segunda-feira, 14 de junho de 2021

SOBRE VACINA, DOCÊNCIA E O DIREITO A LUTAR PELA VIDA


Professores e Professoras para receberem vacina, no Ceará, foram obrigados (as) pelo governo estadual a assinarem um documento comprometendo-se a retornarem às atividades profissionais no segundo semestre do corrente ano. Eu fiz texto criticando esse assédio moral, me angustiei demais com essa imposição, tentei de todas as formas me articular para refletir criticamente sobre isso. 

Minha primeira inclinação foi a de não receber a dose da vacina. Conversei com colegas de trabalho cujas visões eram próximas à minha e comecei um itinerário de busca, porque não fazia sentido, para mim, a ideia de que eu precisaria de assinatura para receber algo que me é de direito. 

O sindicato 'apeoc' (para quem teço críticas severas em decorrência de determinadas posturas adotadas), sugeriu que nos negássemos a assinar, expediu um mandado de segurança e incitou à denúncia da obrigatoriedade da assinatura. Instituições, como a OAB, se posicionaram contra o documento. O momento que deveria ser de comemoração, para nós, tornou-se um pesadelo. 

Diante desse contexto angustiante, estávamos divididos entre: 1) garantir a possibilidade de sobreviver a essa doença por meio da vacina tão esperada ou 2) deixar de recebê-la como forma de reivindicação e manutenção do brio. 

Enquanto a 'apeoc' fiscalizava escolas na capital, fazia vídeos incitando à não assinatura, era-nos exigido por parte do sistema de agendamento (condição sine qua non para recebermos a primeira dose da vacina) que fizéssemos o cadastro e escolhéssemos a data e o local de nosso atendimento. Vi muitas manifestações nas redes sociais (eu também me manifestei textualmente), diversos discursos contrários a essa absurda imposição, o que me deu a certeza de estar do lado coerente do debate. Eu não vi, porém, nenhuma diretriz objetiva que reunisse Professoras e Professores numa massa crítico-reflexiva com união e, consequentemente, força suficiente para reivindicar, manifestar contrariedade e agir contra o que para muitos de nós era algo patético e humilhante.    

Eu me questionei arduamente sobre o que fazer. Fiquei angustiado em relação à maneira como deveria agir. O que mais me veio à mente foi: como abrir mão da vacina em contexto tão adverso? É possível manter o brio quando já morreram quase 500 mil pessoas no país? Eu expus minha angústia a três amigas e cada uma delas me deu respostas as mais coerentes para minhas perguntas. Resumirei o que apreendi do discurso delas: é mais importante tomar vacina, e com isso garantir uma possibilidade de sobrevivência, apesar do assédio, ou negar-se a fazê-lo como forma de protesto? 

Creio que o brio só poderia ser vivenciado nesse caso se tivéssemos uma categoria profissional realmente crítica e unida, mas não é o caso. Não posso generalizar, claro, porém se há uma realidade perceptível na Educação é o fato de que há uma grande dificuldade de unificação do diálogo quando o assunto é motivar profissionais dessa área à realização de algum ato de protesto. Consciência de classe e capacidade de manter a unidade não são, infelizmente, caracteres fortes da maioria desses profissionais. É uma assertiva polêmica, sei disso, todavia não a poderei esconder. O máximo que posso fazer, para amenizar minha afirmação, é tentar não ser generalizante, pois ainda temos uma quantidade significativa de profissionais dispostos a agir contrariamente a discursos opressores. 

Há muito mais do que imaginamos em torno desse debate. Existem mil especificidades que motivaram alguns profissionais a aceitarem a vacina tão esperada e tão necessária. Garantir a vacina é uma tentativa de luta pela própria saúde e pela saúde dos familiares. Em meio a uma pandemia mal gerenciada, em contexto assustador, exigir que alguém não lute pela vida é um olhar no mínimo insensível e restritivo.   

Fiz essa ressalva porque um Professor teceu críticas aos Professores e Professoras por terem assinado o documento para tomarem a vacina. Conforme aponto acima, será que nos cabe críticar sem a observação de aspectos pontuais? É possível criticar sem analisar contextos?

A propósito, foi sugerido por um advogado, diante do irremediável da assinatura, que produzíssemos um texto a ser anexado ao documento. O texto é o seguinte: "Declaro que estou assinando este documento sob coação. Manifesto que irei acionar o Estado/Município em juízo por qualquer problema de saúde que minha família e eu tenhamos em virtude da presente pandemia". Muitos de nós fizemos isso (eu fiz um texto menor, mas fiz). Do meu ponto de vista, esse texto deve ser considerado, sim, um ato de protesto. Por que não seria? 

