sexta-feira, 29 de outubro de 2021

DESPEDIDA DA SÉRIE "POSE"


Pose tem três temporadas. Série transmitida entre junho de 2018 e junho de 2021, foi a que mais trouxe no elenco pessoas trans dando-lhes protagonismo. Ela trouxe profunda reflexão sobre vida, morte, superação, amizade e tantos outros temas.

Pose trouxe personagens de sensibilidade transbordante. Dificilmente Blanca será esquecida em sua capacidade de acreditar nos outros e em si mesma, Elektra em sua elegância arrogante e Angel em sua beleza ingênua. 

Mesmo diante de personagens que aparentam encerrar em si o pior do caráter, ainda elas trazem perspectivas valiosas para a reflexão sobre o que é ser e estar no mundo quando tudo lhes é negado. As pessoas tendem a criar mecanismos de defesa, porque a vida nem sempre lhes possibilita riso e festa.

Essas personagens, no entanto, têm os bailes. Neles, é possível brilhar, ter aceitação e construir vínculos. Blanca, Elektra e outras mães representam lideranças das casas que se tornam abrigos para pessoas excluídas socialmente.

Assim, surgem figuras singulares para construírem o dinamismo da série: Candy, Lulu, Papi, Damon, Ricky, Judy, Lemar e o grande Pray Tell. Todas podem agir bem ou mal, pois o que está em jogo na vida delas é transformar abandono em forças para sobreviver ao caos do mundo.  

Se me perguntassem qual o tema principal da série, eu diria que é solidariedade (que é personificada pela personagem Blanca Evangelista). A solidariedade se manifesta de várias formas, porque ela apresenta um panorama histórico que compreende as décadas de 1980 e 1990 (inicia em 1986 e termina em 1998). Com isso, ela aponta para um tema tão complexo quanto doloroso: os primeiros casos de AIDS e o preconceito que essa doença trouxe como consequência. Além disso, ela traz a resistência e a luta para se discutir e construir espaços na política da vida contra um vírus que representou, por muito tempo, dor, abandono e morte.

Resiliência, portanto, é um tema a ser considerado nessa série. Crer no potencial do outro, e ver o que de melhor pode ser apreendido no convívio, dá a tônica nessa obra que trata de construir família fora dos padrões e das normas. 

As personagens também são passíveis de erro. Elas conseguem falhar e mesmo assim serem capazes de reconfigurar o mundo no qual estão inseridas. Humanidade tem a ver com acertos e erros, com agir no mundo e aprender enquanto se está em movimento, então Pose acerta nisso.

Foi significativo demais que essa série tenha ficado em pauta, recebido prêmios e despertado a atenção. São tempos de desconstrução, de modo que nela podemos encontrar caminhos diversos para construir novos olhares sobre política, democracia, gênero, sexualidade, homofobia, transfobia, racismo, diversidade etc. 

Algo que me chamou atenção foi o fato de que as personagens vivenciam conflitos,  rivalidades e competitividades entre elas, mas quando o assunto é proteger umas às outras, elas se unem. Elas compreendem que somente dessa maneira poderão resistir em espaço social que se compraz em marginalizá-las. 

Eu assisti comovido a essa série que é o melhor em entretenimento e o melhor em reflexão. Temos tanto a aprender quando a questão é entrar em contato com o que há de beleza e dor nas relações humanas. Assistir Pose, para mim, representou muito em aprendizagens. Que tal assisti-la?

Émerson Cardoso

29/10/2022


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

ANTÍGONA 442 a.C. (PEÇA-FILME-PONTE)

Foto: Divulgação 


Antígona, ensina-me a não calar o gesto, a não guardar a voz, a não fugir da luta. Agora, mergulhei meus pés nas sombras de tua estirpe desventurada. O girar da fortuna, Antígona, nos impele à queda, ou à altivez apesar da tirania que nos deseja arrebatar? Teus entes queridos do pó ao grito, Antígona, quero tuas mãos em meu olhar sem força.

Andrea Beltrão engoliu tua estirpe e a vomitou sobre nós, trágica irmã, com que entrega de corpo e alma! Sabe atriz impelida ao que não é medo, mas intensidade e força? Sabe mulher com olhar despido cuja vida subiu à grandeza inestimável? Sabe um ser humano que traça uma curva entre o existir e o despejar sua arte com sensibilidade para nos ampliar em alegria-dor? 

Antígona, de dentro de Andrea Beltrão percebi teus cabelos, teus olhos e tua boca jamais silente. O corpo de teu irmão, Antígona, em cenário construído no rebrilhar do gesto fez Andrea Beltrão ressuscitá-lo por ti, também matá-lo, para obrigar-te a sepultá-lo mais uma vez. Ela, atriz sem trégua, abriu caminhos para te fazer cumprir o destino em nova batalha. 

Andrea Beltrão desapareceu em cena. Não é ela quem está sob luz e direção. A estirpe de Laio entra e sai de sua voz insone, profunda e complexa. Vozes sobem e descem da atriz, que invoca filhos de Édipo para nos fazer sofrer por eles e por nós mesmos. Adereços, Antígona, ela os utilizou com maestria. Quantas vezes ela reviveu essa história nada simples tão ampla em sensibilidade e violência? 

Antígona, Andrea Beltrão é atriz que nos oferece luz nestes nossos tempos sombrios. Creonte apodreceu nas hamartias colecionadas, enquanto ela nos fez reviver mil personagens assegurada sempre pelo destemor que a perpassa. Com quem ela mais se identifica, dentre as vozes que lhe percorrem? Quando uma atriz se apaga para fazer brotar a Grécia trágica, o que dizer para ser justo no elogio que ela tanto merece? Andrea Beltrão não tem cordas que ousem tolher sua atuação irreprochável. 

Andrea Beltrão, se pudesses me ver, aqui, na plateia, poderias ler as emoções derramadas em meu olhar? Ele diria, o meu olhar, que nosso país se fraterniza com tua existência! Cada palavra tua é imersão e busca, sabes disso? Cada gesto é retorno a um tempo de antigos cabelos, sabes disso? Antígona grita destemida em tuas mãos de precisos gestos, saiba disso!

Antígona, irmã de tristeza e luta, Andrea Beltrão te honrou. Ela te honrou e fez o país reencontrar teus entes queridos com perfeição difícil de mensurar. Vamos construindo pontes, Antígona, tu com tua capacidade de reivindicar, Andrea Beltrão com a natureza tempestuosa que a fez ocupar todos os lugares do palco-tela e eu com minha escrita em busca de algum estilo.

