quinta-feira, 24 de outubro de 2019

HORA DO SONETO ("O ADORMECIDO DO VALE", DE ARTHUR RIMBAUD)


O ADORMECIDO DO VALE

Era um recanto verde onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, Ó Natureza – aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.
(Arthur Rimbaud)

HORA DO SONETO (TRÊS POEMAS DE GREGÓRIO DE MATOS)


A Jesus Cristo crucificado,
estando o poeta para morrer

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Amoroso, constante, firme e inteiro:

Neste transe, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um pai, manso cordeiro.

Mui grande é o vosso amor, e o meu delito:
Porém, pode ter fim todo o pecar;
Mas não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar
Que por mais que pequei, neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.



À instabilidade das cousas do mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto, da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza;
Na formosura, não se dê constância:
E na alegria, sinta-se tristeza.

Comece o mundo enfim pela ignorância,
Pois tem qualquer dos bens por natureza,
A firmeza somente na inconstância.



Descreve que era Realmente Naquele Tempo a
Cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazendo pelos pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam, muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CRÔNICA: "A FESTA"


Pensei numa festa – sem bebida, sem comida, festa só de olhar.
(“O chá”, de Clarice Lispector)

Convidaria para uma festa as minhas professoras do Ensino Fundamental e Médio, que estariam diante de mim com o que consegui resguardar delas. O que diria a elas? Que foram relevantes para minha vida? Que as estimava com devoção?

 

Na surpresa do reencontro, ririam as simpáticas. As mais sérias permaneceriam em silêncio. Eu passearia a vista pelo ambiente e começaria a identificá-las. Não atentaria para a ordem em que elas apareceram em minha vida.

 

Em sobressalto, aquela que apertou minha mão, levando-me aos curativos quando me feri na escola, respondeu: “Não, eu nunca vou te esquecer!” Era o último dia de aula quando a pergunta foi feita. Ela permaneceu comigo, para sempre, através de sua letra que imito até hoje.

 

A primeira que nos impediu de chamá-la de Tia, ensinou à turma duas canções inesquecíveis. A primeira, trilha sonora do filme A noviça rebelde, ensina as notas musicais. A segunda, meu Deus, traz em sua melodia a face inteira dessa professora: “Já podeis da pátria, filhos, ver contente a mãe gentil...” Ela atirou-se da janela de um hospital psiquiátrico. Lecionava em três turnos e era um ser humano com uma vida pessoal. Eu fui para seu velório. Diante dela, eu fiquei em profundo silêncio.

 

Outra, de muitos cabelos e pouca sensibilidade nas palavras, me acusou de rir demais. Talvez ela não tenha entendido que, para não morrer, diante de uma vida indigna, rir era tudo o que eu tinha.

 

Outra professora, muito humana, sorriu com minha promessa: eu disse que um dia, ao reencontrá-la, iria dizer: “Professora, eu também sou Professor!” Ela me deixava ajudá-la com as provas na hora da correção e dizia que já havia conhecido quase todas as capitais do Nordeste. Eu, em minhas viagens para capitais, sempre me lembrei de me perguntar: “Ela já veio aqui?”

 

Uma professora, após a morte do pai, vestida de luto, com muita angústia no fundo dos óculos espessos, entrou na sala, sentou-se à mesa e permaneceu calada, sofrida, estática.  O que nunca saiu de minha mente foi a capacidade que essa professora teve de dizer tanto em silêncio tão cortante.

 

Outra, muito loira, vaidosa, esotérica, preocupada em combinar as cores das roupas com as cores dos acessórios, disse em sala de aula que a empregada lhe havia perguntado se dava para fritar ovo em micro-ondas. Ela gargalhou sem refletir que poderia haver alunos ali cujas mães (iguais à minha) também poderiam ser empregadas domésticas.

 

Duas outras professoras eu as quero lembrar a partir da simplicidade e simpatia delas. Uma era baixinha, usava óculos, tinha um cabelo amarrado com rigor e lecionava como se estivesse declamando. Eu amava escutá-la. A outra, também baixinha, fazia a turma se movimentar, pois surgia sempre com um trabalho novo para ser apresentado em sala. Todas as vezes que escuto a palavra Greenwich essa professora me vem inteira.

 

Tive uma professora que me emprestava livros. Lembro que o primeiro livro que ela me emprestou foi Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco. Eu lhe perguntei, ainda no Ensino Fundamental: “O que eu devo fazer se eu também quiser ser Professor?” Ela disse: “Faça Letras!” E eu iniciei uma larga marcha, desde esse dia, em busca do curso para o qual nasci. 

