quarta-feira, 23 de junho de 2021

MEU LIVRO DE CONTOS: "O BAILE DAS ASSIMETRIAS"

 



A astrologia leva uma pessoa a considerar a disposição do sol como algo que repercute na construção de sua personalidade. Para isto, leva-se em consideração, ainda, o modo como as constelações, determinadas por princípios arbitrários, estão dispostas. A data e o horário de nascimento dessa pessoa são determinantes, por esse viés, para a configuração de seu perfil psicológico.

 

Carl Sagan (1934–1996), astrônomo e astrofísico norte-americano, ao referir-se à astrologia na série televisiva Cosmos – uma viagem pessoal, de 1980, pensa que essa crença é facilmente refutável. Para Sagan, no entanto, “a astrologia sobreviveu e floresceu”. Isto aconteceu porque, para ele, a astrologia “parece conferir à nossa vida rotineira um sentido cósmico, fingindo satisfazer nosso desejo de nos sentirmos irmanados com o Universo”.

 

A ideia de estarmos “irmanados com o Universo” tem seu lirismo, claro! O problema da astrologia é que, por vezes, ela pode induzir uma pessoa a uma visão um tanto fatalista. Se tudo está determinado pelos astros, e suas posições na hora em que alguém nasce, então seria inviável tentar alterar a influência dos astros na vida desse alguém. Se os astros determinam os reveses da existência e o comportamento de um ser, predeterminando suas falhas e qualidades, suas dores e alegrias, então a esse ser é dada pouca possibilidade de alterar o destino das coisas. Há outros pontos que eu poderia levantar, mas não quero me estender. Neste caso, devo dizer que não considero a astrologia como ciência, mas eu a aprecio como algo fascinante pela atmosfera poética que ela concentra.

  

Quanto aos contos que constituem este livro, eu recorri à astrologia, sim, para escrevê-los. A ideia é entender os traços de cada signo e associá-los a uma das personagens protagonistas das narrativas que apresento. Para isso, eu li um pouco sobre o assunto e confesso que foi um bom exercício. A ficção tende a alimentar-se de temas colhidos no cotidiano – e nada mais presente nele do que essa pseudociência-lírica-e-assaz-divertida. Eis o desafio para quem lê O baile das assimetrias: localizar, no perfil de suas personagens, em que aspecto elas detêm os predicativos dos signos do zodíaco.

 

Quanto ao título, foi o que menos gostei de fazer no processo de criação e publicação desse livro. Encontrá-lo foi uma imensa dificuldade. Pedi a opinião de amigas e amigos para chegar ao título que consta na capa, porém ainda não o considero bom.

 

A narrativa que corresponde a Áries, escrita e reescrita à exaustão, como as demais, foi a primeira que criei para O baile das assimetrias. Trata-se do conto As aventuras de Tony Torloni cujo tema (embora com certo exagero que caracteriza o tom humorístico que procurei apresentar) já estava definido desde o início de sua escrita. Assim, ele concentra, dentre outros pontos, temas como: 1) homoafetividade, 2) amizade e seus desencontros, 3) conflitos familiares, 4) ingenuidade que leva ao sofrimento e 5) ausência de pessoas e ambientes que conduzem as personagens à solidão. Esses temas, invariavelmente, são retomados nos demais contos. A homoafetividade e a solidão, devo dizer, são os mais recorrentes.

 

Por fim, espero que minhas narrativas sejam lidas e, de algum modo, sejam apreciadas. Escrever é um desafio. Ser lido é um desafio maior. Espero que alguém leia meu livro de contos sobre signos do zodíaco e encontre algum valor literário nele – isto seria algo reconfortante.

   

Émerson Cardoso


sexta-feira, 18 de junho de 2021

CRÔNICA INCOMPLETA: "PERDAS"


18/06/2021

Neste mês de junho de 2021, o Brasil divulgou um número macabro: 500 mil pessoas morreram em decorrência da COVID-19. Em nosso país não foi somente a COVID-19 em si que causou transtornos e destruiu vidas. O mau gerenciamento da pandemia tem muito a ver com essas mortes. 

Famílias em todas as regiões do Brasil perderam entes queridos. Pessoas poderiam ter recebido vacinação antes, mas não houve preocupação por parte de autoridades competentes. 

Dentre as 500 mil pessoas mortas está uma pessoa cuja relevância em minha vida não posso mensurar. Ela se foi em 13 de junho de 2021. Escrever ainda é difícil para mim.

Esta é a terceira vez que tento escrever. Ainda não consigo organizar as ideias. Há muito a digerir. 

