—
Nazaré! Eh, Nazaré! Onde diacho se meteria o raio da rapariga?!
E,
depois, de uma breve pausa, berrou mais alto:
— Eh,
Nazaré!
— Pai!
— gritou de dentro uma vozita esganiçada. — Lá vou!
— Então
tu não ouves chamar, mulher?! Há mais de quanto tempo “Nazaré, Nazaré” e tu sem
apareceres! Pareces mouca!...
— É que
eu...
— Anda
lá, anda lá... — atalhou o velho bruscamente. — Lê lá a carta que chegou agora
da vila. É do teu irmão!
E o
senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas, metia à cara da rapariga, num
alvoroço, numa impaciência impossíveis de disfarçar, a carta já saída do
envelope, onde as garatujas do filho se ostentavam, grossas e bem legíveis
sobre a brancura da folha de papel.
A
rapariga pegou na carta e, rapidamente, deu princípio à leitura:
Meu pai:
Quando esta lhe chegar às mãos, vai
ficar muito triste com a notícia que tenho para lhe dar, pois vossemecê gostava
muito do Justino, que era seu afilhado. Pois é verdade, o Justino tenho a
certeza que morreu lá para aquelas malditas terras do interior, para onde a sua
desgraça o levou vai fazer um ano. Nunca mais se teve notícias dele e já não é
o primeiro que para lá fica...
A
rapariga, com a voz a tremer, interrompeu a leitura para enxugar uma lágrima à
ponta do aventalito de chita. O senhor Justino Urbano tossiu para disfarçar a
comoção que o invadia.
— Anda
lá... anda lá... — murmurou.
... Coitado do compadre Gabriel quando
souber. Eu não lhe mandei dizer nada. Escrevo-lhe a si para lhe ir dar a
notícia, que sempre será melhor, pois o filho deve estar morto a estas horas. Já
há mais de três meses que chegaram boas notícias de todos os que foram com ele,
e por cá o que consta é que ele morreu.
Eu estou aqui bem e não faço tenções de
ir para mais banda nenhuma a não ser para as nossas terras, pois isto de terra
de pretos nunca costuma dar bom resultado, como aconteceu ao pobre do Justino.
Dê recados meus à prima Isabel e às
pequenas, ao Elias, ao compadre Josué, ao Manel da Tenda e a todos os que por
mim perguntarem.
Diga à nossa Nazaré que eu em breve lhe
escrevo e que já cá lhe comprei, para lhe levar, um colar muito lindo de marfim
e uns brincos de coral como os da professora de S. Bento.
E vossemecê receba um aperto de mão e
muitas saudades deste seu filho que lhe pede a bênção.
Francisco Urbano
Ao
terminar a leitura da carta, a rapariga, num ar de interrogação aflita, ergueu
para o pai os grandes olhos escuros, marejados de lágrimas como duas amoras
orvalhadas.
O pai,
a olhar vagamente, ao longe, a mancha negra do montado, não fez um movimento.
A
sombria moldura da porta da cozinha, aberta de par em par sobre o silêncio dos
campos, fazia lembrar uma cuvette onde
a paisagem luminosa, arqueando-se em grandes ondas largas até às altas
serranias azuladas de Espanha, tomava o seu banho de ouro.
Veio
até eles o brando arrulhar de um pombo. Outro desceu, num grande frêmito de
asas, e começou a apanhar as migalhas, em movimentos rápidos, receosos, que lhe
faziam cintilar o largo colar de esmeraldas e rubis que lhe cingia o pescocito
airoso.
A
rapariga, num gesto muito doce, amarrotava a carta, seguindo-lhe os movimentos.
De
repente, a um gesto brusco do velho, o pombo desapareceu batendo as asas. Com
um fundo suspiro, o velho transpôs a porta da cozinha, sem uma palavra.
***
No dia
seguinte, logo depois de almoço, o senhor Justino Urbano, da Herdade das
Pedralvas, meteu-se a caminho do Monte das Chãs, para ir dar a triste notícia
ao compadre Gabriel.