 

Por falar em literatura, tive uma professora que era insana na aparência e apaixonada por essa área do conhecimento que tanto amo. Ela portava uma garrafa azul em todas as aulas e os meus colegas de turma, os mais irreverentes, diziam que a garrafa estava cheia de uma “poção mágica” que explicava seu aspecto alucinado. A ela mostrei meus primeiros contos. Recebi dela o melhor em estímulos.

 

Outra professora passou uma produção textual que iniciava: “Naquele dia, eu me sentia diferente, pois...” E eu completei: “...era meu aniversário”. No texto, coloquei as sensibilidades de minha alma confusa de adolescente. A professora escreveu na folha de redação palavras tão humanas, e depois me procurou e ensinou, com um gesto, o que uma professora deve ser e fazer diante da existência anônima de um aluno angustiado.

 

Uma professora de História, em certa aula, para controlar a turma, contou sobre as dificuldades que viveu e as lutas que empreendeu para superar as limitações da vida. Em certo ponto, ela começou a chorar sem controle. A turma silenciou diante de seu testemunho comovido e eu, que não era dado a abraços, me levantei e a abracei.

 

Minhas professoras de Matemática foram poucas. Uma tinha um sotaque carioca irreverente. Com ela aprendi a desenhar formas geométricas. A outra ensinava, com propriedade, os números que eu detestei a vida toda. Seu método tornava a Matemática uma marcha difícil para mim, porém tão aprazível, pois seu tom de voz e pacificidade eram admiráveis.

 

Tive uma professora que ministrava aula olhando só para mim. Havia algo forte que eu admirava nessa professora, mas eu nunca soube dizer exatamente o quê. O que eu admirava nela, Deus, seus olhos verdes e incisivos, ou sua beleza e inteligência tão peculiares?

 

Certa professora, esta muito sóbria, racional e de vasto conhecimento, tinha a melhor das posturas. Era respeitável, competente, exigente e de um tom de voz perfeito. No mundo, uma profissional como ela é uma raridade. Foi essa senhora discreta e fina quem me fez o maior elogio que um dia recebi, e receberei, na vida: “Você é um grande ser humano!” Eu luto todos os dias para estar à altura do elogio. Creio que, em verdade, o grande ser humano nesta história é ela, de voz inconfundível que eu escuto como se tivesse gravado cada sílaba pronunciada.

 

Lembro-me afetuosamente da professora que passou um estudo sobre o poema de Manuel Bandeira: Poema tirado de uma notícia de jornal. Lembro-me de sua voz dizendo: “João Gostoso”. E os seus lábios ficavam excessivamente arredondados. Escrevi um poema, dei-lhe de presente e ela guardou com carinho. Sua serenidade é inesquecível.

 

Ainda hoje reflito sobre o modo de ser de uma professora que eu conheci. Ela mostrava nos olhos uma espécie de fuga. Ela desejava, mas o quê? Demonstrava medo, insatisfação, silêncio, mas às vezes ria com riso discreto. Quem era aquele ser humano fantasiado de professora? Quais eram suas feridas existenciais?

 

Pois bem, antes de parar de falar delas, das professoras da minha vida, devo me lembrar da primeira professora que me ensinou sem estar em sala de aula. Ela morava num cubículo e ministrava aulas para os meninos da vizinhança. Ela era tão triste, sozinha, abandonada...

 

Depois dela, me veio a escola com as duas primeiras professoras oficiais de minha vida. A primeira, que ficou pouco tempo, tinha cabelos curtos, óculos presos por um fio prateado e seriedade extrema. A segunda, que acolheu a turma em seguida, com os cabelos sempre assanhados, trazia revistas em quadrinhos e as espalhava sobre a mesa, para minha felicidade de leitor iniciante.

 

Estive em sala de aula com várias professoras. As tradicionais, carrascas, foram poucas. As marcantes, humanas, foram muitas. Embora eu tenha querido citar todas, talvez tenha me esquecido de alguma, o que não quer dizer que todas não sejam significativas. Agora, por exemplo, me veio a imagem da única professora que me forçou a realizar Educação Física. Eu ia à igreja pela manhã e ela, ao me ver passar com a farda da escola, me raptou e disse: “Primeiro a obrigação, depois a devoção!” Até ela, que só vi uma vez, ficou para sempre em mim através deste lugar-comum. 

