segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A TRISTE PARTIDA

Dentre as muitas temáticas comuns à criação de Antônio Gonçalves da Silva - Patativa do Assaré - a seca caracteriza-se como uma das mais recorrentes em sua obra. O sertanejo nordestino, que teria na agricultura e pecuária a sua mais importante fonte de renda, encontra-se sempre numa constante luta contra a estiagem e, esperançoso, aguarda bons invernos para que seu trabalho possa "vingar". A seca assume contornos de tragédia, desespero e maldição para o nordestino e torna-se um drama inevitável em decorrência das secas periódicas que assola o Nordeste brasileiro.  

No universo sertanejo, a seca nem sempre figura como um problema que poderia ser resolvido por meio de esforços humanos. Nesta perspectiva, somente o sagrado, representado pelas figuras representativas da religiosidade popular, poderia solucionar o drama a que o homem, impotente ante a força da natureza e à mercê de políticos acríticos, estaria submetido. O aspecto místico-religioso figura como o subterfúgio do sertanejo ante a seca e sua devastação. A fé torna, aparentemente, o sertanejo capaz de suportar com resignação a tragédia climática que o acomete de tempos em tempos. 

A seca e a fé são temas basilares do poema "A triste partida". Este poema de Patativa do Assaré foi musicado por Luiz Gonzaga em 1964, em forma de toada, tornando-se um dos seus maiores sucessos. A seca e a fé surgem já nos primeiros versos:

Passou-se setembro
Cum oitubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nóis?
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz

O poema "A triste partida" apresenta 19 estrofes com oito versos compostos por cinco sílabas poéticas (redondilha menor). Nesta estrofe inicial, percebemos uma imagem poética que se constrói pela recorrência das consoantes fricativas /s/ e /f/ que poderiam sugerir a fluidez do vento - no caso, um vento trágico que parece capaz de arrastar folhas secas e esgalhar árvores. Nesta árida paisagem, o sertanejo nordestino, vitimado pela seca, constata a sua condição existencial e, como único subterfúgio, recorre à religiosidade.

A presença de

CONTINUA...

RESENHA DO ENSAIO: "A CONSAGRAÇÃO DA IMPERTINÊNCIA (MACHADO DE ASSIS, BORGES, GUIMARÃES ROSA E A TEORIA DO CONTO)", DO LIVRO "MACHADO DE ASSIS DESCE AOS INFERNOS"



GOUVEIA, Arturo. A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges, Guimarães Rosa e a teoria do conto). In: GOUVEIA, Arturo e SEVERO, Sulenita (Org.). Machado de Assis desce aos infernos. 2. ed. Coleção Ambiente 4. João Pessoa: Ideia, 2011. p. 11 - 80.


Resultante de pesquisas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, a obra "Machado de Assis desce aos infernos" reúne ensaios que se remetem à contística deste que é considerado um dos maiores expoentes da Literatura Brasileira. Dentre os ensaios que compõem esta obra, tratarei, brevemente, sobre o primeiro deles: "A consagração da impertinência (Machado de Assis, Borges, Guimarães Rosa e a teoria do conto)", do Prof. Dr. Arturo Gouveia.
Neste texto, o ensaísta discorre sobre o fato de que alguns estudiosos, ao tentar teorizar o conto, restringem-se a construir concepções por vezes generalizantes e inadequadas sobre o assunto. Com as variantes que o gênero comporta, determinar as diretrizes que devem nortear a análise do conto pode se caracterizar como um problema. 
Inicialmente, o ensaísta apresenta as incursões teóricas sobre o conto apontadas por Julio Cortázar. Para Cortázar – que sequer concebe seu texto como teoria, uma vez que seu texto trata-se de uma conferência proferida em Cuba com acentuado teor político – sua discussão sobre o tema caracteriza-se apenas como uma tentativa de apontar os aspectos mais recorrentes do gênero conto, e centra-se, nesta perspectiva, muito mais numa abordagem que critica o (p. 14) "realismo ingênuo e de compreensão imediata, instrumentalizado pela revolução".
Após apontar incongruências no discurso de Cortázar, sobretudo no que concerne ao perceptível lirismo com que este trata o tema, o ensaísta afirma que as inferências deste escritor, assim como as de Edgar Allan Poe, "chegaram a constituir escola" e pouco, ou o que é pior, "nada de substancial" acrescentaram à teoria literária.
O autor do ensaio ataca, também, a visão de Anderson Imbert que parte do existencialismo para estipular as concepções que, do ponto de vista deste estudioso, seriam imprescindíveis para a compreensão do conto. Essas concepções seriam "inconvincentes", além de coadunarem com as já repetidas pelos demais teóricos.
As concepções de Massaud Moisés são também discutidas pelo ensaísta que admite considerar válidas algumas delas. Este teórico teria, ao referir-se à estrutura do conto a partir de unidades, utilizado apenas exemplos cabíveis às suas explanações, mas teria deixado de lado outros exemplos que contrariariam suas ideias. Uma das falhas cometidas por esse teórico, segundo o autor deste ensaio, diz respeito ao fato de que sua visão se adéqua à tendência tão comum de alguns teóricos que costumam universalizar "deduções particulares" criando "dogmas" que pouco podem contribuir para a ampliação do conhecimento científico.
Ao longo da discussão, são explanados conceitos como: significação, intensidade e tensão. O autor do ensaio tece críticas a Cortázar desta feita por ele discutir estes conceitos de modo "superficial e insuficiente". Em seguida, o ensaísta elabora uma explanação sobre contos que seriam denominados "atípicos", ou seja, contos que transgridem ao aspecto tradicional das (p. 45) "unidades de tempo, espaço, ação e tom." Neste caso, ele aponta as ideias propostas por Massaud Moisés que enfatiza as unidades em suas incursões sobre a estrutura do gênero.
Contos de autores como Jorge Luís Borges, João Guimarães Rosa e Machado de Assis são utilizados pelo ensaísta como exemplos profícuos na tentativa de refutar os paradigmas estipulados por esses teóricos muitas vezes equivocados em suas afirmações. Inúmeras dessas concepções perderiam a utilidade se fossem utilizadas para analisar, conforme muito bem aponta o ensaísta, para ficarmos apenas com um exemplo, textos cuja narrativa se estabeleceria por meio do fluxo de consciência.
O autor conclui seu texto afirmando que (p. 80) "ou a teoria do conto parte para uma maior operacionalidade de seus princípios, o que requer revisão categórica de suas concepções fechadas, ou corre o risco de tornar-se obsoleta e improdutiva."
O Prof. Dr. Arturo Gouveia realizou, portanto, um trabalho imprescindível para quem pretende compreender como têm se estabelecido na atualidade as tentativas de teorização do conto. Ao longo de suas sessenta e nove páginas, este ensaio traça uma valiosa contribuição sobre o gênero com uma linguagem objetiva, uma acuidade analítica incontestável e uma coerente, e substancial, discussão teórica que poderá redimensionar as discussões sobre o gênero no país.
Arturo Gouveia é Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba, poeta, romancista e ensaísta. Escreveu, dentre outras obras, "O Evangelho segundo Lúcifer" e "Santíssimas Trevas".


Texto de: Émerson Cardoso

domingo, 29 de dezembro de 2013

RESUMO: COMO FAZER UM?



Resumo: consiste em um gênero textual que visa sintetizar principais ideias explanadas por um autor. É essencialmente um texto que deriva de outro texto e tem como objetivo realizar uma exposição sintética e seletiva de um texto específico. 

Segundo Xavier¹ (2012, p. 88), o resumo é "um texto-derivado, só existe em função de um texto-fonte, que tem como finalidade fazer uma exposição seletiva e sintética da proposta central contida em um texto-fonte.