Manhã
tórrida de Junho. As ceifas estavam à porta. Já os trigais maduros erguiam o
ouro pesado das espigas nas hastes altas, num gesto hierático de oferta a
qualquer deus pagão, enquanto as perdizes, repletas e desconfiadas,
atravessavam à pressa os regos, por entre as searas, com a filharada atrás. O
senhor Justino Urbano caminhava devagar, enxugando de vez em quando, com o
grande lenço de chita vermelha, o suor que, sob o negro chapeirão, lhe inundava
a testa, toda sulcada de rugas miudinhas. Inquieto, distraído, não tinha um
olhar para o que o cercava, às voltas com o problema da sua árdua e tristíssima
missão.
Que
havia ele de dizer àquele pai?... Como havia de dizer àquele desgraçado que já
não tinha filho?... Em que túmulo fechado iria ele transformar aquela casa,
adormecida na feliz expectativa do regresso do herdeiro, logo que lhe
transpusesse os umbrais?!...
O
senhor Justino Urbano parou de repente junto a uma copada azinheira que, no
cotovelo do atalho, desdobrava um lencinho de sombra na aridez da terra de
pousio, tirou o chapéu que lhe escaldava a testa, atirou com ele para o chão
num gesto raivoso, estendeu o lenço e sentou-se.
A terra
onde os olhos se lhe perderam, parecia não ter fim até aos longínquos
horizontes, onde se confundia com o céu. Minúsculas borboletas de um azul muito
carregado, outras de um amarelo intenso como ocre, lembravam flores de charneca
a que de repente tivessem crescido asas, na ânsia de fugirem ao triste destino
que, tão doces, as prendera àquelas hastes secas e duras, que jamais tinham
visto curvar-se em blandiciosos gestos de doçura. A seara madura era como que
um outro céu, mais abrasado, de um esmalte mais vivo. As grandes azinheiras
escuras, espalhadas aqui e ali, desenhavam desgrenhadas flores de sombra no
ouro em pó das suaves colinas, arredondadas e fugidias, cordilheira de ondas
pequeninas até onde os olhos as podiam seguir.
Em
volta, o silêncio era tão profundo, tão religiosa e extática a paz dos campos,
que os olhos do lavrador incrédulo se ergueram da terra numa instintiva ação de
graças. A alma do homem, tão insignificante, sente-se às vezes ultrapassar o
mistério infinito da própria existência e procura ansiosa um infinito maior
ainda, onde perder-se; é nessas horas que o homem se sente perdoado do nefando
crime de ser homem.
O
Justino Urbano soltou um profundo suspiro, e os olhos encheram-se-lhe de
lágrimas ao dar com o «monte» do compadre Gabriel, erguido no alto da mais
elevada colina em tomo, a uma meia hora de caminho. Era uma grande casa
quadrada, branca de neve, à torreira do sol, sem a doçura de uma árvore a
dar-lhe sombra. É que os sombrios olhos alentejanos precisam encher-se de
infinito, precisam das amplas extensões onde o ar corre liberto, e o Sol, pelas
tardinhas solitárias, adormece cansado, imperador aborrecido do seu trágico
gozo de incendiar. Justino Urbano fixou por largo tempo o “monte” do compadre
Gabriel; depois, lentamente foi-se levantando, apanhou o chapéu, o lenço, que
dobrou cuidadosamente, deu dois passos para a frente, outros dois para trás e
por fim parou, indeciso, sem saber o que havia de fazer.
— Não
querem lá ver vossemecês a minha vida! — resmungou em voz alta.
De
súbito, encolhendo os ombros, raivoso e aborrecido, vociferou num ar de grande
resolução:
— Pois
vou-me embora, pronto! Quem quiser que lho vá dizer!
E a
passos rápidos, sempre resmungando, voltou costas à colina, onde a grande casa
quadrada alvejava ainda a grande distância, tomando o caminho de casa.
Nada!