 

Queria nessa festa dizer às minhas professoras o quanto a vida foi difícil. Estudar, sem estímulo em casa, e sofrendo toda sorte de bullying, não é coisa tranquila de se vivenciar. No auge das dificuldades, no entanto, sempre houve uma delas que me dizia como superar as limitações. Elas me davam forças até quando silenciavam.  

 

No pátio da memória, vou revendo as faces afixadas nas paredes do que sou. A imagem de cada uma delas compõe a alma que tenho construído. Ficará em mim, enquanto houver memória, a existência profunda dessas mulheres que me ensinaram sobre a vida. Com umas, aprendi como ser um profissional exemplar. Com outras, aprendi como reivindicar meus direitos, como superar os momentos de conflito, como ser gente, como utilizar a palavra para entender e enfrentar o mundo.

 

Por falar em palavras, as que escrevo passam a ter peso de chumbo, porque estão perpassadas por um tempo que não volta. Não sei onde encontrar minhas professoras para uma demonstração de afeto. Não sei se estão bem. Não sei de suas vidas ou mortes. Não sei. Eu as quero felizes sempre.  


                                                                                                   Émerson Cardoso
(04/07/09 - 18/10/19)

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CRÔNICA: SETEMBRO AMARELO, QUE EM VERDADE FOI CINZA!


Na véspera do meu aniversário, deste fatídico ano de 2019, um colega de trabalho cometeu suicídio. Lembro-me de que nos falamos algumas vezes, durante o tempo em que trabalhamos juntos, mas não o suficiente para que eu percebesse nele algum resquício de angústia que o motivasse a tomar decisão tão drástica. É assim a vida: bastaria um golpe contra ela e, fim, tudo estaria concluído. Se quem está vivo permanece vivo é porque, de algum modo, a vida lhe significa algo. Viver, sinceramente, é desafio dos maiores - aliás, é o único desafio.

Discorrer sobre suicídio em campanha, numa tentativa de combate, será um meio eficaz de reverter esse quadro? Em minha cidade ocorreram, desde o começo deste ano, tantos suicídios que eu não me recordo de ter visto, desde que nasci, tantas notícias sobre o assunto. Talvez a falta de horizontes políticos, os desesperos existenciais movidos pela perda de direitos, as angústias do cotidiano com suas dores inevitáveis tenham vindo com força total neste ano de 2019 que, como tenho mencionado, é um ano funesto.

Depois de ouvirmos notícias diversas sobre o assunto, ao longo do ano, fomos informados a respeito do suicídio de dois adolescentes em uma mesma escola. Morreram de suicídio, neste mês de "setembro amarelo", um rapaz e uma moça com pouco tempo de um para o outro. O rapaz deixou uma carta, que eu li e deixou-me completamente reflexivo. Primeiro, pela sobriedade do texto; segundo, pela sensação de profunda identificação que eu tive com ele. Eu era um adolescente sensível e angustiado, assim como ele, e nunca escrevi carta de despedida, mas escrevi contos cujas personagens sempre cometiam suicídio. A vontade de me livrar da vida, que tanto me ocorria na adolescência, felizmente, foi sublimada.

Eu, assim como ele, também assisti, na escola, ao filme "Sociedade dos poetas mortos". Com este filme, senti o quanto ser eu mesmo poderia causar transtornos para o espaço social em que eu estava inserido. Ao mesmo tempo, esse filme me deu a grande lição de minha vida: é preciso não se deixar aprisionar, é necessário estar aberto ao que é novo, é urgente estar vivo com tudo o que o viver implica. Aprendi, com esse filme, a resistir, a sobreviver, a continuar, a prosseguir, apesar das adversidades. O rapaz que escreveu a carta talvez tenha se fixado demais em uma das personagens - e quem poderá criticá-lo por isto?

Desde sempre, quando vejo notícias de suicídio, paro e fico reflexivo. Os autores que morreram de suicídio sempre me chamam atenção, porque eles não suportaram as dores da vida apesar de tentarem sublimá-las, como eu fiz e continuo a fazer. Para mim, por muito tempo, havia certo lirismo neste tipo de morte. Hoje, quando vejo tantos que se destruíram porque se desiludiram com a vida, eu sinto tristeza e vontade de dizer a eles o quanto as coisas podem mudar, caso a gente tenha um pouco de paciência e teimosia.