O resumo, para fins acadêmicos, segundo Xavier (ibidem, p. 88 - 89), apresenta sempre a seguinte estrutura: 
  • Objetivos do trabalho;
  • Metodologia utilizada;
  • Teorias que fundamentaram as análises e
  • Resultados alcançados pela pesquisa;
  • Dados quantitativos e/ou qualitativos do texto-fonte.
O resumo, quando realizado acerca de uma obra específica, deve atender a alguns aspectos:
  • A obra deverá ser lida ao menos duas vezes;
  • Na primeira leitura, deverá ser realizado um esboço do texto a ser resumido e deverá ser analisada a estrutura do seu desenvolvimento;
  • Procurar respostas às perguntas: 1 - De que se trata o texto? 2 - O que o autor pretendeu fazer no texto: defender, demonstrar, provar?
  • Na segunda leitura, faz-se necessário observar os seguintes aspectos: 1 - Os argumentos principais, explicações e exemplos usados que dão suporte ao que o autor deseja explanar; 2 - Identificar o estilo de escrita do autor de maneira que seja possível redizer, com seu estilo e palavras, os conteúdos importantes da obra.
¹XAVIER, Antônio Carlos. Como fazer e apresentar trabalhos científicos em eventos acadêmicos. Recife: Editora Rêspel, 2012.


RESUMO DE OBRA LITERÁRIA



AMOR DE PERDIÇÃO, 
DE CAMILO CASTELO BRANCO


As famílias dos namorados Simão Botelho e Teresa de Albuquerque estão, há muito tempo, brigadas e fazem de tudo para separá-los. Simão é mandado para Coimbra. Teresa, para não aceitar a alternativa odiosa de casar-se com o primo Baltazar Coutinho, ingressa num convento.
         A parte trágica deste romance começa quando Simão vai procurar a amada no convento e fere mortalmente o seu rival. Condenado, Simão tem de rumar para o exílio. Quando o navio começa a largar, Simão ainda avista a amada de longe, e a cena em que Teresa lhe acena com o lencinho, do convento de Monchique, é uma das mais permanentes em toda história da novela amorosa.
         Trata-se de um romance de explosão passional, em que a razão se mostra frágil e incapaz de relativizar os eventos ou amenizá-los. Este caráter passional da intriga camiliana não deixa de lado nem mesmo Mariana, que depositara em Simão um terno e resignado amor. Pois na hora em que o corpo do herói é jogado no mar, Mariana opta por morrer junto do amado, agarrando-se ao cadáver de Simão.
           A ação da obra gira em torno da invencibilidade da paixão de Simão e Teresa. O tempo da narrativa é cronológico, ou seja, há uma sucessão de eventos que ocorrem em datas específicas. A forma é linear, pois o autor escrevia em 1861 um drama vivido em 1801. A narrativa situa-se no início do século XIX, quando houve o início da consolidação da sociedade romântico-liberal. O tempo passado lhe dá maior liberdade no discurso. O espaço é caracterizado pelo ambiente social (sociedade provinciana que viveu na região da Beira-alta) e age na narrativa, intensificando os obstáculos que se levantam contra o amor de Simão e Teresa. Referindo-se aos personagens, podemos dividi-los em: fidalgos jovens, (nobreza de caráter), fidalgos adultos e religiosos (arrogantes, soberbos) e plebeus jovens ou adultos (nobreza de caráter, bondade). O aprofundamento psicológico é ausente nas personagens, pois o objetivo principal do autor é colocar em evidência apenas as ações, por vezes viscerais, destas.
           Dentre as personagens, destacam-se: Simão Antônio Botelho, herói romântico e de extremismos emocionais (tentativa de rapto, que gera mortes e, consequentemente, seu fim trágico); Teresa, a heroína romântica; Mariana, a amante silenciosa e resignada (ideal romântico); João da Cruz, o camponês rústico, protetor de Simão; Baltasar Coutinho, o burguês interesseiro, sem moral; Tadeu de Albuquerque, o pai autoritário, que, por uma rivalidade particular, impede a felicidade da filha com Simão.

OLIVEIRA, Lídia Maria de. Literatura Portuguesa. In: Módulo do ensino integrado. São Paulo: DCL, 2002. p. 85 - 86.


RESUMO DE ARTIGO CIENTÍFICO:


QUANDO UM ABISMO SE ABRE OU UM GRITO NA QUEDA: 
ANÁLISE DO CONTO A CONFISSÃO DE LEONTINA, DE LYGIA FAGUNDES TELLES

                                               CÍCERO ÉMERSON DO NASCIMENTO CARDOSO

RESUMO:

Este trabalho discorre sobre as possibilidades interpretativas do conto A confissão de Leontina, de Lygia Fagundes Telles. Com foco narrativo em primeira pessoa, este conto apresenta o discurso desesperado de uma prisioneira acusada de assassinato e que decide expor os fatos que a conduziram à prisão. Por ser narrado com forte fluxo de consciência da personagem narradora, este tipo de conto nem sempre se enquadra nas definições mais tradicionais expressas por certos teóricos. Este trabalho, portanto, além de colocar em pauta uma abordagem sobre o sujeito feminino, discorre também sobre discussões de caráter conceitual acerca do conto cujas abordagens teóricas têm se mostrado ainda não definitivas.


PALAVRAS-CHAVE: Lygia Fagundes Telles; Conto; Sujeito Feminino.

sábado, 28 de dezembro de 2013

ROMANTISMO EM PORTUGAL - UM RESUMO

"Zé Povinho", de Rafael Bordalo Pinheiro

MOMENTO SOCIOCULTURAL:

  • Revolução Industrial;
  • Revolução Francesa (1789);
  • Ascensão da burguesia ao poder, liberalismo, individualismo, nacionalismo;
  • Consolidação do sistema capitalista.

CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS:

  • A literatura procura a libertação das formas clássicas e a explosão da subjetividade: predomínio da emoção sobre a razão, ênfase na imaginação criadora, espírito libertário, nacionalismo, religiosidade;
  • O artista como criador, um "gênio inspirado" (valorização da imaginação);
  • O fim da proteção oficial às artes (mecenato) e a transformação da arte em mercadoria: necessidade de formar e conquistar um público-leitor, surgimento do romance (folhetim).

AUTORES E OBRAS:

  • Almeida Garrett (associa elementos românticos e neoclássicos): "Camões" (poesia), "Frei Luís de Sousa" (teatro), "Viagens na Minha Terra" (romance);
  • Alexandre Herculano (romances históricos): "Eurico, o Presbítero" e "Lendas e Narrativas";
  • Camilo Castelo Branco (técnica de folhetim, transição para o Realismo): "Amor de perdição", "Amor de Salvação" e "Coração, cabeça e estômago" (obra satírica);
  • Julio Diniz (afasta-se do ultrarromantismo e aproxima-se do Realismo): "As Pupilas do Senhor Reitor.

NOTAS SOBRE O ROMANTISMO EM PORTUGAL:

O Romantismo foi um movimento artístico que teve seu início em meados do século XVIII, estendendo-se até metade do século XIX. O tema central dessa estética foi a liberdade do indivíduo em relação ao poder dominante da aristocracia. Com isso, externa-se a emoção e o sentimentalismo. Os românticos buscam uma arte individualista, em que o "eu" torna-se o centro de tudo. 

O nacionalismo, o sentimentalismo, o subjetivismo e o irracionalismo são características marcantes do Romantismo inicial. O Romantismo busca explicar o nacionalismo e a valorização do passado, voltando-se ao amor medieval, que passa a ser o tema de grandes romances e poemas. 

Em Portugal, Almeida Garret inaugurou o movimento com o poema "Camões", em 1825. Os primeiros anos do Romantismo em Portugal coincidem com as lutas civis entre liberais e conservadores, acirradas por uma guerra que durou dois anos. 