Temos sede de honrar, também, neste momento doloroso, nossos mortos que sucumbiram pelo descaso das tiranias. Não iremos, tenho por certo, não iremos nos calar jamais. A arte abre portas e pede passagem. Esperança.

Émerson Cardoso

25/10/2021



 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

VIAGEM EM OUTUBRO QUENTE


Isto não é diário de bordo, relato de experiência ou memória. É sobre a tríade da Terra e um gato. Gatos gostam de Terra, como pulam pela própria natureza e miam em busca da mãe. 

Quando alguém viaja também está em busca. Cada um que traga a motivação para a fuga em setembro amargo, ou outubro quente. 

Gatos já nascem prontos. Nada de questões profundas de vida ou morte para ruminar. Humanos à sua volta é que estão perdidos. No tempo de sono demorado para gatos, humanos tecem fotografias. Recortes de momentos ou desenhos na alma? Ambos. Acontece que fotografar é menos pelo aparelho tecnológico e mais pelos sentidos. 

Gatos eriçam a pele quando Redemption song é cantada em noite de lua-não-cheia ao léu? Sobre a lua, os pescadores me garantiram. E era mais uma mentira. O reggae na caixa de som de um homem sentado aos pés de uma palmeira, tendo um balanço ao lado, não foi mentira. Sabe fotografia impossível de realizar? A solidão balançando de um lado para outro em ritmo noturno de mar sem trégua.

Quando ele, o gato, apareceu, era noite e a paisagem fazia festa de mal-estar. Bar amargo, café ciumento e futuro sem bancos de praça. Os gatos já nascem pobres, porém já nascem livres? Humanos nascem de maneiras diversas, mas livres talvez nunca sejam. Mesmo no impulso teimoso de Virgem, na vitalidade cômica de Capricórnio e na pasmaceira bruta de Touro, ser livre é batalha de todo sempre.

Os gatos têm medo do inesperado? Eles percorrem estradas com velocidade e atravessam curvas sem prudência? Gatos só querem miar, porque existem assim. Humanos é que se distraem em busca de. É tão bonito o que escapa ao registro. Virgem conduzindo o mundo. Capricórnio e precipícios superados. Touro, o fixo, colhendo vida no medo que não disfarça. 

Pessoas desconhecidas surgem sempre pelas vidraças. Feliz quem é, nesta vida de ausências? Talvez nem seja triste o olhar cansado dos homens e mulheres ressurgindo urgentes.

Andar com areia nos pés. Tudo sol ou noite em movimento. Passado. Presente. Futuro? A vida com seu jogo de brincar de infâncias pobres. Ela que não contava com a teimosia de três almas de vigor terrestre. Vento no rosto queima, mas ainda é resquício de liberdade. A vida sem resposta. 

O destino tem vontade de rir da gente com barulho e olhar sedento. Para ele, nossa desforra. Dançar e cantar e viver até o corpo ranger agradecido por se alegrar um pouco que seja. 

Houve a anfitriã de leveza e riso, pois Gêmeos pode ser movimento e força. Seria o caso de fugir com o circo para encontrar no mundo o direito de ser o que se é? Desencanto de pedra. Travessia em escombro. Caminhar pela noite. Não sucumbir. 

Depois, o retorno. Estrada sempre com curvas, almoço em paisagem simples, arcanos querendo voar e canções para preencher vazios. Já a rapidez engolia o tempo. 

O gato, depois de ter seus humanos nas mãos, arranjou-se em novas paragens. Ele que não chorou na despedida. A tríade de Terra, às pressas, também teve momentos de adeus. O gato ficando para trás. É que nas despedidas dançam mãos cansadas pedindo chão para repousar. O gato constatando seu lugar ao sol. Alguém cantou Valsa da despedida

Agora, bagagem aos pés. Uma questão filosófica se imprime nas linhas da mão: quantos passeios de vida ainda teremos em outubros quentes?   

Émerson Cardoso

11/10/2021

 



quinta-feira, 29 de julho de 2021

LIVRO DE CONTOS "O BAILE DAS ASSIMETRIAS" (RESUMO DOS CONTOS)


Primeira edição publicada em 2021
pela Luazul Edições.

 

CARDOSO, Émerson. O baile das assimetrias. São Paulo: OIA Editora, 2022.


Áries

"Tony Torloni (ou Psiquê Defenestrada)" é o primeiro conto do livro "O baile das assimetrias". Correspondente ao Signo de Áries, deparamo-nos nele com Tony Torloni (fã incondicional da atriz Christiane Torloni), um dos funcionários mais requisitados do "Très Chic Cabeleireiros". Enquanto vivencia seu cotidiano com Dona Rosa Miranda e Luana, suas complexas companheiras de profissão, ele se apaixona à primeira vista por Zezão, que altera completamente sua vida. Para Tony, os astros diziam que Zezão era o grande amor de sua vida (sua alma gêmea). Confiante de que deveria lutar para vivenciar esse grande amor, Tony empreende uma luta intensa para conquistar seu amado. Será que ele conseguirá fisgar seu "homem"?

Touro

"O reencontro" (correspondente ao Signo de Touro) é o segundo conto do livro "O baile das assimetrias". Nele, nos deparamos com Fran, uma personagem transexual que idolatra a apresentadora Hebe Camargo e cria todas as estratégias possíveis para reencontrá-la através do filme "Hebe: A Estrela do Brasil", do diretor Maurício Farias. Sair de um sítio da zona rural do Crato–CE, para ir ao cinema em Juazeiro do Norte–CE, é uma saga dolorosa, mas Fran não hesita, persistente que é, quando o assunto é realizar o sonho de rever Hebe, sua amiga tão querida.

Gêmeos

"Grita, Auxiliadora, Grita!", é o terceiro conto do livro "O baile das assimetrias". Correspondente ao Signo de Gêmeos, nele encontramos duas personagens femininas: 1) Auxiliadora e 2) a patroa de Auxiliadora (que não é nomeada). Com elas, temos duas faces de uma realidade complexa da sociedade brasileira: a mulher negra (que é explorada e desrespeitada em seu trabalho) e a mulher branca (que age como se Auxiliadora fosse "da família", que finge importar-se com a saúde dela e, em verdade, de modo nada sutil, a coloca em condição de silenciamento e subalternização). É um texto que mostra, além disso, o quanto a hipocrisia reina no discurso de uma pessoa marcadamente adepta do bolsonarismo.