Uma Professora também teceu críticas aos (às) colegas e assinalou estar disposta a tomar vacina somente quando fosse chamada a fazê-lo pela faixa etária. Por essa lógica, ela seria vacinada nas próximas semanas e eu nos próximos meses. Qual de nós está em posição mais cômoda? 

Depois de um conflito intenso e adoecedor, eu decidi me vacinar. 

Quando cheguei ao local, não me pediram outro item além do tal documento. Eles queriam com veemência olhar minha letra. 

Quando me exigiram o documento, eu questionei. Disse que o sindicato me orientava a não assinar documento algum. A funcionária me disse que concordava com minha postura, que se solidarizava, mas o documento era uma exigência. Eu disse que entregaria o documento, mas iria denunciar e tornar pública a denúncia. Disse a ela, também, que no meu documento havia um adendo: era um texto em manuscrito dizendo que eu fui coagido a assiná-lo. Acrescentei outros itens incisivos ao meu discurso. A funcionária, no entanto, não era quem merecia ouvir minha indignação, sobretudo porque ela fez questão de dizer o quanto estava solidária e foi o tempo todo educada comigo.

Uma andorinha só não faz verão. Este ditado é perfeito quando nos remetemos à realidade da Educação brasileira. Como sequer tivemos pulso firme do sindicato contra essa aberração, eu decidi que o valor da vida deveria falar mais alto. Recebi a vacina, mas não sem reivindicar, não sem me posicionar, não sem me angustiar e sem pensar em algo doloroso: um dia para comemorar tornou-se, para mim, um pesadelo. 

Estou vacinado, porque a necessidade de sobreviver a essa pandemia, quando muitas pessoas próximas faleceram, me gritou mais alto. Respeito quem teve outra postura. Admiro, devo confessar, a coragem de quem agiu diferente de mim. Eu, todavia, não pude agir da mesma forma, pois estava em jogo uma tentativa de sobrevivência. Fiz o que considerei correto e necessário para mim - o resto é cansaço.

Depois, quando foi possível enviar meu Termo de Declaração e Denúncia de Coação, em site da 'apeoc', não hesitei em fazê-lo. Motivei alguns amigos e amigas a fazerem o mesmo. No documento, exigiam duas testemunhas (pasme!). Duas amigas estiveram comigo na mesma data e local de vacinação e disponibilizaram seus dados para confirmar que fui coagido. 

Quero dizer, neste texto, o quanto fiquei frustrado por não ter podido comemorar ao receber uma dose da vacina que poderia me dar possibilidades de lutar pela vida. Não foi possível, porque me foi tirado esse direito de comemoração. Quero enfatizar, ainda, o seguinte: o meu ataque, nessa batalha intensa, não será contra profissionais da minha área, mas contra o governo estadual (responsável pela obrigatoriedade da assinatura) e demais poderes cujos objetivos são, dentre outros, destruir a Educação e massacrar Professores e Professoras com as mais humilhantes formas de desvalorização e de desrespeito. 

No mais, enquanto estiver vivo, buscarei força no braço para avançar contra facínoras (me vacinar foi, também, um ato de resistência contra um poder que não me quer vivo). O resto, vou gritar, é cansaço! 

Émerson Cardoso

15/06/2021 

6 comentários:

  1. Émerson, comungo das ideias e angústias. Que texto espetacular!

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    1. Olá, Ana Cleide! Obrigado pela leitura e pelas palavras elogiosas! Vamos sobreviver a tudo isso e saíremos mais firmes e fortes! Abraço!

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  2. Émerson, sinto-me representada no seu texto. Você falou por mim. Obrigada.

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    1. Olá, Teresinha! Obrigado pela leitura! Torço para que dias melhores venham amenizar nossas angústias! Abraço!

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  3. Puxa, amigo, que situação!
    E o pior de tudo é que, querendo ou não, a pessoa também precisa do emprego pra sobreviver (ter onde morar, pagar os boletos, se alimentar, etc.).
    A pessoa fica entre a cruz e a calderinha.
    E eles não tiveram o mínimo de compaixão e foram muito nojentos com essa chantagem emocional.
    Nossa, são tempos terríveis para nós do romantismo da desilusão, porque tanto a primeira quanto a segunda natureza estão super hostis.
    Força, querido.
    Se precisar desabafar, pode contar comigo.
    Abraços.

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    1. Olá, Sara! Obrigado pela leitura e pelas palavras amigas! São tempos difíceis, de fato, tem sido complicado lidar com tudo isso! Abraço!

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