O Romantismo português é dividido em três categorias:
  • Primeira Geração: permanecem alguns valores neoclássicos.
  • Segunda Geração: é o chamado ultrarromantismo, em que as características românticas são levadas ao exagero.
  • Terceira Geração: é a transição para o Realismo.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

RESENHA CRÍTICA: "JANELAS DO BRASIL", DE AMELINHA


Misture uma voz inexcedível a composições de grandes nomes da Música Popular Brasileira e o resultado não poderá ser outro: "Janelas do Brasil", da cantora Amelinha. Posso afirmar, sem medo de cometer exageros, que este foi um dos mais singelos, reconfortantes e maduros trabalhos que a cantora realizou em sua extensa carreira.  
         Produzido pela gravadora "Joia Moderna", em 2011, este cd apresenta doze canções que Amelinha interpreta com intensidade, introspecção e enternecimento. Com esta obra, elogiada pela crítica e pelo público, Amelinha mostrou o quanto sua voz continua comovente e expressiva. Marcam este trabalho: seu timbre forte/sutil, que se mostra saudosista ao retomar canções dos seus companheiros cearenses Belchior, Fagner e Ednardo; o tom intimista advindo de canções como as concebidas por Zeca Baleiro, Marília Medalha, Vinicius de Moraes e a ressignificação da canção de Marcelo Jeneci e Chico César.
         A primeira faixa já dá demonstrações de que o repertório foi bem escolhido: "Galos, noites e quintais", de Belchior. Em seguida, "O silêncio", de Zeca Baleiro - sem dúvidas é uma das mais belas canções que compõem este trabalho. Seguem outras canções impecáveis: "Asa partida", de Fagner e Abel Silva, "Felicidade", de Marcelo Jeneci e Chico César, "Terral" (canção-símbolo do lirismo das terras cearenses), de Ednardo, "Planície de prata", de Almir Sater e Paulo Simões, "Quando fugias de mim", de Alceu Valença e Emmanoel Cavalcanti, "Algum lugar", Vinicius de Moraes e Marília Medalha, "É necessário", de Geraldo Espíndola, "Ponta do Seixas", de Cátia de França, "Olhos profundos", de Renato Teixeira, e "Pra seguir um violeiro", de Amaro Penna. 
       A voz de Amelinha encanta, comove, cria espirais e adentra os recônditos da alma de quem a contempla em sua beleza e intensidade. A sensação que se tem ao ouvi-la é a de que a arte, em todo o seu esplendor, alcança grandezas indescritíveis porque nela se materializa, se concretiza, se personifica. 
          Com a repercussão deste cd, Amelinha, com uma produção que soube valorizar seu talento, produziu um dvd - o primeiro de sua carreira - em que, além das canções presentes em seu cd, ela acrescentou canções marcantes de seus discos anteriores e outras canções já consagradas no cancioneiro nacional.
          Nascida em Fortaleza - CE, em 21 de julho de 1950, Amélia Cláudia Garcia Collares, nossa eterna Amelinha, é uma das mais importantes cantoras do país e possui um timbre que a torna peculiar em nossa Música Popular Brasileira. Representante maior do Ceará, Amelinha representa bem mais do que o nome que ela conseguiu firmar com seu indescritível talento, ela representa a simplicidade, a grandeza de espírito e a força interior que o Nordeste costuma espargir como dádiva ao Brasil que, por suas imensas obscuridades sociopolíticas e socioeconômicas, torna seu povo desejoso de arte para que, assim, haja ânimo para a resistência e para as lutas diárias.   
         A janela que Amelinha abre, por meio de seu talento, dá-nos uma sensação de leveza e esperança: que muitas canções esta mulher espiritualizada atire sobre nós, seus eternos admiradores.

Texto de: Émerson Cardoso

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

EXERCÍCIO DE INTERPRETAÇÃO TEXTUAL: SONETO "FRIEZA", DE FLORBELA ESPANCA

Florbela Espanca

Florbela aniversariou no último dia 08 de dezembro. Então, ainda como forma de homenageá-la por ocasião do seu aniversário, abaixo apresento um dos seus mais lindos sonetos. Este soneto foi musicado pelo cantor e compositor Fagner e a cantora Amelinha, com sua voz majestosa, a interpretou.  
Em seguida, apresentarei uma dica para quem pretende realizar, em sala de aula, uma análise não muito ampla deste soneto que, do meu ponto de vista, pode ser tranquilamente utilizado numa aula de interpretação textual, de turmas de Ensino Médio.  
Portanto, com a preocupação - enfatize-se - de ser objetivo ao analisar textos literários, eu costumo pedir que os alunos atentem para tópicos em que estes poderão apontar alguns elementos que constam no texto em análise. A intenção não é restringir o texto literário criando uma "fórmula" para a analisá-lo - o que seria patético e restritivo -, a intenção, em verdade, é motivar o aluno a desenvolver, a partir de leituras inicialmente simplórias, leituras mais amplas à medida que a familiaridade se estabeleça com relação ao texto e suas estruturas. Desenvolvo, portanto, o seguinte método de análise: 
                                       

Frieza

Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo ouro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

E tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
“Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim!...”

(Florbela Espanca)

1 - Autor: Nascida em 08 de dezembro de 1894, Florbela de Alma da Conceição Espanca foi um dos principais nomes do Modernismo em Portugal. Embora não tenha participado da Revista Orpheu, marco maior da Literatura Modernista neste país, Florbela Espanca se enquadra como um nome importante surgido no início das visões modernas que perpassavam a Literatura Portuguesa do início do século XX. Tendo uma vida agitada, do ponto de vista dos conflitos amorosos que viveu, deparou-se desde cedo com inúmeros percalços existenciais que foram transpostos para sua produção literária. Dentre as características de sua obra, podemos apontar: o intenso lirismo, o desespero mediante amores não consolidados, a busca por um amor que torna o eu lírico um ser em conflito com a realidade prática, imagens metafóricas de excessiva beleza, construções clássicas – é uma sonetista vigorosa – e erotismo e sensualidade em inúmeros textos, além de uma sensação dolorosa da existência que causa várias especulações acerca da própria condição do ser.
  
2 - Relação entre Título & Texto: O título Frieza traz componentes semânticos que muito nos auxiliariam para melhor compreendê-lo: remete-nos, literalmente, ao fato de que o ser humano, de acordo com sua condição térmica (já que é um animal que conserva sua temperatura independente do âmbito em que esteja inserido), sofre com a diminuição da temperatura, sente a sensação de frio em decorrência da ausência de calor; por outro lado, e este elemento nos parece mais importante para nossa análise, o vocábulo Frieza, fora do seu sentido comum, se remete à ideia de indiferença, descaso, irrelevância que um indivíduo, por algum motivo, procura atribuir a outrem. Desse modo, o título está direta e indiretamente vinculado à estrutura do texto, pois este apresenta um eu lírico que acusa o seu interlocutor de ser indiferente, de agir com frieza, com descaso, desprezo sem considerar sua demonstração de amor. O eu lírico parece olhar para o ser a quem devota seus sentimentos e afirma: “Seus olhos são frios como as espadas”. Em seguida, como para não se sentir subjugado de todo, ele atira sobre o ser amado uma tentativa de altivez, desprezo e suposta arrogância que, em verdade, reforça sua sensação de submissão amorosa: “Mas não te invejo, Amor, essa indiferença / Que viver neste mundo sem amar / É pior que ser cego de nascença”.

3 - Gênero Textual: O texto apresentado faz parte do gênero lírico, é exemplo de um soneto, texto poético formado por dois quartetos e dois tercetos. Neste caso, os versos são formados por dez sílabas poéticas (decassílabos).