Câncer

"Poltrona sete" é o quarto conto do livro "O baile das assimetrias". Correspondente ao Signo de Câncer, deparamo-nos nele com um narrador que, da janela do ônibus, testemunha uma cena de despedida entre dois rapazes. Quando o transporte de um deles dá sinal de que irá partir, eles se beijam e, com isto, causam reações diversas nas pessoas que observam a cena de amor protagonizada por eles. Esse conto apresenta uma atmosfera melancólica e lírica que nos leva a refletir sobre o amor vivido entre dois homens em contexto de despedida. Além disso, nos conduz a uma reflexão sempre pertinente: a homofobia ainda existe e agride, em vários aspectos, pessoas que não temem ser quem elas são.

Leão

"O abismo a um passo" (correspondente ao Signo de Leão) é o quinto conto do livro "O baile das assimetrias". Nele, deparamo-nos com uma personagem feminina que depois de constatar a traição do marido com sua melhor amiga, enlouquece, ateia fogo na casa e vai embora com seu neto. Ela tem por meta retomar sua carreira de atriz de teatro na capital. Ela e o neto estão à espera de algum transporte que os levem embora, mas a noite parece trazer para eles mais sombras do que luzes.

Virgem

"Gólgota para Argos Panoptes" (correspondente ao Signo de Virgem) é o sexto conto do livro "O baile das assimetrias". Um velho bibliotecário que cumpre seu ofício rigorosamente passa por uma experiência atípica no cotidiano de seu trabalho. Seus olhos vislumbram o mundo sob um viés das repressões e das culpas, no entanto é possível ter um momento de fuga - uma fuga pelo olhar.

Libra

"Lenda-parábola de trisal não informado" é o sétimo conto do livro "O baile das assimetrias". Correspondente ao Signo de Libra, encontramos nele três personagens significativas para configuração do trisal mencionado no título: 1) Lili, 2) Rodrigo Paivani e 3) o Pastor marido de Lili. A narrativa inicia "in medias res", quando Lili encontra-se no auge do conflito que lhe faz sair de sua aparente harmonia existencial. O amor devotado de Lili ao marido, aos sete filhos e à Igreja é colocado à prova quando seu melhor amigo, Rodrigo Paivani, lhe faz repensar o mundo no qual ela está imersa. Esse conto trata, portanto, de uma reflexão sobre a capacidade de se reinventar após um pulo no abismo.

Escorpião

"As labaredas de Angelina" (correspondente ao Signo de Escorpião) é o oitavo conto do livro "O baile das assimetrias". Deparamo-nos, nele, com uma personagem feminina que não se deixa amedrontar quando está em jogo sobreviver ao caos do mundo. Sobreviver, para ela, muitas vezes, é utilizar a "Lei de Talião" — ela não hesita em aplicar nos algozes as dores que eles lhe causam. Embora seja um texto de viés cômico, muitas reflexões podem emergir da tessitura narrativa desse texto.

Sagitário

"Ausência" (correspondente ao Signo de Sagitário) é o nono conto do livro "O baile das assimetrias". Duas personagens femininas se encontram e, partir do universo esotérico que as reúnem, deparam-se com uma profunda busca existencial que tem no tema da maternidade o principal ponto de encontro entre elas.

Capricórnio

"Às vésperas do silêncio" (correspondente ao Signo de Capricórnio) é o décimo conto do livro "O baile das assimetrias". Nele, deparamo-nos com a relação entre mãe e filha que se realiza em momento contundente para ambas: a filha encontra-se em estado terminal (vitimada pela AIDS) e a mãe é a única que pode lhe proporcionar um último alento.

Aquário

"Felícia" (correspondente ao Signo de Aquário) é o décimo primeiro conto do livro "O baile das assimetrias". Nesse conto, temos uma personagem feminina cujo nome é evocado no título que, apesar das angústias da vida, supõe ter encontrado na personagem Ana a possibilidade de viver um grande amor.

Peixes

"Sonata para as cinco chagas" (correspondente ao Signo de Peixes) é o décimo segundo conto do livro "O baile das assimetrias". Uma personagem feminina velha (que vive em um abrigo para idosos) passa por uma experiência sensorial de intenso erotismo ao ouvir um violinista tocar. Ela vê no jovem violinista a imagem de seu primeiro namorado (o grande amor de sua vida). Reencontrar esse rapaz mais jovem é, para ela, um reencontro também consigo mesma. O que do amor ela ainda poderá viver?

 

CONTO: "O REGRESSO DO FILHO", DE FLORBELA ESPANCA

 


— Nazaré! Eh, Nazaré! Onde diacho se meteria o raio da rapariga?!

E, depois, de uma breve pausa, berrou mais alto:

— Eh, Nazaré!

— Pai! — gritou de dentro uma vozita esganiçada. — Lá vou!

— Então tu não ouves chamar, mulher?! Há mais de quanto tempo “Nazaré, Nazaré” e tu sem apareceres! Pareces mouca!...

— É que eu...

— Anda lá, anda lá... — atalhou o velho bruscamente. — Lê lá a carta que chegou agora da vila. É do teu irmão!

E o senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas, metia à cara da rapariga, num alvoroço, numa impaciência impossíveis de disfarçar, a carta já saída do envelope, onde as garatujas do filho se ostentavam, grossas e bem legíveis sobre a brancura da folha de papel.

A rapariga pegou na carta e, rapidamente, deu princípio à leitura:

 

Meu pai:

Quando esta lhe chegar às mãos, vai ficar muito triste com a notícia que tenho para lhe dar, pois vossemecê gostava muito do Justino, que era seu afilhado. Pois é verdade, o Justino tenho a certeza que morreu lá para aquelas malditas terras do interior, para onde a sua desgraça o levou vai fazer um ano. Nunca mais se teve notícias dele e já não é o primeiro que para lá fica...

 

A rapariga, com a voz a tremer, interrompeu a leitura para enxugar uma lágrima à ponta do aventalito de chita. O senhor Justino Urbano tossiu para disfarçar a comoção que o invadia.

— Anda lá... anda lá... — murmurou.

 

... Coitado do compadre Gabriel quando souber. Eu não lhe mandei dizer nada. Escrevo-lhe a si para lhe ir dar a notícia, que sempre será melhor, pois o filho deve estar morto a estas horas. Já há mais de três meses que chegaram boas notícias de todos os que foram com ele, e por cá o que consta é que ele morreu.