Que ele tinha dois filhos que eram como duas medalhas e não queria
acarretar-lhes desgraça falando em desgraças, não queria matá-los levando
notícias de morte a um pobre homem que nunca lhe tinha feito mal nenhum!
“E quem
sabe lá!”, continuava ele no seu descosido monólogo. “Estas coisas tão longe
nunca uma pessoa assente lhes pode dar credo logo às primeiras. Os governos lá
estavam para dar às pessoas estas tristes notícias, que eles lá é que sabem
quem vive e quem morre. Não era só décimas e mais décimas em cima de um homem a
pontos de, a bem dizer, lhe levarem quase a seara toda! O compadre Gabriel
havia de o saber, que as más novas sabem-se sempre! Antes se não soubessem!”,
rematava num suspiro.
— Nada,
nada! — repetia. — Não, que eu tenho dois filhos!
E no
supersticioso medo, cheio de inquietação e egoísmo que de repente lhe oprimia o
coração como numa tenaz de ferro, olhava desvairado a imensidade daquela terra
que o cercava, como se ela lhe fosse cair toda às pazadas sobre os corpos
inanimados dos filhos.
Quem o
visse de longe tomá-lo-ia por um bêbado, coisa que o sisudo lavrador nunca
tinha sido em dias da sua vida, tais eram os gestos e a raiva com que sacudia o
chapeirão e o grande lenço de chita vermelha, desfraldado como um pendão de
revolta, a que de vez em quando limpava a cara alagada.
Quando
chegou à herdade, a filha, que o não esperava tão cedo, por pouco não deixou
cair a arregaçada de ovos que trazia da capoeira ao vê-lo, de camisa
desabotoada, o chapeirão derrubado para a nuca, o sobrecenho carregado; e mais
assustada ficou quando o viu arremessar para cima do grande poial da porta da
cozinha, onde àquela hora se estendia já uma nesga de sombra, o lenço que
trazia na mão.
Não se
atreveu a interrogá-lo, nem o velho lhe deu tempo.
—
Vai-me buscar um púcaro de água! Quem quiser que lho diga!! Eu é que não estou
para isso! — trovejou, deixando-se cair para cima do poial.
A
rapariga entrou na cozinha, donde voltou, passados instantes, com um grande
púcaro de barro cheio de água fresca e, enquanto o pai bebia, sôfrego, a água
límpida, ficou-se a olhar para ele, interdita e inquieta.
— Mas
vossemecê não foi às Chãs?... — perguntou-lhe a medo.
— Não —
tornou o velho numa voz mais doce. — Não tive ânimos. Faltou-me a coragem.
Ainda cheguei ao Caminho Velho. Depois, assim que de lá avistei a casa, voltei
para trás. Quem quiser que lho diga!
E,
depois de uma pausa, murmurou em ar de confidência:
— Tu
bem sabes que o compadre Gabriel, desde aquela doença, nunca mais ficou bom.
Tem lá assim a modos que umas ideias esquisitas... Não ficou lá muito certo!
Tive medo que lhe desse alguma coisa, que ficasse para aí maluco, ou...
Deteve-se,
vendo debuxar-se nos lábios da Nazaré um levíssimo sorriso.
— Vocês
são mesmo umas cabras! — bradou, dando uma forte palmada no poial. — Tudo é uma
risota! Tudo é uma risota!
A
rapariga voltou a cara e ficou muito corada, entretendo-se a enrolar e a
desenrolar a ponta do aventalito de chita. O velho caiu nas suas meditações,
olhando vagamente o muro branco, em frente, onde o sol batia de chapa.
— Se
vossemecê quisesse... — arriscou a rapariga, numa vozita receosa.
O velho
voltou-se para ela, interrogando-a com o olhar.
— A ti
Ana passa aí a noite. Hoje é quarta-feira e ela foi à vila com o Roque, que eu
vi-os passar de manhãzinha. Diz-se-lhe a ela e...