4 - Estrutura superficial do texto: É possível perceber o tipo de rima que o texto apresenta: rimas interpoladas nas duas primeiras estrofes /ABBA/. Nas duas estrofes introdutórias, percebe-se a recorrência da consoante /s/ que sugere a fluidez de facas afiadas sibilando enquanto cortam o ar e, ao mesmo tempo, cortando a alma de um eu lírico indignado por sentir-se preterido. Percebe-se, ainda, a recorrência de sons nasais sugestivos do tom melancólico constante no poema. Outro ponto que não pode passar despercebido é o uso exaustivo de adjetivos no texto, com isso o poema adquire cunho descritivo apresentado por um ângulo de visão atribuidor de valores e que explora a expressividade das sensações que experimenta. Há, ainda, inúmeras conjunções aditivas que podem sugerir a necessidade de afirmar com veemência o discurso apresentado adicionando um argumento ao outro na urgência de expressar o que sente – como se dissesse, num fôlego só, o que tem para dizer, de modo irascível.   

5 - Temática abordada: O poema Frieza apresenta o resultado de uma declaração de amor proferida por um eu lírico inconformado.
Este eu lírico feminino – trata-se de um eu lírico feminino porque o texto nos dá pistas para que façamos esta afirmação – declara seu amor por um homem e, como resposta para a exposição de seus sentimentos, depara-se com a indiferença do ser amado que parece não saber – ou querer – amar este eu lírico com a mesma intensidade com que ele o ama.
O eu lírico passa a estabelecer comparações entre o modo de olhar do interlocutor e a frieza e violência de metais cortantes. Após externar seu rancor, o eu lírico passa a expressar um mecanismo de fuga caracterizado como projeção, ou seja, ele atribui ao interlocutor as sensações que ele mesmo vivencia, numa empatia às avessas.
Ao ser preterido, o eu lírico tenta manter-se em sua altivez e afirma que “viver neste mundo sem amar / é pior que ser cego de nascença”. Logo em seguida, ainda projetando no ser amado aquilo que ele vivencia, o eu lírico afirma, numa tentativa de sentir-se superior quando, em verdade, sentia-se inferiorizado ante o preterimento, que seu amado “inveja a dor” que nele “vive”. Com o rancor típico dos que se sentem humilhados e inferiorizados, o eu lírico roga contra seu interlocutor uma espécie de praga: “Quanta vez dirás a soluçar / Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim.”
O eu lírico passa por vários processos na expressão dos seus sentimentos: ele ama e confessa seu amor; sente-se enganado, preterido e, para não se sentir subjugado ante os sentimentos que experimenta, atribui falhas ao ser amado que, por ser acusado de não saber amar, assim como ele o faz, sequer mereceria qualquer demonstração de afeto.
Dentre as temáticas encontradas no texto, podemos destacar: o amor não correspondido, a frieza das relações afetivas, a dificuldade vivida por algumas pessoas que não conseguem estabelecer relacionamentos afetivos verdadeiros e sem conflitos, o orgulho ferido, a sensação de inferioridade que o preterimento pode causar num indivíduo.


Émerson Cardoso

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: COMO FAZER UM?


O fichamento é um método de armazenamento, controle e consulta de informações sobre livros ou documentos através da elaboração de fichas, com conteúdo que facilita o estudo e a aprendizagem. Utiliza-se da mesma técnica típica do resumo e da resenha para a elaboração de seu conteúdo. Os fichamentos podem ser: de transcrição ou citação, de resumo ou conteúdo e de comentário ou crítico. Como distinguir cada um deles?
FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO OU DE CITAÇÃO
É aquele em que se passará o texto de um livro lido fidedignamente para a ficha. Com o uso de aspas no início e no final, para indicar a autoria, este tipo de fichamento destaca os trechos mais relevantes de uma obra. Cada trecho deve aparecer de modo sistematizado, resumido e com o número da página do trecho que foi transcrito para que as informações nele contidas sejam localizadas com facilidade.  
FICHAMENTO DE RESUMO OU CONTEÚDO
É aquele que traz a compilação das ideias de um autor, ou seja, dos assuntos principais abordados no livro ou documento. Utiliza as mesmas recomendações da elaboração de um resumo.
FICHAMENTO DE COMENTÁRIO OU CRÍTICO
É aquele que realiza uma avaliação completa do livro ou documento em todos os seus aspectos, principalmente nos assuntos principais levando em consideração a opinião de quem elabora a ficha. Lembra a estrutura de uma resenha.  

EXEMPLO DE UM FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO 
OU CITAÇÃO

Fernão Pessoa Ramos é autor do artigo
 "Cinema e Realidade" fichado abaixo

RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema e Realidade. In: XAVIER, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
    