No livro "Sobre a morte e o morrer" (1969), de Elisabeth Kübler-Ross, ela aponta os seguintes estágios constitutivos do luto: 1) negação, 2) raiva, 3) negociação, 4) depressão e 5) aceitação. Não sei em qual estágio estou. 

Eu não sei. 

03/08/2021

Ainda não sei em que estágio do luto me encontro: a vida é tão simples e tão séria. No assoprar de um vento frio de junho pode correr uma notícia: aquela amiga a quem tanto você estimava se foi! O tempo da notícia chegar ao ouvido e descer ao grito que se cala: junho já riu de mim tantas vezes no passado!

13 de junho é dia de Santo Antônio. No dia 13 de junho de 2016, Luzia se foi. No dia 13 de junho de 2021, Tereza, irmã de Luzia, se foi. Tantas pessoas se foram no dia em que Santo Antônio é festejado pela Igreja Católica desde que o mundo é mundo. Luzia e Tereza, porém, eram irmãs, eram inseperáveis, eram religiosas, eram bondosas, viveram para o trabalho, eram moças dedicadas, não casaram, não tinham tino para coisas do mundo, não sabiam existirem sem Deus. 

Acho que comecei a escrever sobre minha perda. Preciso parar agora, porque minha boca ficou amarga, o olho marejou desértico, a angústia me atravessou o peito. 

Quando eu concluir o texto, que é sangue em ferida profunda, aí terei um pouco do que quero expressar e poderei fazer uma melhor organização. 

Ainda não sei o meu estágio do luto. 





segunda-feira, 14 de junho de 2021

SOBRE VACINA, DOCÊNCIA E O DIREITO A LUTAR PELA VIDA


Professores e Professoras para receberem vacina, no Ceará, foram obrigados (as) pelo governo estadual a assinarem um documento comprometendo-se a retornarem às atividades profissionais no segundo semestre do corrente ano. Eu fiz texto criticando esse assédio moral, me angustiei demais com essa imposição, tentei de todas as formas me articular para refletir criticamente sobre isso. 

Minha primeira inclinação foi a de não receber a dose da vacina. Conversei com colegas de trabalho cujas visões eram próximas à minha e comecei um itinerário de busca, porque não fazia sentido, para mim, a ideia de que eu precisaria de assinatura para receber algo que me é de direito. 

O sindicato 'apeoc' (para quem teço críticas severas em decorrência de determinadas posturas adotadas), sugeriu que nos negássemos a assinar, expediu um mandado de segurança e incitou à denúncia da obrigatoriedade da assinatura. Instituições, como a OAB, se posicionaram contra o documento. O momento que deveria ser de comemoração, para nós, tornou-se um pesadelo. 

Diante desse contexto angustiante, estávamos divididos entre: 1) garantir a possibilidade de sobreviver a essa doença por meio da vacina tão esperada ou 2) deixar de recebê-la como forma de reivindicação e manutenção do brio. 

Enquanto a 'apeoc' fiscalizava escolas na capital, fazia vídeos incitando à não assinatura, era-nos exigido por parte do sistema de agendamento (condição sine qua non para recebermos a primeira dose da vacina) que fizéssemos o cadastro e escolhéssemos a data e o local de nosso atendimento. Vi muitas manifestações nas redes sociais (eu também me manifestei textualmente), diversos discursos contrários a essa absurda imposição, o que me deu a certeza de estar do lado coerente do debate. Eu não vi, porém, nenhuma diretriz objetiva que reunisse Professoras e Professores numa massa crítico-reflexiva com união e, consequentemente, força suficiente para reivindicar, manifestar contrariedade e agir contra o que para muitos de nós era algo patético e humilhante.    

Eu me questionei arduamente sobre o que fazer. Fiquei angustiado em relação à maneira como deveria agir. O que mais me veio à mente foi: como abrir mão da vacina em contexto tão adverso? É possível manter o brio quando já morreram quase 500 mil pessoas no país? Eu expus minha angústia a três amigas e cada uma delas me deu respostas as mais coerentes para minhas perguntas. Resumirei o que apreendi do discurso delas: é mais importante tomar vacina, e com isso garantir uma possibilidade de sobrevivência, apesar do assédio, ou negar-se a fazê-lo como forma de protesto? 

Creio que o brio só poderia ser vivenciado nesse caso se tivéssemos uma categoria profissional realmente crítica e unida, mas não é o caso. Não posso generalizar, claro, porém se há uma realidade perceptível na Educação é o fato de que há uma grande dificuldade de unificação do diálogo quando o assunto é motivar profissionais dessa área à realização de algum ato de protesto. Consciência de classe e capacidade de manter a unidade não são, infelizmente, caracteres fortes da maioria desses profissionais. É uma assertiva polêmica, sei disso, todavia não a poderei esconder. O máximo que posso fazer, para amenizar minha afirmação, é tentar não ser generalizante, pois ainda temos uma quantidade significativa de profissionais dispostos a agir contrariamente a discursos opressores. 