No suicídio está implícita uma imensa vontade de viver. O que torna essa vontade de viver um espectro de autodestruição é a impossibilidade de viver aquilo que a alma tanto aspira. Os cerceamentos, os falsos moralismos, os desrespeitos, dentre outros fatores, criam gatilhos que levam o ser humano a querer se matar, porque nem todo mundo tem força, apoio, saúde psicológica, possibilidades de reverter quadros depressivos etc.

Quanto ao tal "setembro amarelo", eu sou totalmente contra. A hipocrisia reina nesse tipo de campanha. Digo isto porque o mesmo ser humano que pode triturar os outros com palavras, ou desrespeitos outros, pode também confeccionar fitinhas amarelas às pampas para distribuir com falsidade. 

Penso que não devemos fazer campanhas contra o ato de tirar a vida, que se mostra uma opção para quem já não suporta os sofrimentos cotidianos e seus correlatos. Devemos fazer campanhas, em verdade, a favor de uma maior humanização em casa, nas escolas, nas ruas, no Brasil e no mundo. Devemos fazer as pessoas considerarem possível estar vivas. Olhá-las, ouvi-las, buscar compreendê-las em suas singularidades. Não digo isto com tendência utópica, porque sei que o convívio humano é complexo e, portanto, doloroso. Olhar com mais sensibilidade para a realidade dos outros, porém, pode ser bem mais útil do que ficar exibindo fitinhas amarelas para mostrar que se importa com o outro. Penso que é desafiador, sim, tentar ser empático, sobretudo em alguns contextos, mas deveríamos ao menos tentar.

Como professor que sou, fico impressionado com o modo como o âmbito escolar tem sido um espaço cada vez mais contraditório. Fala-se em educação para a cidadania, para a vida e coisa e tal, no entanto, o que se faz muito é: amontoar quarenta e tantas vidas em uma mesma sala de aula, incentivar constantemente o estudante à competitividade, exigir em várias instâncias hierárquico-burocráticas resultados e mais resultados, cercear a capacidade criativa e humana e sensível do estudante com pressões psicológicas que atendem a uma matriz curricular (que ainda denominam grade curricular, para fazerem jus ao teor de presídio das escolas), dentre outros pontos.

Se pensarmos a realidade do professor, então, é melhor não entrar em detalhes, porque me estenderei demais e terminarei por expor, ainda que parcialmente, o porquê de meu colega de trabalho ter cometido suicídio quando ele era, pelos discursos contraditórios da educação, o mais apto a lidar com os diversos conflitos que fazem parte do métier da profissão. Há tantos professores e professoras querendo morrer nas salas de aula deste país sem educação, enquanto há tanta gente indiferente preocupada apenas em cumprir ordens que vêm de funcionários que sabem pouco, ou nada, sobre o que é estar em sala de aula! E há tanta gente inapta que odeia professor sem tentar entender suas misérias humanas, seus conflitos, suas dores!

Enfim, o suicídio é algo sério, não tenho como alongar mais o texto na tentativa de explaná-lo, porque falar sobre ele tem me causado uma sensação de angústia sem precedentes. E, para concluir, creio que o suicídio seja a grande problemática da existência, porque, ainda que de forma generalizante, o ser humano tem apenas duas opções neste mundo: 1) querer estar vivo, embora com a consciência de que estar vivo é lidar com as dores e seus universos, ou 2) decidir se quer, definitivamente, morrer. Assim é a vida: tomar decisões e implorar para que essas decisões sejam as mais acertadas.

Émerson Cardoso
29/09/2019

domingo, 15 de setembro de 2019

CRÔNICA: VIDA E TENTATIVAS DESNECESSÁRIAS DE CONCEITUAÇÃO


A vida é assim: bastaria um golpe contra ela e fim, tudo estaria concluído. Se quem está vivo permanece vivo é porque, de algum modo, a vida lhe significa algo. Viver, sinceramente, é desafio dos maiores - aliás, é o único desafio.

A vida é assim: tomar uma decisão acertada é o melhor caminho. Se quem toma a decisão comete um equívoco, e lhe é dada uma oportunidade para consertá-lo, a realidade pode ser alterada e as próximas decisões poderão ser mais corretas.

A vida é assim: quando se está frente a um abismo, sem poder retroceder, se faz necessário criar, para si, coragem. Coragem é artefato complexo, porque é difícil de adquirir, é luxo que não é todo mundo que pode ostentar, é construção que precisa ser reconfigurada sempre.