1 – "A imagem CINEMATOGRÁFICA e a mediação da câmera inauguram uma forma imagética que pode ser singularizada. Esta singularidade deve ser contraposta à visão gradualista de sua evolução, muito em voga hoje em dia. (p. 141)
1.1 – A especificidade da cinematografia surge em proximidade para com outras imagens-câmera, inclusive a videográfica, em relação às quais as semelhanças que as aproximam são bem mais densas do que os detalhes técnicos que as distanciam.
1.2 – Trata-se de imagens que têm por base a mediação de uma máquina com evidentes traços comuns (a câmera), constituindo-se em uma situação de mundo que denominamos tomada, a partir da marca, do índice, dessa circunstância em um suporte  e manipulação.
1.3 – No caso da imagem móvel o suporte movimenta-se ritmicamente no aparelho, com breves e sucessivas paradas.
1.4 – No âmago de sua natureza localizamos o binômio tempo por movimento, binômio que Deleuze em seus livros dedica-se a estirpar através da interposição de uma forte camada estilística (o cinema moderno).
1.5 – Já no século XIX existem diversas máquinas que reproduzem o movimento, inicialmente utilizando-se de aparelhos múltiplos de fotografia como nas conhecidas experiências de Edward Muybridge ou através de um só aparelho como no “fuzil fotográfico” de Étienne Marey.
1.6 – Estas tentativas são seguidas, já em 1882, do registro dos movimentos em suportes fixos, através de procedimentos que, incluindo no objeto  fotografado, permitem a sobreposição de várias tomadas na  mesma  chapa   sem  que o registro seja o traço borrado  do movimento, característico de sua impressão fotográfica.  Para tal, são utilizados objetos claros em contraste com o obrigatório fundo negro, onde diversas posições do movimento do objeto fotografado podem ser sobrepostas sem velar o negativo. (p. 142)
1.7 – Trata-se da câmera cronofotográfica que Marey e seu auxiliar Georges Demeny desenvolvem na recém-inaugurada Estação Fisiológica, em Paris, onde trabalham com experiências científicas diversas, registrando movimento.
1.8 – A partir de 1888, com a introdução do suporte móvel no registro e, principalmente, a partir de 1890 com o suporte celulóide (sic) e a câmera cronofotográfica à película, já existe um nível de definição bastante satisfatório na apreensão fotográfica de movimentos diversos [...] seguido da projeção do mesmo movimento, em 1891, com o projetor cronofotográfico. As filmagens realizadas por Georges Demeny, no início dos anos 1890, são efetivamente impressionantes pela nitidez na reprodução do movimento.
1.9 – Thomas Edison apresenta uma primeira versão do quinetoscópio (visor individual de imagens móveis), que só seria explorado comercialmente em 1894 com a construção de um estúdio, o Black Maria, para captação de imagens. A câmera do quinetoscópio, chamada de quinetógrafo, era pouco ágil e muito grande, necessitando de condições especiais para seu aproveitamento pleno, geralmente, ambientes fechados.  (p. 142)
2 – A singularidade da imagem cinematográfica, tomando-se por base o ano de 1895 e a máquina Lumière, não localiza-se (sic), portanto, na questão da reprodução do movimento fotográfico  mas na conjunção de uma série de fatores estéticos e econômicos que delineiam, de maneira espantosamente precisa, os futuros contornos imagéticos da reprodução e da exploração da representação do movimento em sua duração.  (p. 142)
2.1 – A historiografia tradicional localiza na projeção ampliada da imagem a principal deficiência do quinetoscópio  que teria sido vencida pelo cinematógrafo Lumière.
2.2 – Mais do que a projeção da imagem em sessão paga (que os irmãos Max e Emile Skladonowsky, entre outros pioneiros menos documentados, já haviam realizado na Alemanha em 1º de novembro de 1895), talvez possamos localizar o salto qualitativo da imagem móvel cinematográfica em outro degrau.
2.3 – Ao operacionalizar projetor e câmera em um mesmo pequeno e portátil aparelho os irmãos Lumière não só compuseram a fruição que seria a do espectador cinematográfico durante décadas [...], mas permitiram igualmente que a máquina-câmera tivesse condições para ocupar o lugar que seria o seu dali em diante: solta e imiscuída no mundo, extraindo do espetáculo a interação com o que lhe é exterior, sua primeira fonte de atração.
2.4 – Mais do que inventores de algo indefinido chamado cinema, Louis Lumière e seus operadores talvez tenham sido os primeiros cineastas, os primeiros fotógrafos do movimento, explorando com incrível agilidade as potencialidades estéticas da imagem-câmera produtora de imagem móvel e inaugurando um padrão imagético: movimento em profundidade de campo, primeiros planos, entrada e saída de campo e, mais do que tudo, um enquadramento refinado. (p. 143)
2.5 – Estes procedimentos fazem com que A Chegada do Trem na Estação de Ciotat seja pioneiro, não do cinema como nova imagem (o que efetivamente não foi, tendo sido produzido, provavelmente, já em 1896), mas pioneiro de uma estilística da imagem que já explora com agilidade as principais potencialidades estéticas proporcionadas pelo movimento com relação ao quadro em que se insere. Nas imagens Lumière encontramos finalmente as condições técnicas para a expressão do fascínio do movimento do mundo, já com o peso pleno de sua abertura para a indeterminação do transcorrer. O que surge na tela para os espantados espectadores é aquilo que nunca se viu antes, naquela forma: rolos de fumaça, grandes massas em movimento, velocidade, carros, transeuntes, ruas habitadas, faces e expressões familiares, paisagens remotas e insólitas, e mais do que tudo, movimento, o gosto pelo espanto provocado pelas formas inauditas do movimento.
2.6 – O que irá atrair o espectador não será apenas a imagem fotográfica deste mundo dotado de movimento mas os efeitos sensacionais deste movimento manipulado. Em outras palavras, a principal atração, neste primeiro momento, parece ser as potencialidades da câmera na reprodução e na variação do movimento daquilo que lhe foi exterior.
3 – É nesse quadro que podemos delinear a singularidade da imagem cinematográfica no campo imagético, em continuidade com outras imagens-câmera: dentro da abertura (que é a abertura da lente expondo o suporte) para as formas da vida e sua duração, conforme são experimentadas pelo sujeito, a partir de seu corpo, em interação com a exterioridade a que chamamos mundo. Abertura esta que se dá a partir de uma imagem que possui fortes traços analógicos, com evidentes similaridades, no contorno de suas formas, para com imagens especulares. Esta imagem, que imprecisamente denominamos cinematográfica, deve ser entendida como determinada em suas particularidades estruturais pela máquina através da qual é produzida (a câmera), em interação com a máquina que a veicula (o projetor ou aparelho exibido), evidentemente a partir do estilo criativo dos sujeitos que manipulam esta matéria-prima. (p. 144)
3.1 – Cinema é um denominação imprecisa pois restringe-se à forma fílmica (imagens, com estatuto ficcional ou não, exploradas através de uma disposição narrativa com um padrão predeterminado de duração), não tematizando as potencialidades da imagem-câmera que devemos pensar a imagem-câmera fílmica, pois muito de suas potencialidades advêm estruturalmente do material mesmo que a constitui. Em outras palavras, advêm da maneira através da qual a mediação da câmera conforma seus traços.
3.2 – Uma característica própria a esta imagem é, neste sentido, a constituição em bloco dos traços da imagem (o espaço do instante configurado em todos os seus elementos conjuntamente, em cada simultaneidade), a partir de uma situação de mundo, anterior ou simultânea à exibição, situação esta que denominamos tomada.
4 – Esses elementos são decorrência da natureza mais íntima da máquina que compõe a imagem-câmera e farão com que o cinema sinta em relação às artes modernas a conformação pictórica dominante no século XX, um nítido complexo de inferioridade. (p. 144)
4.1 – Complexo sobre o qual debatem-se (sic) a quase totalidade dos teóricos do cinema mudo ao tentarem afirmar o cinema como arte “pura” (e não como imitação da natureza), atacando, simultaneamente, a questão da especificidade (cinema não é teatro, não é literatura, etc.) e da semelhança surpreendente entre o automatismo na conformação da imagem-câmera e as formas reflexas, conforme emergem no mundo.
4.2 – A teoria do cinema francesa e americana dos anos 60 / 70 contém um misto de condenação “ontológica” de deficiências ideológicas da representação inerentes à natureza da imagem-câmera móvel, junto à esperança (e uma tábua normativa) de que procedimentos estilísticos possam contornar esta natureza da conformação câmera, em si mesma condenável. (p. 145)
4.3 – Entre os elementos expostos à forte condenação ideológica estão: a afirmação de uma noção de sujeito centrado e pontual que vem se conformar a partir de um ponto de vista privilegiado; a transparência do discurso, que esta imagem permite, acentuando a reificação da dimensão referencial da tomada; a negação da ênfase na reflexividade e na espessura do trabalho da representação que surge como inerente ao “dispositivo” cinematográfico; o fechamento quase-objetivo do universo representado que aparece constituído para além da incidência subjetiva em sua conformação, etc.
4.4 – Esse choque da consciência moderna com os traços [...] da forma câmera é antigo, podendo ser remontado aos vitupérios de Baudelaire, em meados do século XIX, contra a imagem fotográfica, sua forma perspectiva e a potencialidade de trazer o traço analógico do mundo como marca.
4.5 – [...] Esta conformação imagética, perspectiva e analógica, ironicamente destoa, em sua natureza mais íntima, do quadro ideológico que irá dominar a segunda metade do século XX e que se constitui a partir de um questionamento radical do sujeito todo-poderoso, seja como foco cognitivo exponenciando sua racionalidade, seja como ponto de vista a partir do qual a representação do mundo poderá se efetivar.
4.6 – A inserção da reflexão sobre a imagem cinematográfica no pensamento dominante de sua época (inserção que ocorre plenamente a partir dos anos 60-70, em particular dentro do chamado pós-estruturalismo francês, desembocando nas abrangentes análises deleuzianas dos anos 80), faz com que, muitas vezes, traços estruturais dessa imagem não possam ser tematizados com a abrangência e a relevância que lhe são devidos. (p. 145)
5 – O que Barthes busca [...] é foto que [...] seja não somente uma imagem qualquer mas “uma imagem justa”, a verdadeira, imagem que constitua e suscite não apenas a identidade da mãe mas sua verdade. Em suas palavras, “a ciência impossível do ser único”. Ser único, singularidade, que, para Barthes, somente a fotografia pode compor através da identidade e onde, pela dimensão do punctum, experiência pessoal do referente, vem delimitar a dimensão da verdade. (p. 146)
5.1 – É nessa conjunção entre experiência pessoal própria da figura da mãe e sua inserção naquilo que é particular à imagem fotográfica, que Barthes define o noema da fotografia como isso foi ou ainda é o que chama de intratável. (p. 147)