Eu estou aqui bem e não faço tenções de ir para mais banda nenhuma a não ser para as nossas terras, pois isto de terra de pretos nunca costuma dar bom resultado, como aconteceu ao pobre do Justino.

Dê recados meus à prima Isabel e às pequenas, ao Elias, ao compadre Josué, ao Manel da Tenda e a todos os que por mim perguntarem.

Diga à nossa Nazaré que eu em breve lhe escrevo e que já cá lhe comprei, para lhe levar, um colar muito lindo de marfim e uns brincos de coral como os da professora de S. Bento.

E vossemecê receba um aperto de mão e muitas saudades deste seu filho que lhe pede a bênção.

Francisco Urbano

 

Ao terminar a leitura da carta, a rapariga, num ar de interrogação aflita, ergueu para o pai os grandes olhos escuros, marejados de lágrimas como duas amoras orvalhadas.

O pai, a olhar vagamente, ao longe, a mancha negra do montado, não fez um movimento.

A sombria moldura da porta da cozinha, aberta de par em par sobre o silêncio dos campos, fazia lembrar uma cuvette onde a paisagem luminosa, arqueando-se em grandes ondas largas até às altas serranias azuladas de Espanha, tomava o seu banho de ouro.

Veio até eles o brando arrulhar de um pombo. Outro desceu, num grande frêmito de asas, e começou a apanhar as migalhas, em movimentos rápidos, receosos, que lhe faziam cintilar o largo colar de esmeraldas e rubis que lhe cingia o pescocito airoso.

A rapariga, num gesto muito doce, amarrotava a carta, seguindo-lhe os movimentos.

De repente, a um gesto brusco do velho, o pombo desapareceu batendo as asas. Com um fundo suspiro, o velho transpôs a porta da cozinha, sem uma palavra.

 

***

 

No dia seguinte, logo depois de almoço, o senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas, meteu-se a caminho do Monte das Chãs, para ir dar a triste notícia ao compadre Gabriel.

Manhã tórrida de Junho. As ceifas estavam à porta. Já os trigais maduros erguiam o ouro pesado das espigas nas hastes altas, num gesto hierático de oferta a qualquer deus pagão, enquanto as perdizes, repletas e desconfiadas, atravessavam à pressa os regos, por entre as searas, com a filharada atrás. O senhor Justino Urbano caminhava devagar, enxugando de vez em quando, com o grande lenço de chita vermelha, o suor que, sob o negro chapeirão, lhe inundava a testa, toda sulcada de rugas miudinhas. Inquieto, distraído, não tinha um olhar para o que o cercava, às voltas com o problema da sua árdua e tristíssima missão.

Que havia ele de dizer àquele pai?... Como havia de dizer àquele desgraçado que já não tinha filho?... Em que túmulo fechado iria ele transformar aquela casa, adormecida na feliz expectativa do regresso do herdeiro, logo que lhe transpusesse os umbrais?!...

O senhor Justino Urbano parou de repente junto a uma copada azinheira que, no cotovelo do atalho, desdobrava um lencinho de sombra na aridez da terra de pousio, tirou o chapéu que lhe escaldava a testa, atirou com ele para o chão num gesto raivoso, estendeu o lenço e sentou-se.

A terra onde os olhos se lhe perderam, parecia não ter fim até aos longínquos horizontes, onde se confundia com o céu. Minúsculas borboletas de um azul muito carregado, outras de um amarelo intenso como ocre, lembravam flores de charneca a que de repente tivessem crescido asas, na ânsia de fugirem ao triste destino que, tão doces, as prendera àquelas hastes secas e duras, que jamais tinham visto curvar-se em blandiciosos gestos de doçura. A seara madura era como que um outro céu, mais abrasado, de um esmalte mais vivo. As grandes azinheiras escuras, espalhadas aqui e ali, desenhavam desgrenhadas flores de sombra no ouro em pó das suaves colinas, arredondadas e fugidias, cordilheira de ondas pequeninas até onde os olhos as podiam seguir.

Em volta, o silêncio era tão profundo, tão religiosa e extática a paz dos campos, que os olhos do lavrador incrédulo se ergueram da terra numa instintiva ação de graças. A alma do homem, tão insignificante, sente-se às vezes ultrapassar o mistério infinito da própria existência e procura ansiosa um infinito maior ainda, onde perder-se; é nessas horas que o homem se sente perdoado do nefando crime de ser homem.

O Justino Urbano soltou um profundo suspiro, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas ao dar com o «monte» do compadre Gabriel, erguido no alto da mais elevada colina em tomo, a uma meia hora de caminho. Era uma grande casa quadrada, branca de neve, à torreira do sol, sem a doçura de uma árvore a dar-lhe sombra. É que os sombrios olhos alentejanos precisam encher-se de infinito, precisam das amplas extensões onde o ar corre liberto, e o Sol, pelas tardinhas solitárias, adormece cansado, imperador aborrecido do seu trágico gozo de incendiar. Justino Urbano fixou por largo tempo o “monte” do compadre Gabriel; depois, lentamente foi-se levantando, apanhou o chapéu, o lenço, que dobrou cuidadosamente, deu dois passos para a frente, outros dois para trás e por fim parou, indeciso, sem saber o que havia de fazer.

— Não querem lá ver vossemecês a minha vida! — resmungou em voz alta.

De súbito, encolhendo os ombros, raivoso e aborrecido, vociferou num ar de grande resolução:

— Pois vou-me embora, pronto! Quem quiser que lho vá dizer!

E a passos rápidos, sempre resmungando, voltou costas à colina, onde a grande casa quadrada alvejava ainda a grande distância, tomando o caminho de casa.

Nada! Que ele tinha dois filhos que eram como duas medalhas e não queria acarretar-lhes desgraça falando em desgraças, não queria matá-los levando notícias de morte a um pobre homem que nunca lhe tinha feito mal nenhum!

“E quem sabe lá!”, continuava ele no seu descosido monólogo. “Estas coisas tão longe nunca uma pessoa assente lhes pode dar credo logo às primeiras. Os governos lá estavam para dar às pessoas estas tristes notícias, que eles lá é que sabem quem vive e quem morre. Não era só décimas e mais décimas em cima de um homem a pontos de, a bem dizer, lhe levarem quase a seara toda! O compadre Gabriel havia de o saber, que as más novas sabem-se sempre! Antes se não soubessem!”, rematava num suspiro.