A vida é assim: quando se tem medo demais, a vida se esvazia e corre para caminhos pouco profundos. Medo é mortalha cortada para corpo já putrefato. E há tanto medo no mundo!

A vida é assim: uma obra cinematográfica que pode ter roteiros os mais diversos. Depende muito dos componentes a serem articulados. Há elencos que se entregam à trama, há elencos que não. E o papel está em branco exigindo tinta.

A vida é assim: poema que não pode esperar preocupações com a forma para realizar-se em puro fôlego. Às vezes, a gente não pode se dar ao luxo de perder o ímpeto. O mundo gira e não espera disciplina e regras a serem construídas quando surge resquício de lirismo.

A vida é assim: o leite derramado sempre apaga o fogo. Não tê-lo vigiado já passou, agora é seguir em frente e esperar melhores momentos para ter mais cuidado com o que é fervura. Olhar com dedicação é encontrar caminhos para o cuidado nunca disperso.

A vida é assim: o sol que se põe hoje, por mais que semelhante aos anteriores, para sempre não se repetirá no gesto. Tampouco será igual quem o olha, ou mesmo a tonalidade que o arrebol desenha. E o que é ou foi nunca mais será, porque tudo é singularidade no sol que se põe em cada final de tarde.

A vida é assim: quatro paredes de solidão e cruz. Se em silêncio se busca o barulho no outro, estando com o outro se busca o silêncio com sofreguidão. Esta aventura é para os fortes, pois entregar ao outro o que temos nas mãos é profundidade perigosa demais para um mergulho.

A vida é assim: não dá para conceituá-la, defini-la, porque, enquanto o ser vivo existir em pleno fôlego, a vida poderá levá-lo para caminhos tão diversos e mudanças tantas que não seria possível querer defini-la em sua totalidade. A vida só pode ser definida depois que o ser morre. Na morte, quem vivo estiver, poderá delimitar o que foi a vida de alguém, mas, estando em vida, uma pessoa não terá como definir, de modo preciso, o que é sua própria vida. A vida é o estar vivo com todas as suas possibilidades e dores. Não seria melhor que nos preocupássemos apenas em viver? Definir o que é a vida nos tornará mais vivos ou felizes? A vida, pelo que tenho notado, exige coragem e a necessidade de sobreviver às pequenas angústias que o cotidiano nos oferece em bandeja de ferro e copo de cólera.

24/09/2019




terça-feira, 3 de setembro de 2019

CRÔNICA: PÔR DO SOL EM JOÃO PESSOA (ou: epifania de final de tarde)


Eu tenho resistido, sim, porque a alternativa é esta. E neste contexto de resistência, quando o cotidiano em fim de tarde demonstra mais um dia puxado em cidade que muito trabalha, eu vou andando pelas ruas de João Pessoa em direção à rodoviária. A tristeza (ou será cansaço?) pesa nas costas, pesam os ossos das pernas que me repuxam para o chão - mal sabem eles que este sempre foi meu lugar na terra, de modo que não adianta tentar me chantagear com dores!

Com mil coisas a resolver na alma, enquanto a cabeça começa a viver uma dor sem precedentes, eu me deparo com o sol que vai se pondo em minha frente - e minha surpresa diante dele me fez levar a mão à boca! O gesto chamou atenção de uma mulher ao lado, que também olhou para o sol instigada por meu arroubo de perplexidade. Depois que o vi, não mais percebi o mundo à minha volta. O mundo tornou-se esfera alaranjada com tons de alívio. Ia-se rápida a esfera, é certo. Ia-se, no entanto, deixando em mim beleza tanta, que tive medo de nunca tê-lo fitado. Agora, seria difícil aceitar perder o inusitado êxtase que ele me proporcionava! 

Não me recordo de ter sido arrebatado pelo sol com tanta veemência! O pôr do sol em João Pessoa não foi igual a qualquer outro que eu tenha visto. Unguento para feridas que o cotidiano engendra, mostrou-se o sol. Ou foi o fato de estar solitário em meio à multidão, estudante cansado que ainda não conseguiu estudar em paz de espírito, porque a burocracia do estado do Ceará não deixa, foi determinante para que o sol ficasse mais comovente ao meu olhar acostumado a amá-lo em sua despedida com arrebóis silentes? 