6 – Em artigo do início de sua carreira no qual aborda a imagem cinematográfica, Merleau-Ponty define com bastante precisão a inserção singular da câmera no mundo e suas consequências para a composição imagética: “uma boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste na admiração dessa inerência do eu ao mundo  e ao próximo, em nos descrever esse paradoxo e essa desordem, em nos fazer ver o elo entre o indivíduo e o universo, entre o indivíduo e seus semelhantes [...]. Pois o cinema está particularmente apto a tornar manifesta a união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo, e a expressão de um dentro do outro.” (p. 147)
6.1 – Essa característica do que Merleau-Ponty chama “cinema”, de aderir ao transcorrer da duração em que o sujeito está imerso, leva a que a identificação sujeito-câmera (identificação aproximativa certamente, e que se concretiza no campo da fruição do espectador) se aproxime das condições de percepção que são próprios da sensação de vida. E é essa proximidade da imagem-câmera em movimento com as condições de percepção do sujeito em sua inerência ao mundo e sua abertura a outrem que irá permitir ao espectador fundar sua fruição em torno da noção de presença da câmera no campo da tomada.
6.2 – É esta mesma inerência ao transcorrer e à sensação do sujeito desse transcorrer como duração que irá fazer com que a imagem-câmera em movimento, em sua tradição cinematográfica, seja pensada, dentro do corte fenomenológico, como “imagem do presente”, ou, em outro corte teórico (Deleuze), como “imagem qualquer”.
7 – Albert Laffay [...] define o cinema como a arte do presente, na medida desta aderência da câmera ao transcorrer, em sua abertura para a causalidade e o indeterminado, próprios à forma do acontecer na franja da consecução temporal. Noção de presente na qual está necessariamente embutida a dimensão da presença, aí fundadora daquilo que pode ser definido como simultaneidade do ser à duração, a sobredeterminando. (p. 148)
7.1 – No entanto, Laffay irá opor ao cinema como presente, como mundo, como aderência ao transcorrer, o que ele chama de grande mostrador. Conceito caro a uma das mais fortes correntes contemporâneas da análise cinematográfica, a narratologia, o grande mostrador, é, segundo as palavras de Laffay, o “mestre de cerimônias” que vira as páginas da narrativa cinematográfica, a instância narrativa que assume a mostração das imagens através da câmera. Um dos maiores obstáculos ao trabalho de Laffay é a sobreposição conceitual entre a forma particular cinema narrativo e a imagem-câmera pensada em sua generalidade.
7.2 – Para fugir da amarração conceitual do termo cinema e dar à reflexão de ambos uma dimensão mais ampla, podemos trabalhar essa interessante ideia do cinema como arte do presente, frisando-a como característica própria à imagem-câmera móvel, entendida em sua aderência ao transcorrer, para, em seguida, analisar em que medida a tradição fílmica irá trabalhar e manipular estilisticamente as imagens a partir dessas potencialidades.
7.3 – A definição do cinema como arte do presente contém para Laffay uma dicotomia que faz com que a ideia a ele atribuída, do cinema como “eterno presente” possa ser vista como simplista. É na contradição entre “presente” e indeterminação, acaso (da imagem) e “arte” / relato (do cinema) que irá se constituir o que conceitualiza como os “dois polos do cinema”. (p. 149)
8 – Pier Paolo Pasolini distingue de um modo mais definido imagem em movimento e cinema, o que o leva a evitar algumas das confusões que Laffay vê-se enredado ao tematizar as potencialidades da imagem-câmera ao transcorrer, à duração. (p. 149)
8.1 – Para Pasolini, o conceito de cinema adquire uma consciência particular ao ser oposto à noção de morte, que é identificada ao filme propriamente dito. Especialmente atraído pela dimensão cinema da imagem, pela tomada em sua adesão plena ao transcorrer, Pasolini possui belos trechos escritos onde analisa o cinema de vanguarda americano dos anos 60, e a tendência de alguns diretores em trabalhar com planos longuíssimos.
8.2 – Contra o cinema eleva-se então o filme, que “mata” através do corte, da montagem, dissipando a presença que se abre para o indeterminado sempre renovado e presente, do mesmo modo que para o sucessivo uniforme. O filme é a morte e o sentido, corte do plano-sequência infinito que dá significância à abertura inconclusa. Esta, enquanto permanece aberta, como cinema, é indeterminada e insignificante.
8.3 – Fazer cinema (e não filme), diz o diretor em uma definição particularmente inspirada, “é escrever sobre papel que queima.” A morte no fechamento da abertura do cinema ilumina retrospectivamente o plano-sequência, agora finito, fazendo com que “a linguagem da ação” possa fechar-se sobre si mesma compondo significância.
8.4 – Morrer, então, para o autor, “é absolutamente necessário, pois, enquanto estivermos vivos nos falta sentido”, a morte “compõe uma montagem fulgurante de nossa vida [...] e é graças a ela que nossa vida pode servir para nos exprimir”. Na relação entre cinema e filme, para Pasolini, está contida a abertura infinita da imagem-câmera para o presente e o sentimento trágico da finitude da vida, ao qual, como consolação, corresponde o corte de significado. Entre sentido e vida o cinema é, no limite, uma experiência impossível. É na contraposição desta impossibilidade que Pasolini intui tragicamente a dimensão do “seu” plano-sequência, e a maneira brusca e cristalizadora pela qual o findou. (p. 150)
9 – A potencialidade da imagem-câmera em aderir ao transcorrer pode ser compreendida em toda sua dimensão ao adicionarmos, à forma particular de inserção da câmera no mundo, a aparência com traços especulares de sua forma. É ela que faz com que sejam transferidas intuitivamente para a imagem-câmera potencialidades de designação referencial próprias à imagem reflexiva. Há todo um pensamento que tematiza o cinema sob o impacto dessa proximidade. (p. 150)
9.1 – [...] Para alguns dos chamados “impressionistas franceses” essa disposição particular dos traços da imagem-câmera, aliada à sua inserção no transcorrer, faz com que o mundo surja transfigurado, exponenciando uma intensidade. Para designar esta intensidade, Jean Epstein dizia que o cinema é como um vulcão. Imagem por excelência adequada para designar o vibrar da natureza que surge transfigurada na imagem, caracterizando a novidade que apresenta para a sensibilidade estética da época.
9.2 – Louis Delluc cunha o termo fotogenia para designar o efeito da intensidade: deslumbre, frisson, espanto. [...] Animismo e fotogenia são elementos centrais dessa nova representação do mundo. (p. 150)
10 – Anos mais tarde, Edgar Morin, em “Le Cinéma ou L’Homme Imaginaire”, irá descrever com outra ênfase essas potencialidades. Nos anos 50, toda uma tradição crítica forma-se pensando essa questão da grande alma do mundo na transfiguração da imagem- câmera. (p. 151)
11 – A manipulação das formas com aparência especular, que havia detonado o já mencionado animismo na vanguarda dos anos 20, surge então aqui dentro de uma temática que tem o cristianismo no horizonte e que lida com a produção de Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini, Robert Bresson e Carl Dreyer. É assim que Rohmer pode afirmar que “talvez por ser, entre as artes da imitação, o mais rudimentar, o mais próximo da reprodução mecânica, o cinema pode apreender mais detidamente a essência metafísica do homem e do mundo.” (p. 53)
12 – Essas potencialidades singulares da imagem-câmera adquirem relevo particular quando, à intensidade animista, vêm se sobrepor a dimensão do extraordinário. (p. 153)
13 – Tematizando esta particular intensidade da imagem-câmera dois autores da geração “anos 60” do Cahiers du cinéma, Pascal Bonitzer e Serge Daney, publicam, em março de 1972, artigo intitulado “L’Écrau du Fantasme”. [...] O artigo problematiza [...] a dimensão traumática aberta pelo trago imagético que a presença da câmera na circunstância da tomada determina.  (p. 155)
13.1 – Abordando um tema ao qual retornará outras vezes Bonitzer define de maneira crítica o que chama de paradigma da fera, “uma das metáforas mais radicais do real”. Presente no núcleo da sensibilidade baziniana, este paradigma determina uma estética que é antes de tudo uma ética da imagem em face da circunstância da tomada. Pode ser definida no paradoxo que impõe um limite à conformação da imagem-câmera traumática: “foi a câmera que ‘devorou’ a fera, mas poderia ter sido o contrário, a fera poderia ter devorado o câmera e o diretor”. Neste intervalo, ou na ameaça de sua concretização, situa-se a fruição do espectador. Seu fantasma, continua Bonitzer, “é ser o diretor; é ele que flui o Aufhebung [preservar ou elevar / movimento de transformação que acontece no fluxo temporal: grifo meu] desta luta mortal.”
13.2 – Metáfora da presença na circunstância da tomada e de seu traço na imagem, traz em si efeito amplo. De um lado traz o frisson: por exemplo, a comicidade da unidade espacial, a “marca” da fera, Chaplin e o leão na jaula. De outro, o dilema que traz seu limite, a imagem impossível: o selvagem cortador de cabeças que deixa de ser selvagem se não corta a cabeça do operador da câmera.
13.3 – Entre os dois delineia-se a posição do espectador (as fronteiras do campo onde pode manter sua posição espectorial) e uma ética da imagem. (p. 155)
14 – Em um texto já bem posterior, publicado nos anos 80, Bonitzer volta a utilizar um termo [...] cunhado por André Bazin para trabalhar com este paradoxo: o complexo de Nero. (p. 155)
14.1Definidor da fruição estética da imagem traumática, da imagem que dilata a máximo o “grau do real”, “excedendo toda figuração”, o complexo de Nero remete-nos à voracidade do espectador face a uma imagem onde “não basta mais caçar o leão, se ele não come os caçadores”, ou, em última instância, se não come a câmera. (p. 156)
15 – A intensidade baziniana da imagem, e o relacionamento privilegiado que o crítico mantém com este tipo imagético, só podem ser compreendidos se analisarmos o paradigma da unidade espacial a partir do que Bazin chama complexo de múmia. Recorte temporal do espaço unitário, figura da subjetividade espectoral que circunda e sobredetermina a ontologia da imagem baziniana, o complexo de múmia e a obsessão em preservar compõem o quadro em que a intensidade emerge e á fruída pelo espectador. (p. 158)
15.1 – É a partir desta potencialidade da imagem-câmera [...] que podemos ver emergir a intensidade e a transfiguração do real própria a esta forma imagética. É o saber do espectador (o saber da tomada) e sua obsessão – e não a imagem analógica – que diz ser este traço tremido índice de perigo, signo quase abstrato. 
16 – [...] Não se trata [...] de uma norma, mas de uma melancolia do espectador Bazin, face ao conflito insolúvel entre a intensidade preservada (singularidade no tempo exponenciada pela unicidade absoluta do morrer), e a “contradição” da infinita e banal reprodutibilidade da técnica, que adequa-se (sic) à capacidade da máquina-câmera em aderir ao transcorrer uniforme, como imagem-qualquer. Qualquer determinado então duplamente pela natureza infinita da reprodução própria à máquina, que parece poder coincidir, em sua natureza de formadora mecânica de imagens, com a banalidade os instantes quaisquer que se sucedem na uniformidade cotidiana. (p. 159)