— Nada, nada! — repetia. — Não, que eu tenho dois filhos!

E no supersticioso medo, cheio de inquietação e egoísmo que de repente lhe oprimia o coração como numa tenaz de ferro, olhava desvairado a imensidade daquela terra que o cercava, como se ela lhe fosse cair toda às pazadas sobre os corpos inanimados dos filhos.

Quem o visse de longe tomá-lo-ia por um bêbado, coisa que o sisudo lavrador nunca tinha sido em dias da sua vida, tais eram os gestos e a raiva com que sacudia o chapeirão e o grande lenço de chita vermelha, desfraldado como um pendão de revolta, a que de vez em quando limpava a cara alagada.

Quando chegou à herdade, a filha, que o não esperava tão cedo, por pouco não deixou cair a arregaçada de ovos que trazia da capoeira ao vê-lo, de camisa desabotoada, o chapeirão derrubado para a nuca, o sobrecenho carregado; e mais assustada ficou quando o viu arremessar para cima do grande poial da porta da cozinha, onde àquela hora se estendia já uma nesga de sombra, o lenço que trazia na mão.

Não se atreveu a interrogá-lo, nem o velho lhe deu tempo.

— Vai-me buscar um púcaro de água! Quem quiser que lho diga!! Eu é que não estou para isso! — trovejou, deixando-se cair para cima do poial.

A rapariga entrou na cozinha, donde voltou, passados instantes, com um grande púcaro de barro cheio de água fresca e, enquanto o pai bebia, sôfrego, a água límpida, ficou-se a olhar para ele, interdita e inquieta.

— Mas vossemecê não foi às Chãs?... — perguntou-lhe a medo.

— Não — tornou o velho numa voz mais doce. — Não tive ânimos. Faltou-me a coragem. Ainda cheguei ao Caminho Velho. Depois, assim que de lá avistei a casa, voltei para trás. Quem quiser que lho diga!

E, depois de uma pausa, murmurou em ar de confidência:

— Tu bem sabes que o compadre Gabriel, desde aquela doença, nunca mais ficou bom. Tem lá assim a modos que umas ideias esquisitas... Não ficou lá muito certo! Tive medo que lhe desse alguma coisa, que ficasse para aí maluco, ou...

Deteve-se, vendo debuxar-se nos lábios da Nazaré um levíssimo sorriso.

— Vocês são mesmo umas cabras! — bradou, dando uma forte palmada no poial. — Tudo é uma risota! Tudo é uma risota!

A rapariga voltou a cara e ficou muito corada, entretendo-se a enrolar e a desenrolar a ponta do aventalito de chita. O velho caiu nas suas meditações, olhando vagamente o muro branco, em frente, onde o sol batia de chapa.

— Se vossemecê quisesse... — arriscou a rapariga, numa vozita receosa.

O velho voltou-se para ela, interrogando-a com o olhar.

— A ti Ana passa aí a noite. Hoje é quarta-feira e ela foi à vila com o Roque, que eu vi-os passar de manhãzinha. Diz-se-lhe a ela e...

— Ora é isso mesmo! Tiveste boa ideia! — interrompeu o pai. — A ti Ana criou o rapaz, vai ter muita pena, mas o pai sempre é pai, e ninguém melhor do que ela lho pode dizer. Tiveste boa ideia. Pois é a ti Ana mesmo que lho há de dizer!

 

***

 

Efetivamente, ao sol-posto, a ti Ana passou montada no burrito que o Roque, um garoto de rosto vivo e corpo desempenado, levava brandamente pela arreata, a caminho do «monte». A Nazaré tinha-a ido esperar à entrada do montado que cortava a meio o atalho que ia direito às Chãs.

— Pareces uma sardinha a assar nas brasas! — gritou-lhe de longe a ti Ana, a rir, ao vê-la aparecer, delgada e morena, sobre o horizonte avermelhado, onde o Sol se sumia lentamente.

Quando, porém, meia hora depois, a ti Ana tornou a montar o burrito a que o Roque tomou a arreata num gesto de impaciência, pois era quase noite e as Chãs ficavam longe, a pobre velha já não ria; levava mais vinte anos sobre os ombros curvados, e os olhos tinham-se-lhe cavado subitamente, cegos das mais dolorosas lágrimas que uns olhos podem chorar.

O irmão ainda mourejava lá por fora quando ela chegou a casa. Chegou dali a bocado, já noite fechada, com o gado. Da cozinha, onde punha a mesa para a ceia, ajudada pela afilhada, uma filhita de um criado que tinha puxado para casa, ouvia-se o vozear dos homens, o tropear dos machos nas pedras do pátio, de vez em quando o mugido profundo e lamentoso de um boi, o ladrar incessante dos cães, a distância. A ti Ana parava de momento a momento na sua lida e ia disfarçadamente à porta da cozinha, para que a pequena não visse limpar à ponta do lenço preto os olhos que se lhe inundavam de lágrimas teimosas.

Quando o irmão transpôs a porta da cozinha, conversando com os dois criados, deu-lhe as boas-noites em voz sumida e foi numa tremura que serviu a ceia, sem dar palavra.

Quando acabaram de comer, o irmão levantou-se e, como de costume, nas noites abafadas de verão, foi fumar um cigarro, sentado num poial de tijolo que corria a todo o comprimento da casa e donde se avistavam, em noites luarentas, os “montes” muito brilhantes, engastados na meia luz dos outeirinhos suaves, correndo brandamente até às altas serranias de Espanha.

— Estava muita gente na feira? Trouxeste as cordas? — perguntou-lhe ele de lá, ouvindo-a ainda lidar na cozinha.

— Trouxe — respondeu ela num murmúrio.

— Sabes? — disse ele —, aquelas terras de semeadura da banda de cá do rio, as do ti Samuel, estão para vender. Fui hoje vê-las. Quando o rapaz voltar... Aquilo era tudo uma herdade. Não te lembras?

Ela não pôde responder, a garganta opressa pelos soluços.

Ele continuou:

— Bem boa seara, a do Brás! A terra é igual... Eu não tenho agora dinheiro, mas se elas não se venderem até lá, quando o meu rapaz voltar...

— Ó Gabriel — conseguiu ela articular, transpondo a porta da cozinha e ficando de pé ao lado dele. — Não sei o que me adivinha o coração... Há quase um ano que não temos carta do Justino... Se lhe tivesse acontecido alguma coisa?...