— Ora é
isso mesmo! Tiveste boa ideia! — interrompeu o pai. — A ti Ana criou o rapaz,
vai ter muita pena, mas o pai sempre é pai, e ninguém melhor do que ela lho
pode dizer. Tiveste boa ideia. Pois é a ti Ana mesmo que lho há de dizer!
***
Efetivamente,
ao sol-posto, a ti Ana passou montada no burrito que o Roque, um garoto de
rosto vivo e corpo desempenado, levava brandamente pela arreata, a caminho do
«monte». A Nazaré tinha-a ido esperar à entrada do montado que cortava a meio o
atalho que ia direito às Chãs.
—
Pareces uma sardinha a assar nas brasas! — gritou-lhe de longe a ti Ana, a rir,
ao vê-la aparecer, delgada e morena, sobre o horizonte avermelhado, onde o Sol
se sumia lentamente.
Quando,
porém, meia hora depois, a ti Ana tornou a montar o burrito a que o Roque tomou
a arreata num gesto de impaciência, pois era quase noite e as Chãs ficavam
longe, a pobre velha já não ria; levava mais vinte anos sobre os ombros
curvados, e os olhos tinham-se-lhe cavado subitamente, cegos das mais dolorosas
lágrimas que uns olhos podem chorar.
O irmão
ainda mourejava lá por fora quando ela chegou a casa. Chegou dali a bocado, já
noite fechada, com o gado. Da cozinha, onde punha a mesa para a ceia, ajudada
pela afilhada, uma filhita de um criado que tinha puxado para casa, ouvia-se o
vozear dos homens, o tropear dos machos nas pedras do pátio, de vez em quando o
mugido profundo e lamentoso de um boi, o ladrar incessante dos cães, a
distância. A ti Ana parava de momento a momento na sua lida e ia
disfarçadamente à porta da cozinha, para que a pequena não visse limpar à ponta
do lenço preto os olhos que se lhe inundavam de lágrimas teimosas.
Quando
o irmão transpôs a porta da cozinha, conversando com os dois criados, deu-lhe
as boas-noites em voz sumida e foi numa tremura que serviu a ceia, sem dar
palavra.
Quando
acabaram de comer, o irmão levantou-se e, como de costume, nas noites abafadas
de verão, foi fumar um cigarro, sentado num poial de tijolo que corria a todo o
comprimento da casa e donde se avistavam, em noites luarentas, os “montes”
muito brilhantes, engastados na meia luz dos outeirinhos suaves, correndo
brandamente até às altas serranias de Espanha.
—
Estava muita gente na feira? Trouxeste as cordas? — perguntou-lhe ele de lá,
ouvindo-a ainda lidar na cozinha.
—
Trouxe — respondeu ela num murmúrio.
—
Sabes? — disse ele —, aquelas terras de semeadura da banda de cá do rio, as do
ti Samuel, estão para vender. Fui hoje vê-las. Quando o rapaz voltar... Aquilo
era tudo uma herdade. Não te lembras?
Ela não
pôde responder, a garganta opressa pelos soluços.
Ele
continuou:
— Bem
boa seara, a do Brás! A terra é igual... Eu não tenho agora dinheiro, mas se
elas não se venderem até lá, quando o meu rapaz voltar...
— Ó
Gabriel — conseguiu ela articular, transpondo a porta da cozinha e ficando de
pé ao lado dele. — Não sei o que me adivinha o coração... Há quase um ano que
não temos carta do Justino... Se lhe tivesse acontecido alguma coisa?...
O
velho, sobressaltado, levantou para ela o rosto, subitamente de uma palidez de
cera.
Via-se
como de dia. O luar era uma cascata de luz despenhando-se dos outeiros.
Inundava e submergia tudo. As sombras tinham-se refugiado aos cantos, muito
encolhidinhas, expulsas de toda a parte pelo dilúvio; e o manancial de luz
correndo pelas colinas arredondadas, pelos vales fugidios, perdendo-se nos
longes, era de minuto a minuto mais farto e transparente, alagando os “montes”
muito caiados, erguidos a meio das encostas ou nos altos, de uma brancura
milagrosa.