Não sei, sinceramente, mas andar sem rumo e triste diante de crepúsculo tão peculiar, me deixou, nesta data de cansativas cores, comovido como nunca. A esperança ousou nascer em minhas mãos pedintes: "Quero estudar em paz, mundo complexo! Quero estudar em paz!"

Vou resistir, sim, porque estou acostumado com governantes do Ceará que odeiam professores que estudam! Vou resistir, claro, porque não tenho medo do governo deste país que odeia cultura, pesquisa e conhecimentos em suas mais amplas possibilidades! E aviso ao mundo: paciência tem limite, e a minha está se esgotando! Mas resistência eu serei sempre! 

Émerson Cardoso
28/08/2019

terça-feira, 23 de julho de 2019

CONTO: "A CARNE"


Ela fechou a porta do quarto. Encostou-se à parede oposta à porta – último apoio na prelibação da queda. Seus olhos eram espessas águas. Relâmpagos fotografavam o silêncio em sua boca. 
Antes...

             – Você me causa nojo! Não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
           – Eu realmente não valho nada porque sou casada com um verme, um monstro, um cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.

O quarto fechado e a lembrança da pancada no rosto. Quatro paredes azuis que se movimentavam contra seu corpo. Nenhuma janela lhe era possibilidade. O teto parecia perceber o patético da cena e ria sádico. Havia o chão e a sensação de abraçá-lo. Os móveis se deformavam como imagens imersas em profundas águas. Ela também descia às profundezas. Seu vestido estava envergonhado de cobri-la. O tempo exigia um gesto. O quarto enregelou-se. Ela não seria nunca mais ela mesma se...
Antes...

– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com desafiadores olhos.

A mão que tocou tantas vezes seu corpo... A mão que fez juras de amor... A mão que trazia um símbolo de compromisso firmado... A mão revoou na atmosfera gélida da sala de jantar e, como ave de rapina que em um golpe arrebata a presa, cessou o voo em seu rosto. Ela recebeu calada e esmiuçada e perdida e ferida e destruída a pancada. Os filhos não desviaram o rosto: “Como olhá-los novamente?” E agora que os cacos da família caíram sobre si, faria o quê? Precisava de uma ação. Precisava de forças para a ação, mas... O que fazer quando regida pelos olhos amedrontados dos filhos? O que fazer com a fúria do marido? O que fazer quando treze anos trituram o rosto de uma mulher sozinha?

Ao quarto deslocou-se em contígua embarcação. Tempestade assolou seu sombrio mar. Os raios se repetiam continuamente em seu rosto, que ardia em fogo. Entre afogar-se e permanecer no chão que lhe faltava, havia somente medo de que...
Antes...

– Essa carne é de que múmia? Você não presta nem pra fazer um bife! – Falou o marido de boca cheia.
– Fico impressionada com sua gentileza! – A esposa ofendida.
– Com você a gente esquece qualquer gentileza! – O marido de boca cheia.
– Sugestão, meu amor, não coma da carne que “você” me fez comprar com o pouco dinheiro que restou da farra que você deve ter feito ontem! Quanto às suas gentilezas de búfalo, dispenso todas elas! – A esposa muito ofendida.
– Eu detesto essa ironia sua! Coisa de mulher baixa! Você parece aquelas mulheres que se vendem... – Usou eufemismo preocupado com a presença inestimável das crianças.
– Eu devo parecer, realmente, com esse tipo de mulher... A diferença é que faço o mesmo que elas desde que casei, mas faço isso gratuitamente, por burrice minha! Sou tão baixa que nem pra ser baixa eu prestei! Mas cuidado: as coisas podem mudar!
– Pensando bem, nem pra isso você ia prestar! Você é tão ruim que eu acho que ninguém pagaria por seus serviços que, sinceramente, nunca foram bons! – O marido, com boca cheia, sorriu com escárnio.
– Como eu consigo conviver com uma pessoa como você?! E peço, por favor, que você pare com essa baixaria diante dos “meus” filhos. – Disse com sofreguidão e levantando-se. Seus olhos não escondiam as olheiras da noite mal dormida.

Pancada no rosto na frente dos filhos! Olhou para o espelho sobre a cômoda. Como confrontar a si mesma em um olhar? O marido nunca esteve tão dentro dela como naquela noite. Duas almas em um só corpo, dois corpos em uma só alma e uma só carne. Ela encostou-se na parede e respirou, como se buscasse no mais profundo de si a possibilidade de permanecer viva. A carne. A carne em fragmentos. A carne sobre a mesa esperando putrefação. Os olhos das crianças conduziram-na para a travessia. O mar explodia em seu rosto com relâmpagos e trovoadas. 
Antes...