O velho, sobressaltado, levantou para ela o rosto, subitamente de uma palidez de cera.

Via-se como de dia. O luar era uma cascata de luz despenhando-se dos outeiros. Inundava e submergia tudo. As sombras tinham-se refugiado aos cantos, muito encolhidinhas, expulsas de toda a parte pelo dilúvio; e o manancial de luz correndo pelas colinas arredondadas, pelos vales fugidios, perdendo-se nos longes, era de minuto a minuto mais farto e transparente, alagando os “montes” muito caiados, erguidos a meio das encostas ou nos altos, de uma brancura milagrosa.

— Sim... — gaguejou ela. — Soa-se para aí que o nosso Justino...

E já com as lágrimas a correrem-lhe em fio pela cara abaixo:

— Foi em casa do compadre Justino que mo disseram, hoje mesmo, quando voltava da feira. Receberam carta do Chico em que dizia que o nosso Justino, coitadinho, tinha morrido, lá para aquelas terras do interior...

Foi tão desvairado o olhar que o velho lhe lançou que ela teve medo e apressou-se a dizer, enxugando as lágrimas:

— Ninguém nos mandou dizer a nós. Tem fé, Gabriel! Quem sabe lá! Pode ser que não seja assim...

O velho não respondeu, mas deixou pender a cabeça e os braços, num ar de desolação tão atroz que a ti Ana correu para ele e, levantando-lhe a cabeça, procurou animá-lo. Ele, sem forças para a interrogar, tinha fechado os olhos como se esperasse o golpe supremo, resignado.

— Então, Gabriel! Tem ânimo, homem! Pode ser, pode muito bem ser que o nosso Justino volte. Isto há de ser tudo mentira! O padrinho diz o mesmo. Lá dos governos é que têm obrigação de dizer quem vive e quem morre. A gente cá não sabe nada. Então, Gabriel!

O velho ergueu lentamente a mão trêmula, para que a irmã se calasse e, numa voz que mal se ouvia, murmurou:

— Deixa-me sozinho.

E como ela se preparasse para responder, ele repetiu a súplica no mesmo tom muito doce, na mesma voz sem timbre:

— Deixa-me sozinho.

Ela não ousou desobedecer-lhe. Fez-lhe a vontade e entrou na cozinha, reprimindo os soluços que lhe afogavam o peito. Ao retirar-se para o seu quarto, depois de tudo arrumado, foi à porta espreitá-lo; viu-o na mesma posição, quase deitado sobre o banco, a cabeça pendida para o peito, os braços caídos.

— Vou-me embora, Gabriel — disse-lhe muito baixinho.

— Tem cuidado com a porta da cozinha. Vê lá, não a deixes aberta...

Ele não respondeu.

Quando se sentiu completamente só, e o silêncio o envolveu como as rígidas pregas de um sudário, sacudiu o torpor em que caíra, levantou-se lentamente e deu uns passos pelo pátio. Depois, sem lançar sequer um olhar para a porta da cozinha, aberta de par em par, encaminhou-se para a horta, de que se via alvejar à distância o murozinho branco. Empurrou o portão de ferro que nunca se fechava. Na bela terra alentejana não há ladrões porque não há fome, e o lavrador não é desconfiado. Entrou. A horta com o muro à volta, baixo, caiado de fresco, fazia pensar num alegre e romântico cemitério de aldeia, onde mortos dormissem descansadinhos, na paz do Senhor.

O velho sentou-se numa pedra rente à terra e abraçou num olhar vago os talhões bem tratados, o regato de água límpida que cortava a horta, para as regas, o laranjal, massa sombria ao fundo, donde vinha em lufadas um ar carregadinho de perfumes. A lua, espreitando por cima do muro, deslizando por entre os ramos das árvores, caía de borco sobre a fonte, e os seus mil raios prateados eram na água outros tantos barquinhos luminosos que as gotas, caindo da bica em branda cadência, faziam vogar e submergir-se. O regato, a seus pés, corria sem cessar, num estonteamento de garoto, rindo a bom rir por entre o morangal até sumir-se lá ao canto, junto ao muro, na sua fofa caminha de musgos de veludo verde-escuro.

O velho abrangeu tudo aquilo num olhar que a pouco e pouco se ia tornando mais consciente, sorveu o ar com a ânsia de quem se sente asfixiar e levantou a cabeça num gesto de desafio e de orgulho.

Ah, não! Não podia ser! O seu filho não podia ter morrido assim, longe dele, longe da terra, longe de tudo que o vira nascer, de tudo que o vira crescer e fazer-se homem! Ah, não! Não podia ser! O filho!... O seu menino, o seu rapaz, que tanto lhe custara a criar sem mãe, que tantos cuidados lhe dera, que só a fraqueza do seu amor deixara partir assim à aventura como seu desejo fora, o seu maior sonho de riqueza, teria desaparecido assim como uma pedra do chão, um punhado de terra, uma haste de erva rasteira, sem nada ter ficado dele, nem ao menos um túmulo, um montão de terra num cemitério, com uma cruz ao alto a proteger-lhe o sono!

E aquelas árvores, que já ali estavam quando ele nascera, que as nortadas tinham sacudido, queimadas pelas geadas, despidas e açoitadas pelas mãos brutais do Inverno, continuavam ali, continuavam a viver, poupadas pelos anos, protegidas pelo destino, intactas, quase iguais às que ele vira em pequenino!

Ah, não! Não podia ser!...

E a esperança foi-se-lhe insinuando no peito, toda a noite, a passos leves, cautelosa e traiçoeira. Um clarão de loucura atravessou-lhe as pupilas baças, e os cantos duros da boca torceram-se num jeito de sorriso. Levantou mais a cabeça. Uma quase certeza invadia-lhe a alma torturada, fazia-lhe bater o coração como se tivesse vinte anos e um grande milagre lho florisse como um altar. A sua imaginação, sempre um pouco insensata, apresentou-lhe o filho cheio de força e saúde, com as mãos plenas de riquezas, de volta à casa onde nascera, comprando terras, todas as terras em volta, as terras de pão que ninguém, a peso de ouro, recusaria vender-lhe, das Chãs a maior herdade daquelas redondezas, daquelas vinte léguas até serras de Espanha.