—
Sim... — gaguejou ela. — Soa-se para aí que o nosso Justino...
E já
com as lágrimas a correrem-lhe em fio pela cara abaixo:
— Foi
em casa do compadre Justino que mo disseram, hoje mesmo, quando voltava da
feira. Receberam carta do Chico em que dizia que o nosso Justino, coitadinho,
tinha morrido, lá para aquelas terras do interior...
Foi tão
desvairado o olhar que o velho lhe lançou que ela teve medo e apressou-se a
dizer, enxugando as lágrimas:
—
Ninguém nos mandou dizer a nós. Tem fé, Gabriel! Quem sabe lá! Pode ser que não
seja assim...
O velho
não respondeu, mas deixou pender a cabeça e os braços, num ar de desolação tão
atroz que a ti Ana correu para ele e, levantando-lhe a cabeça, procurou
animá-lo. Ele, sem forças para a interrogar, tinha fechado os olhos como se
esperasse o golpe supremo, resignado.
—
Então, Gabriel! Tem ânimo, homem! Pode ser, pode muito bem ser que o nosso
Justino volte. Isto há de ser tudo mentira! O padrinho diz o mesmo. Lá dos
governos é que têm obrigação de dizer quem vive e quem morre. A gente cá não
sabe nada. Então, Gabriel!
O velho
ergueu lentamente a mão trêmula, para que a irmã se calasse e, numa voz que mal
se ouvia, murmurou:
—
Deixa-me sozinho.
E como
ela se preparasse para responder, ele repetiu a súplica no mesmo tom muito
doce, na mesma voz sem timbre:
—
Deixa-me sozinho.
Ela não
ousou desobedecer-lhe. Fez-lhe a vontade e entrou na cozinha, reprimindo os
soluços que lhe afogavam o peito. Ao retirar-se para o seu quarto, depois de
tudo arrumado, foi à porta espreitá-lo; viu-o na mesma posição, quase deitado
sobre o banco, a cabeça pendida para o peito, os braços caídos.
—
Vou-me embora, Gabriel — disse-lhe muito baixinho.
— Tem
cuidado com a porta da cozinha. Vê lá, não a deixes aberta...
Ele não
respondeu.
Quando
se sentiu completamente só, e o silêncio o envolveu como as rígidas pregas de
um sudário, sacudiu o torpor em que caíra, levantou-se lentamente e deu uns
passos pelo pátio. Depois, sem lançar sequer um olhar para a porta da cozinha,
aberta de par em par, encaminhou-se para a horta, de que se via alvejar à
distância o murozinho branco. Empurrou o portão de ferro que nunca se fechava.
Na bela terra alentejana não há ladrões porque não há fome, e o lavrador não é
desconfiado. Entrou. A horta com o muro à volta, baixo, caiado de fresco, fazia
pensar num alegre e romântico cemitério de aldeia, onde mortos dormissem
descansadinhos, na paz do Senhor.
O velho
sentou-se numa pedra rente à terra e abraçou num olhar vago os talhões bem
tratados, o regato de água límpida que cortava a horta, para as regas, o
laranjal, massa sombria ao fundo, donde vinha em lufadas um ar carregadinho de
perfumes. A lua, espreitando por cima do muro, deslizando por entre os ramos
das árvores, caía de borco sobre a fonte, e os seus mil raios prateados eram na
água outros tantos barquinhos luminosos que as gotas, caindo da bica em branda
cadência, faziam vogar e submergir-se. O regato, a seus pés, corria sem cessar,
num estonteamento de garoto, rindo a bom rir por entre o morangal até sumir-se
lá ao canto, junto ao muro, na sua fofa caminha de musgos de veludo
verde-escuro.
O velho
abrangeu tudo aquilo num olhar que a pouco e pouco se ia tornando mais
consciente, sorveu o ar com a ânsia de quem se sente asfixiar e levantou a
cabeça num gesto de desafio e de orgulho.