– Baixaria diante dos “seus” filhos? Olha só quem fala! A pior baixaria é ter que viver com você, sua... – Tentou se conter e partiu mais um pedaço de carne. Engoliu-a.
– Você parece que está com algum problema, não é? Pra jogar em mim suas frustrações como você faz, criatura educada, só estando com problema! Mas o que foi mesmo que aconteceu? O seu patrão percebeu o quanto você é desonesto, ou foi a sua “outra” que decidiu trocar você por um sujeito menos idiota? Será que as pragas da sua mãe começaram a cair sobre você, ou os credores decidiram que você é um irresponsável? Caso tenha um desses problemas, meu amor, desconte neles e não em mim, eu mesma não tenho nada a ver com sua vidinha de adolescente!
– Você dá nojo a qualquer um... Só sabe dizer asneiras... Também, tendo as irmãs e a mãe que tem... Eu poderia esperar o quê? – A carne na mesa para ainda ser comida: uma boa porção.
– Coma mais carne, meu amor, parece que gosta de múmia... Coma e não se esqueça de engasgar e morrer sufocado!
– É lógico que gosto de múmia! Eu casei com você, esqueceu?
– Seu imundo!
– Imunda é você, que me causa nojo só de pra você olhar! Você não presta pra nada! Não vale nada! – Gritou o marido.
– Eu realmente não valho nada porque sou casada com um verme, um monstro, um cretino da sua igualha! – Respondeu ofendida.
– Repita! – Levantou-se o marido que estava sentado à cabeceira da mesa em que ela e os três filhos jantavam.
– Verme! Monstro! Cre-ti-no! – Explodiu com desafiadores olhos.

Ela não escutou mais nada e, no auge da tempestade, houve um raio que a atingiu no rosto. Torre ao chão, engoliu a saliva – saliva transformada em sangue – e arrastou-se para o quarto. No quarto, precisaria agir, mas... Dos olhos jorraram sombras e medos e angústias e treze anos de subserviência. O que fazer? Os olhos dos filhos guiariam por quanto tempo sua embarcação? Foi então que ela... Ela arrastou pelo corredor uma desalinhada mala e, altiva, finalmente, foi embora para nunca mais.


CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. A carne. InBreve estudo sobre corações endurecidos. Maricá - RJ: Ponto da Cultura Editora, 2011. p. 15 - 18. 

CRÔNICA: ISABEL ALLENDE, POR QUE SOU DESLOCAMENTO?


Como sou viciado em entrevistas, acordei angustiado e procurei alguma que me fizesse ficar mais alegre. Em minha busca, encontrei Isabel Allende sendo entrevistada na década de 1990. Mal concluí o vídeo, em êxtase, devo dizer, e eu me postei a escrever um texto. Há pessoas extraordinárias no mundo – Isabel Allende é uma delas.

Em certo momento da entrevista, Allende falava sobre a sensação de deslocamento que é comum a alguns escritores. Ela se indagava se, em seu caso, teria a ver com o fato de ter sido abandonada pelo pai. Eu não poderia me sentir mais identificado com ela – seja pela sensação de deslocamento no mundo, seja pelo fato de que também vivenciei essa experiência pouco simpática de abandono paterno.

Deslocamento é sensação que me define. Mais intensa ou mais forte em certos momentos, estar deslocado do mundo sempre foi meu modo de percebê-lo. Parece que eu traio a mim mesmo sempre que tento me adequar ao que sugerem ser comum, normal ou típico. O mundo não é meu e eu não sou dele – estamos fadados a uma relação de fracasso desde sempre.

Parece-me que, para fazer parte, para me integrar, para adequar meu olhar estranho ao mundo e seus artifícios, vivo as experiências que os demais exigem de mim. Volto do campo de batalha, no entanto, cada vez mais destruído. Minhas mãos retornam vazias e meu olhar envolto em névoa. As pessoas não sabem, nem sentem, mas vivê-las é caos que meu espírito não comporta.

Exilado no mundo, meu espírito – se existe algum – deseja voltar para casa com a esperança vã de que haja espaço que represente pertencimento. Pessoas, lugares, experiências, tudo é vão para meus pés que não sabem marchar – há tanta luta que não sabe de meu coração medroso!