Há muito mais do que imaginamos em torno desse debate. Existem mil especificidades que motivaram alguns profissionais a aceitarem a vacina tão esperada e tão necessária. Garantir a vacina é uma tentativa de luta pela própria saúde e pela saúde dos familiares. Em meio a uma pandemia mal gerenciada, em contexto assustador, exigir que alguém não lute pela vida é um olhar no mínimo insensível e restritivo.   

Fiz essa ressalva porque um Professor teceu críticas aos Professores e Professoras por terem assinado o documento para tomarem a vacina. Conforme aponto acima, será que nos cabe críticar sem a observação de aspectos pontuais? É possível criticar sem analisar contextos?

A propósito, foi sugerido por um advogado, diante do irremediável da assinatura, que produzíssemos um texto a ser anexado ao documento. O texto é o seguinte: "Declaro que estou assinando este documento sob coação. Manifesto que irei acionar o Estado/Município em juízo por qualquer problema de saúde que minha família e eu tenhamos em virtude da presente pandemia". Muitos de nós fizemos isso (eu fiz um texto menor, mas fiz). Do meu ponto de vista, esse texto deve ser considerado, sim, um ato de protesto. Por que não seria? 

Uma Professora também teceu críticas aos (às) colegas e assinalou estar disposta a tomar vacina somente quando fosse chamada a fazê-lo pela faixa etária. Por essa lógica, ela seria vacinada nas próximas semanas e eu nos próximos meses. Qual de nós está em posição mais cômoda? 

Depois de um conflito intenso e adoecedor, eu decidi me vacinar. 

Quando cheguei ao local, não me pediram outro item além do tal documento. Eles queriam com veemência olhar minha letra. 

Quando me exigiram o documento, eu questionei. Disse que o sindicato me orientava a não assinar documento algum. A funcionária me disse que concordava com minha postura, que se solidarizava, mas o documento era uma exigência. Eu disse que entregaria o documento, mas iria denunciar e tornar pública a denúncia. Disse a ela, também, que no meu documento havia um adendo: era um texto em manuscrito dizendo que eu fui coagido a assiná-lo. Acrescentei outros itens incisivos ao meu discurso. A funcionária, no entanto, não era quem merecia ouvir minha indignação, sobretudo porque ela fez questão de dizer o quanto estava solidária e foi o tempo todo educada comigo.

Uma andorinha só não faz verão. Este ditado é perfeito quando nos remetemos à realidade da Educação brasileira. Como sequer tivemos pulso firme do sindicato contra essa aberração, eu decidi que o valor da vida deveria falar mais alto. Recebi a vacina, mas não sem reivindicar, não sem me posicionar, não sem me angustiar e sem pensar em algo doloroso: um dia para comemorar tornou-se, para mim, um pesadelo. 

Estou vacinado, porque a necessidade de sobreviver a essa pandemia, quando muitas pessoas próximas faleceram, me gritou mais alto. Respeito quem teve outra postura. Admiro, devo confessar, a coragem de quem agiu diferente de mim. Eu, todavia, não pude agir da mesma forma, pois estava em jogo uma tentativa de sobrevivência. Fiz o que considerei correto e necessário para mim - o resto é cansaço.

Depois, quando foi possível enviar meu Termo de Declaração e Denúncia de Coação, em site da 'apeoc', não hesitei em fazê-lo. Motivei alguns amigos e amigas a fazerem o mesmo. No documento, exigiam duas testemunhas (pasme!). Duas amigas estiveram comigo na mesma data e local de vacinação e disponibilizaram seus dados para confirmar que fui coagido. 

Quero dizer, neste texto, o quanto fiquei frustrado por não ter podido comemorar ao receber uma dose da vacina que poderia me dar possibilidades de lutar pela vida. Não foi possível, porque me foi tirado esse direito de comemoração. Quero enfatizar, ainda, o seguinte: o meu ataque, nessa batalha intensa, não será contra profissionais da minha área, mas contra o governo estadual (responsável pela obrigatoriedade da assinatura) e demais poderes cujos objetivos são, dentre outros, destruir a Educação e massacrar Professores e Professoras com as mais humilhantes formas de desvalorização e de desrespeito. 

No mais, enquanto estiver vivo, buscarei força no braço para avançar contra facínoras (me vacinar foi, também, um ato de resistência contra um poder que não me quer vivo). O resto, vou gritar, é cansaço! 

Émerson Cardoso

15/06/2021