E, quando, de manhãzinha, o Sol assomou, todo cor-de-rosa, no horizonte vestido de cores pálidas, de um louro de topázio, de um suave lilás de anémona, num dia verde translúcido de certas asas de libélulas, o nosso homem tinha tanto a certeza de que o filho havia de voltar, e voltar rico, como tinha a certeza de existir, certeza firme e funda como firmes e fundas aquelas árvores tinham vivido quase intactas, anos e anos pregadas ao duro chão alentejano.

E daquele dia em diante, acentuando-se a loucura, mais se lhe meteu em cabeça a cisma de que o filho estava vivo e voltaria rico, e começou por toda a parte a falar com grande entusiasmo da compra de terras que ia fazer, chegando a entrar em negociações com os proprietários que, conhecendo-lhe a mania, abanavam gravemente a cabeça com um misto de comiseração e ironia e uma grande malícia nos olhos escuros, semicerrados.

Passaram-se assim dez anos. Nasceu gente e morreu gente; voltou remediado e de saúde o filho do senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas; o mundo continuou nas suas voltas e reviravoltas eternamente incógnitas ao nosso entendimento, mas do Justino do Gabriel das Chãs é que nunca se soube nem novas nem mandados. A pouco e pouco, um primeiro, outros depois, todos o foram esquecendo... Só o pai continuava à sua espera, certo do seu regresso como no primeiro dia. “Quando o meu rapaz voltar...”, dizia ele...

Ora deu-se o caso que, um belo domingo de Fevereiro, estando o senhor Justino Urbano a acabar de jantar em companhia dos dois filhos, viram com grande surpresa entrar pela porta dentro o vulto de um desconhecido, um vulto estranho e inquietante, que fez soltar à Nazaré um grito de terror.

Parecia efetivamente um maltês, um desses mendigos vagabundos que costumam rondar pelas herdades ao lusco-fusco, rosnando a súplica, que é quase uma ameaça, da tigela da sopa e do agasalho para a noite. Vinha enrolado quase até às sobrancelhas numa manta velha, cujas pontas tocavam o chão; trazia na mão direita um grosso cajado, a que se arrimava, na esquerda um saquinho de chita, onde mal podia caber uma muda de roupa.

Mal podendo ter-se nas pernas, amarelo como um círio, o homem desembuçou-se um pouco, encostou-se à porta e, numa voz que a emoção enfraquecia e os soluços embargavam, murmurou:

— Padrinho! Sou eu...

O senhor Justino Urbano deu um salto como se um aguilhão o picasse, ao reconhecer naquele espectro o afilhado, e correu para ele, abraçando-o a rir e a chorar, num alvoroço.

— Ó Justino! Ó rapaz!

A Nazaré, debulhada em lágrimas, e o Francisco foram-no amparando, levando-o devagarinho para uma cadeira baixa, ao cantinho da chaminé.

O senhor Justino Urbano parecia doido. Fazendo grandes gestos, não deixando falar ninguém, fazia andar tudo numa poeira, dando ordens e mais ordens, todo entregue à mais inebriante alegria da sua vida.

— Deixa lá, homem! Tira-te daí, Francisco — berrava para o filho.

— Deixa-o tomar ar, cos diabos! Vai buscar lenha seca à loja! E tu, boca aberta — gritava voltando-se para a filha, que, de pé, considerava o Justino com os olhos rasos de água —, que estás para aí parada como um andor?! Despacha-te! Vai matar um frango! Põe água a ferver, anda mulher!...

— Ora esta! — dizia para o afilhado. — Uma assim nunca na minha vida vi! Ora o Justino!... Mas como vieste tu cá parar ao fim de tantos anos?!

O Justino sorria enlevado, estendendo à chama as mãos muito magras e trêmulas.

Como tinha vindo cá parar!... Como os regatos vão parar ao mar, a planta ergue a haste para o Sol e as nuvens se fundem nos horizontes! A terra chamara-o sempre e, longe dela, nunca a sorte o bafejara, nunca! Ai, as saudades que ele tinha tido! Naquelas terras de África exuberantes e riquíssimas, entre aqueles extensos milharais de um verde intenso e cru, no meio toda aquela opulenta vegetação carnuda e forte, crescendo à doida, lamentara do mais fundo da sua cismática e austera alma alentejana os seus campos incultos, as suas charnecas bravias, o cheiro a feno, a ervas amargas, a tostado, os seus pequeninos prados, colchas bordadas a malmequeres e a botões de ouro que a Primavera estendia à beira dos raros regatos, os ondulantes trigais salpicados de papoulas, toda a sua terra a saber a rosmaninho e a alecrim, toda a sua linda província recolhida e calma, que ele evocava como uma doce rapariga de rosto moreno, olhos baixos e boca séria. Ai, as saudades que ele tinha tido!

E o Justino, em voz muito fraca e ansiosa, depois de tomar a pequenos goles a chávena de caldo muito apetitosa, a cheirar a hortelã, que a Nazaré lhe preparara num instante, e de ter chupado uma asita e uma perna de frango, pôs-se a contar aos três, que o ouviam cheios de piedade, a sua triste história, história de desilusão e amargor. Os anos de luta e de esperança primeiro, as suas ambições, os seus sonhos; depois a sua partida para o interior, o roubo de que tinha sido vítima, a doença, as malditas febres, a falta de recursos, por fim, o hospital, a vergonha que alguém soubesse na terra a miséria em que caíra, o desânimo que dele se apoderara e que o fizera permanecer ignorado e esquecido, dado por morto durante todos aqueles anos. Depois, ao sentir aproximar-se a morte, a ansiedade de partir, de vir abraçar os seus, de morrer na sua terra, na sua cama, de vir ver a sua casa e os seus campos. A ideia de ficar para ali, abandonado como um cão, sem ninguém que lhe fechasse os olhos, enchia-lhe a alma de pavor. Numa voz que de vez em quando se molhava de lágrimas, contou depois a medonha odisseia da viagem, tudo o que tinha sofrido, pensando não chegar vivo a casa, com o pensamento atroz de morrer no mar, de ser atirado para os peixes com um peso aos pés, como um bocado de carne podre. Mas conseguira chegar a Lisboa, depois à vila. Por uma vez tivera sorte! Pusera-se logo a caminho, a pé, pois gastara os últimos

cinco réis e já não se importava de morrer, agora que estava na sua rica terra da sua alma!

