respeito. Tinha um pequeno defeito de dicção: arrastava nos erres por causa da língua presa. 

A mão esquerda era um milagre de elegância. Muito móvel, evolucionava no ar ou contornava os objetos com prazer. No trabalho, ágil e decidida, parecia suprir deficiências da outra dura, com gestos mal controlados, de dedos queimados, retorcidos, com profundas cicatrizes. 

Cumprimentava às vezes com a mão esquerda. Talvez por pudor, receosa de constranger as pessoas, dirigia-se com economia de gestos. Alguns de seus manuscritos eram quase ilegíveis. Assinava com bastante dificuldade, mas utilizava ambas as mãos para datilografar.

Era profundamente feminina, exigia e se exigia boas maneiras. Bem cuidada no vestir, vaidosa, mas sem sofisticação. 

Nunca saía sem estar maquiada e trajada às vezes com algum requinte: turbante, xale, vários colares e grandes brincos. O branco, o preto e o vermelho eram uma constante em seu guarda-roupa.

O batom geralmente era de tom rubro forte; o rímel negro, colocado com sutileza, aumentava a obliquidade e fazia ressaltar o verde marítimo dos olhos. Indiscutivelmente era mulher interessante, de traços nobres e, talvez, inatingível. [...]

Dois atributos imediatamente visíveis: integridade e intensidade. Uma intensidade que fluía dela e para ela refluía. Procurava ansiosamente, lá, onde o ser se relaciona com o absoluto, o seu centro de força - e essa convergência a consumia e fazia sofrer. Sempre tentou de alguma maneira solidarizar-se e compreender o sofrimento do outro, coisa que acontecia na medida da necessidade de quem a recebia. O problema social a angustiava. 

Sabia o quanto doíam as coisas e o quanto custava solidão. 

São muitos os "mistérios" que aos olhos de alguns a transformaram em mito. Simplesmente, porém, em Clarice não aparecia qualquer mistério. Ela descobrira intuitivamente o mistério da vida e do ser humano; em compensação, era capaz de dissimular o seu próprio mistério."

BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


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