Para tentar convívio, para entender o mundo, por medo, faço o que os outros poderiam aceitar como gesto de ajuste, porém meu corpo não suporta a dor de ajustar-se. Vivo minhas causas com tentativa de transgressão, no entanto mal passa o gesto e a vergonha arremessa, com violência, meus olhos contra um espaço que não lhes cabe. 

Nas mãos de quem o parece comportar, meu corpo morre. Não sinto vida quando tateiam do meu corpo a palidez e o desajuste. Quando me permito a isso, estou sem chão, estou sem mim. O mundo não me pertence, nem eu a ele. Estou sozinho em exílio estranho. Preciso de luz nas trevas do que ainda sou, mas não me encontrarei comigo mesmo enquanto eu não conseguir dizer NÃO para o que é o SIM do mundo. Estou cansado de tentar adequações. Será que meu lugar de paz não está exatamente no deslocamento que me define e, sinceramente, me amplia? Será que meu destino não é organizar meu mundo para melhor lidar com o espaço externo a ele tão violento e trágico? O mundo, disso estou certo, não me comporta! 

Émerson Cardoso
23/07/2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

CRÔNICA: "2019 É PARA OS FORTES"


Ao abrir a porta de casa, vi um gato de amarelos olhos que me olhou indiferente e disse: "2019 é para os fortes!" Quem me conhece sabe o sentimento que devoto a gatos - meu corpo responde eriçado quando vejo um. O gato sentou-se à minha frente e passou a ditar o texto que transcrevo abaixo:

"2019 é para os fortes! Sim, a coisa anda séria. Não percebo luz no fim do túnel. Homens e mulheres estão psicologicamente abalados - o índice de suicídios aumentou no país. E você, então, que já nasceu propenso a abalos, está nitidamente uma pilha de nervos, hein! 

2019 é ano do Pendurado - que não me deixe mentir o tarot. Ano ímpar, de aspecto grosseiro, oscilação da harmonia e desengano, 2019 tem rido dos fracos. Por isto, somente os fortes sobreviverão a ele. 12 pendurados em 12 meses em 12 símbolos e 12 quedas...

Eu poderia sugerir que você andasse ao vento, como eu, e eriçasse os pelos com a mesma maestria com que eu o faço. Eu poderia mandar você lamber-se despreocupado, como eu, porque medos e desesperos e angústias durante o ano não passarão rápido. Bem, mas como o brasileiro é dado a subserviência e caos, prefiro dizer outras coisas: tenha brio, erga a cabeça, apoie amigos e amigas e siga em frente! Não há isentos no caminho estreito que o ano nos forçou a caminhar - então, reaja!  

Meus olhos bifurcados veem você com pena. Que vida: presidente medíocre, Brasil dormente! Ignorância explícita, esquizofrenia nacional! Ah! Não tem como não rir quando vislumbro brasileiros em suas janelas sem rua! Que berço é este no qual vocês foram atirados? Tenho vergonha por você, querido! Vergonha por você e de você... 

Há tanta gente doendo, no entanto o silêncio impera. Há tanta gente gritando, todavia não há barulho em espaço algum. Vejo gente paralisada de medo, de aceitação, nadando em rios de dissimulação... Aprenda algo comigo, que sou alma que não mede esforços para o desprezo ao caos e gosta de auto-lambidas reconfortantes: reaja! Espero água e alimento sempre - e tenho pressa! Você, frágil espírito, merece o quê nesta vida em farpas? 

2019 é ano para quem tem músculo, para quem tem sangue, para quem tem coragem! Se você, pobre criatura, conseguir sobreviver a ele, disto estou certo, não haverá no mundo quem o segure! Então, covarde, cuspa quando ouvir nomes de governantes e seus comparsas despreparados - não deixe que eles tornem você um espírito inerte! Pise na cabeça das serpentes eleitas pela gentalha acrítica - a Roda da Fortuna também poderá girar no cenário político! E, mais do que isso, aprenda o que disse Fernanda Montenegro: "Para se superar a gente precisa amar a vida, tem que se querer estar vivo". E tenho dito!"

A verdade exposta pelo gato que me abordou me causou espanto. Gatos sempre mordem minhas mãos e pés em sonhos desde a infância. Agora, pelo que vejo, eles querem roer minha consciência - e isto pode ter uma grande utilidade em mim!

Émerson Cardoso
18/07/2019