16.1 – Estamos novamente face à natureza particular da imagem-câmera na representação do extraordinário, e os dilemas estilísticos que a envolvem. É aqui que Daney proíbe os maneirismos, os travellings e as fusões, que Bazin sente a necessidade de um limite no mostrar e opta pela elipse disfarçando seu olho guloso, que Pasolini estabelece a morte como elemento limítrofe do cinema, que Bonitzer é ácido para com a voracidade do tipo Nero tentando delimitar um campo espectoral, que Barthes é o poeta melancólico da intensidade e de seu efeito. É importante frisar que o efeito traumático não se reduz à imagem violenta mas configura-se, de maneira mais ampla, na gama de transfigurações abertas pela presença da câmera na circunstância da tomada. É dentro deste campo que se expressa a reação do espanto epsteiniano face às novas formas do mundo transfigurado, a melancolia face a preservação do traço e a tensão espectorial aberta pela intensidade traumática que estoura a espessura da significação. Elementos que delineiam o leque restrito, mas ainda pouco estudado, das potencialidades da conformação imagética que tem seus traços – e na circunstância de sua composição – a marca da mediação dessa máquina de imagens que denominamos câmera". (p. 60)


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

ARCADISMO NO BRASIL (PARTE III)

"Um verão pastoral", de François Boucher

MOMENTO SOCIOCULTURAL:

  • O CENTRO SOCIOECONÔMICO DA COLÔNIA DESLOCA-SE DO NORDESTE PARA O CENTRO-SUL, DEVIDO À DESCOBERTA DE OURO E DIAMANTES EM MINAS GERAIS;
  • OCORRE UM SURTO DE URBANIZAÇÃO EM MINAS E RIO DE JANEIRO (QUE SE TORNA A NOVA CAPITAL DA COLÔNIA) E AUMENTA O NÚMERO DE INTELECTUAIS;
  • INFLUENCIADA PELAS IDEIAS ILUMINISTAS E PELA REVOLUÇÃO FRANCESA, OCORRE A INCONFIDÊNCIA MINEIRA, REBELIÃO QUE INTENTAVA A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. 

CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS:

  • O ARCADISMO OPÕE-SE AO BARROCO, PROCURA ELIMINAR DA ARTE OS EXCESSOS PRATICADOS PELA LITERATURA BARROCA. ESSE OBJETIVO PRODUZIU UMA ARTE SIMPLES, SEM EXAGEROS FORMAIS, QUE PRETENDIA RETRATAR A NATUREZA DE MODO DIRETO. OUTRA MARCA DO ARCADISMO É O BUCOLISMO (EXALTAÇÃO DA VIDA NO CAMPO, IDEALIZADA COMO TRANQUILA E FELIZ).
  • USOU DA MITOLOGIA CLÁSSICA E DOS PRINCÍPIOS RENASCENTISTAS: RACIONALISMO, EQUILÍBRIO, CLAREZA. 

AUTORES E OBRAS:

  • CLÁUDIO MANUEL DA COSTA: PARTICIPANTE DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA, PRODUZIU "OBRAS POÉTICAS" (1768) E O ÉPICO "VILA RICA" (1839);
  • TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: OUTRO POETA QUE PARTICIPOU DA INCONFIDÊNCIA, REALIZOU OBRAS MUITO INFLUENTES, COM DESTAQUE PARA "MARÍLIA DE DIRCEU" (1792);
  • BASÍLIO DA GAMA: ESCREVEU "O URAGUAI" (1769), POEMA ÉPICO QUE CRITICA OS JESUÍTAS E ENALTECE O MARQUÊS DE POMBAL;
  • FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO: ESCREVEU O "CARAMURU" (1781), POEMA ÉPICO QUE SEGUIU A ESTRUTURA DE CAMÕES E QUE CONTA A HISTÓRIA DE DIOGO ÁLVARES DE CORREIA, PIONEIRO NA COLONIZAÇÃO DA BAHIA.

Cláudio Manuel da Costa

Tomás Antônio Gonzaga


Basílio da Gama


Santa Rita Durão


RESUMO DA OBRA "O URAGUAI", DE BASÍLIO DA GAMA

"A morte de Lindoia" (1882), de José Maria de Medeiros

O poema de Basílio da Gama trata da expedição do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade - herói do poema -, que destruiu as missões jesuíticas espanholas do rio Uruguai, rebeladas contra o Tratado de Madri. Esse tratado estabelecia a troca do território espanhol dos Sete Povos das Missões pela colônia portuguesa do Sacramento. O acontecimento central do poema é a Batalha do Caaibaté, em 1756, em que morreram 1500 dos 1700 índios que dela participaram. 
          O poema exalta o herói português, mas permite a seus inimigos vencidos, os indígenas, a crítica ao processo de colonização. Os vilões da história são os padres jesuítas, personificados de forma caricatural na figura do terrível Padre Balda (alguns autores acusam Basílio de oportunismo: o poema, dedicado ao irmão do Marquês de Pombal, teria sido escrito para afastar as suspeitas de jesuitismo que pesavam sobre o poeta). 
          Os trechos mais belos e mais interessantes referem-se aos índios. Alguns deles, como na narração da morte de Cacambo, assassinado por Balda, e a do desespero e suicídio de Lindoia, dão um tom lírico ao poema e podem ser classificados como prenúncios românticos em pleno Arcadismo. 
          Basílio da Gama introduziu uma série de inovações ao modo camoniano, que se impunha à imitação neoclássica. Enquanto no modelo camoniano são percebidos dez cantos, estrofes de oito rimas e um esquema de rimas ABABABCC, em "O Uraguai" Basílio da Gama realiza apenas cinco cantos sem divisão estrófica e versos decassílabos brancos. 
          A estrutura do poema atende aos seguintes elementos:

1 - Introdução
  • Abertura (Canto I, versos 1 a 5);
  • Invocação e Proposição (Canto I, versos 6 a 9): Invocando a musa, a voz épica propõe-se a honrar o herói, que subjugou os índios do Uruguai e vingou a afronta dos jesuítas às determinações do rei de Portugal;
  • Dedicatória (Canto I, versos 21, ao Canto V, verso 139): O poema é dedicado a Mendonça Furtado, ministro da Marinha e Ultramar, irmão do Marquês de Pombal.