— Qual morrer, nem qual carapuça! — bradou o senhor Justino Urbano, dando uma palmada em cima da mesa que fez tilintar a tigela e o copo. — Quem é que fala em morrer? Com uma açordinha todos os dias ao levantar, umas migas com chouriço e um bom copázio de vez em quando, crias carne e ficas rijo e fero num mês! O Francisco também assim chegou um pelém! E olha para ele, a ver se o conheces!

A Nazaré e o irmão enxugavam os olhos disfarçadamente. O Justino sorriu, menos pálido, menos trêmulo na atmosfera de bem-estar e de cordialidade de que se sentia rodeado.

— Agora — disse o senhor Justino Urbano —, lá para a tardinha, quando te sentires com mais força, põe-se o macho ao carro e vamos até às Chãs.

O Justino ergueu para ele os olhos brilhantes de febre e atreveu-se a fazer a pergunta que desde a chegada se lhe adivinhava nos lábios. A medo murmurou:

— E a minha tia?... E o meu pai?...

— A tua tia — respondeu o senhor Justino Urbano, num tom um pouco contrafeito e esforçando-se para dar às palavras um tom natural. — A tua tia lá está, muito velhinha mas lá anda. Agora o teu pai... sim... vais vê-lo. — E em voz mais firme: — Está rijo! Está bom!

O Justino sorriu apaziguado e ficou-se a dormitar.

À tardinha, o macho posto ao carro, o Justino bem instalado numa cadeirinha e bem agasalhado num amplo capote à alentejana de farta gola de peles de raposa, os três homens lá foram a caminho do Monte das Chãs.

A tarde declinava já. Os campos abandonados espreguiçavam-se a perder de vista, vagamente polvilhados de ouro, de um ouro pálido que esmaecia. O rapaz ia calado, embevecido. A cada canto um fantasma, uma recordação; a cada volta da estrada uma saudade. Os olhos prendiam-se-lhe a tudo, pareciam levar beijos no olhar, como se pousassem devotamente em qualquer coisa de sagrado.

Passou no alto um bando de pássaros negros. Só num pé, à beira de um regato, grave e melancólico, uma cegonha cismava. O Justino sorriu. Era tudo como dantes. Nada tinha mudado.

Ao atravessarem o montado do Ribeiro, o padrinho voltou-se para trás e inquiriu, num ar vagamente inquieto:

— Vais bem?

Ele acenou que sim com a cabeça.

Dali a instantes o senhor Justino Urbano tossiu, assoou-se e, sem se atrever a olhar para ele, tornou:

— O teu pai... não o estranhes... Anda a modos que esquisito de há um tempo para cá...

E ao ver o rapaz sobressaltar-se:

— Não é nada de cuidado — apressou-se a explicar. — Velhice. Ele já deve andar pelos setenta. É mais velho do que eu um bom par de anos.

O silêncio caiu, cheio de pensamentos tristes. O Francisco, para se animar, começou a assobiar as “saias” daquele ano. O macho caminhava sem se apressar, contornando os montes, que, na brandura da tarde, pareciam recolher-se como pássaros para dormir.

Ao passarem pela azinheira grande, no cotovelo do atalho onde o senhor Justino Urbano, anos antes, tinha passado uns momentos bem amargos, avistaram a casa, o montado das Chãs, o murozinho da horta em baixo. O rapaz estendeu os braços como se quisesse abraçar tudo num abraço muito apertado, muito cingido ao peito alvoroçado e contente naquela bendita hora, tão sonhada, do regresso!

Era noite quando chegaram. Inquietos, os cães ladraram raivosamente. A ti Ana, corcovada e trôpega, abriu a porta da cozinha e espreitou para fora. Ao reconhecer a voz do compadre Justino, recuou e foi à pressa buscar a candeia.

— Quem é? — perguntou uma voz do canto da chaminé.

— Boas noites — gritou da porta o senhor Justino Urbano. — Cá estamos, compadre! Venha de lá uma pinga! Trago-lhe uma visita!

— Uma visita... — balbuciou o velho, interrompendo o cigarro que estava e olhando curiosamente para onde sentia um rumor de vozes.

Entraram todos. A ti Ana, que ainda segurava a candeia, ao dar com os olhos no Justino soltou um grito e agarrou-se num desespero ao Francisco, sem tirar os olhos do sobrinho, que reconhecera logo.

Este, sem poder avançar um passo, branco como a cal, ficou à porta, a olhar de longe o pai sentado à chaminé.

— Ora essa, compadre! — disse a voz trêmula do velho. — Entre. Cheguem-se cá para o lume.

O senhor Justino Urbano avançou, amparando o afilhado, que tremia como varas verdes. Entrou com ele na zona iluminada. A chama do lume e a luz da candeia deram-lhe em cheio no rosto, descobrindo-lhe as feições como em pleno dia.

Todos olhavam como que petrificados, os peitos opressos pela poderosa emoção da cena, à espera...

O velho, muito alquebrado, trêmulo, levantou a cabeça toda branca e cravou os olhos no filho que de pé, ansioso, fremente, o olhava também, pronto a lançar-se-lhe nos braços.

O velho abriu mais os olhos. Um lampejo de lucidez atravessou-lhe, numa vertigem, as pupilas baças, teve um sobressalto brusco, quase deixando cair o cigarro que segurava, o rosto contraiu-se-lhe numa expressão de ansiedade, de angústia, num esforço de compreensão, de tortura inenarrável, e os braços esgueiraram-se-lhe instintivamente no largo gesto de quem vai abençoar.

Mas foi um momento... Desviou os olhos... as pálpebras tornaram a descer brandamente sobre as pupilas foscas que as sombras da loucura obscureciam. Estendeu o braço, procurando no lume um ramo a arder onde acender o cigarro e, indiferente, longínquo, tornou, na sua voz trêmula, num risinho pueril e quebrado:

— Pois é verdade, compadre... Quando o meu rapaz voltar...

(Florbela Espanca)[1]



[1] ESPANCA, Florbela. O regresso do filho. In: Dominó preto. São Paulo: Martin Claret, 2010.

CONTO: "A PARTIDA", DE OSMAN LINS

 


Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.

Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!

            Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável que ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:

— Acordado?

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.

Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. “Com que finalidade?”, perguntava eu. “Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos?” Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. “Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver”, pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.

Acordei pela madrugada. A princípio com tranquilidade, e logo, com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras… Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples ideia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários).

(Osman Lins)[1]



[1] LINS, Osman. A partida. In: Os gestos. 3. ed. São Paulo: Moderna, 1994.