2 - Narração (Canto I, verso 21, ao Canto V, verso 139).

3 - Peroração (Canto V, versos 140 a 150).




                                                                                                                                                                           

sábado, 16 de novembro de 2013

A PROPÓSITO DO ANIVERSÁRIO DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ (17/11/1910 - 04/11/2003)


Outro dia alguém me fez a pergunta que eu menos gosto de escutar em se tratando de Literatura: qual é seu escritor preferido? Eu simplesmente não sei quem é, porque cada escritor consegue, por meio de uma obra ou outra, permanecer afetivamente em minha memória. Determinar quem é o maior ou o melhor escritor, para mim, não me parece tarefa agradável, fácil e necessária. 

Não é preciso viver no mundo e hierarquizar tudo, como tantos fazem. Querem compartimentar, eleger, determinar, ordenar até os gostares literários de que nos valemos para suportar esta existência insustentável. Dizer que prefiro um escritor é preterir um outro, e isto não é gesto de quem se tornou melhor através das tantas leituras realizadas.

Houve uma época em que, se alguém me perguntasse quem era o meu escritor favorito, eu, tão ingênuo quanto incapaz de discernimentos, respondia que não era um escritor o meu favorito, mas uma escritora. A escritora era Rachel de Queiroz. 

Não deixei de amá-la com amor devoto, apenas consegui, com o tempo, libertar-me dos rótulos que eu mesmo criara para mim - ou para ela?

Sabe como foi que Rachel de Queiroz, a escritora cearense que o Brasil reconhece como uma das maiores da nossa Literatura, me foi apresentada? Foi através de um livro de Literatura Brasileira direcionado ao Ensino Médio, de José de Nicola.

Comprei, ainda no Ensino Fundamental, de um colega o citado livro e, ao abrir nas páginas concernentes ao Modernismo, vi a fotografia de uma senhora de riso largo cujo nome era igual ao da minha bisavó materna, a quem eu admirava e respeitava com sofreguidão. Depois, li um fragmento de uma obra intitulada "O Quinze" que, segundo o autor, havia sido escrito por aquela senhora ainda quando esta era uma moça com seus vinte anos. Fiquei fascinando porque, no resumo, a protagonista vivia um dilema: casar, ter filhos e cuidar do marido, conforme outorga a sociedade pautada em conservadorismos, ou emancipar-se, estudar e viver sozinha por estar certa de que nem sempre é possível encontrar em outrem aquilo que poderia aquiescer a alma? Além do tal dilema, havia uma realidade mais grave a irromper daquela obra: uma família paupérrima, sofrida e sem solução, ante as agruras da seca, precisaria, em retirada, buscar novas possibilidades de vida longe da sua terra.

Aquele enredo, sem que eu possa dar explicação ampla, me comoveu profundamente. Um ano após buscar incessantemente aquele livro, uma grande amiga o encontrou para mim e emprestou-me. Eu o apertei nas mãos como se dissesse a mim mesmo que eu seria sempre recompensado por dispor de persistência. Ser persistente foi, devo destacar, uma necessidade maior ao longo de minha vida às vezes áspera como alguns cenários em que Rachel de Queiroz atirou suas personagens.

Eu poderia ter lido "O Quinze" numa tarde, mas protelei o término... Durante duas tardes eu, com os olhos petrificados, li a primeira obra literária que, profundamente, me apresentou a pungência, a solidão, a impotência, a fragilidade, o desespero do ser humano. Nunca mais eu vi o que se convencionou chamar Literatura da mesma forma. 

Por isto Rachel de Queiroz tornou-se a minha escritora preferida. Vieram outras leituras valorosas e epifânicas e envolventes com ares bem superiores em relação à obra "O Quinze", mas justiça seja feita: foi Rachel de Queiroz quem primeiro me tirou da caverna obscura do ser e apresentou-me resquícios de luz - a luz que ela me apresentou, em verdade, era de um sol vermelho e causticante que queima rancorosamente a pele dos homens em épocas de estiagem. 

E até hoje as personagens tão humanas quanto frágeis dessa obra me percorrem. Não sou mais o abobalhado que segurou aos prantos um livro emprestado por uma amiga memorável, mas basta abrir as páginas do romance "O Quinze" novamente e as emoções ressurgem - claro que elas foram acrescidas de um olhar mais crítico, porém nunca serei capaz de ler esta obra sem derramar sobre ela as minhas fragilidades mais sentidas.

Eu li todas as obras romanescas e as peças de teatro de Rachel de Queiroz. Realizei trabalhos acadêmicos sobre algumas delas. Fui pouco racional ao superestimar algumas características pertinentes à autora, também a coloquei num pedestal que ela mesma não aceitaria ser colocada. Decorei trechos de alguns livros, colecionei artigos que discorriam sobre ela e sua obra, guardei fotografias de livros e revistas e divulguei muito seu nome. Conheci suas virtudes literárias e pessoais. Conheci, também, suas falhas e transgressões. Percebendo-a humana, a compreendi e a aceitei melhor, sobretudo aprendi com ela que nem só de encômios deve viver um autor.

No mais, a propósito de sua obra, Maria Moura - e disto eu não abro mão - é a personagem por excelência de Rachel de Queiroz. Maria Moura me ensinou uma frase que tem sido repetida internamente com rigor: "Nesta vida, quem não briga pelo que quer se acaba". Eu a invoco quando quero confrontar aquilo de que tenho medo - como eu poderia imitar tamanha força! 

Quando Rachel de Queiroz faleceu, alguns dias antes do seu aniversário, em 2003, eu prestava Serviço Militar. Ainda fardado, fui entrando na casa de minha bisavó - cujo nome também era Rachel - e a encontrei sentada à frente da televisão fazendo trança de chapéu de carnaúba. Ao lado dela, minha tia foi logo divulgando a notícia funesta... Rachel de Queiroz havia falecido - foi divulgado em todos os jornais de emissoras abertas do país e em vários jornais do exterior. O Ceará de luto, também o Rio de Janeiro. A Língua Portuguesa de luto. E eu, que desejava um dia encontrá-la, tirei-o-cavalo-da-chuva e tentei me controlar. Lembro-me do barulho do meu coturno ecoando no corredor da casa da minha bisavó - saí às pressas para escrever, naquela manhã, um texto elegíaco sobre a autora que me tirou, para sempre, da escuridão intelectual.   

Sempre que é necessário, recorro ao que Rachel de Queiroz, no livro "O Quinze", me disse um dia: "A gente precisa criar seu ambiente, para evitar o excessivo desamparo... Suas ideias, suas reformas, seu apostolado... Embora nunca os realize... nem sequer o tente... mas ao menos os projete, e mentalmente os edifique."

Texto de: Émerson Cardoso
15/11/13

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