Ah,
não! Não podia ser! O seu filho não podia ter morrido assim, longe dele, longe
da terra, longe de tudo que o vira nascer, de tudo que o vira crescer e
fazer-se homem! Ah, não! Não podia ser! O filho!... O seu menino, o seu rapaz,
que tanto lhe custara a criar sem mãe, que tantos cuidados lhe dera, que só a
fraqueza do seu amor deixara partir assim à aventura como seu desejo fora, o seu
maior sonho de riqueza, teria desaparecido assim como uma pedra do chão, um
punhado de terra, uma haste de erva rasteira, sem nada ter ficado dele, nem ao
menos um túmulo, um montão de terra num cemitério, com uma cruz ao alto a
proteger-lhe o sono!
E aquelas
árvores, que já ali estavam quando ele nascera, que as nortadas tinham
sacudido, queimadas pelas geadas, despidas e açoitadas pelas mãos brutais do
Inverno, continuavam ali, continuavam a viver, poupadas pelos anos, protegidas
pelo destino, intactas, quase iguais às que ele vira em pequenino!
Ah,
não! Não podia ser!...
E a
esperança foi-se-lhe insinuando no peito, toda a noite, a passos leves,
cautelosa e traiçoeira. Um clarão de loucura atravessou-lhe as pupilas baças, e
os cantos duros da boca torceram-se num jeito de sorriso. Levantou mais a
cabeça. Uma quase certeza invadia-lhe a alma torturada, fazia-lhe bater o
coração como se tivesse vinte anos e um grande milagre lho florisse como um
altar. A sua imaginação, sempre um pouco insensata, apresentou-lhe o filho
cheio de força e saúde, com as mãos plenas de riquezas, de volta à casa onde
nascera, comprando terras, todas as terras em volta, as terras de pão que
ninguém, a peso de ouro, recusaria vender-lhe, das Chãs a maior herdade
daquelas redondezas, daquelas vinte léguas até serras de Espanha.
E,
quando, de manhãzinha, o Sol assomou, todo cor-de-rosa, no horizonte vestido de
cores pálidas, de um louro de topázio, de um suave lilás de anémona, num dia
verde translúcido de certas asas de libélulas, o nosso homem tinha tanto a
certeza de que o filho havia de voltar, e voltar rico, como tinha a certeza de
existir, certeza firme e funda como firmes e fundas aquelas árvores tinham
vivido quase intactas, anos e anos pregadas ao duro chão alentejano.
E daquele
dia em diante, acentuando-se a loucura, mais se lhe meteu em cabeça a cisma de
que o filho estava vivo e voltaria rico, e começou por toda a parte a falar com
grande entusiasmo da compra de terras que ia fazer, chegando a entrar em
negociações com os proprietários que, conhecendo-lhe a mania, abanavam
gravemente a cabeça com um misto de comiseração e ironia e uma grande malícia
nos olhos escuros, semicerrados.
Passaram-se
assim dez anos. Nasceu gente e morreu gente; voltou remediado e de saúde o
filho do senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas; o mundo continuou nas
suas voltas e reviravoltas eternamente incógnitas ao nosso entendimento, mas do
Justino do Gabriel das Chãs é que nunca se soube nem novas nem mandados. A
pouco e pouco, um primeiro, outros depois, todos o foram esquecendo... Só o pai
continuava à sua espera, certo do seu regresso como no primeiro dia. “Quando o
meu rapaz voltar...”, dizia ele...
Ora
deu-se o caso que, um belo domingo de Fevereiro, estando o senhor Justino
Urbano a acabar de jantar em companhia dos dois filhos, viram com grande
surpresa entrar pela porta dentro o vulto de um desconhecido, um vulto estranho
e inquietante, que fez soltar à Nazaré um grito de terror.
Parecia
efetivamente um maltês, um desses mendigos vagabundos que costumam rondar pelas
herdades ao lusco-fusco, rosnando a súplica, que é quase uma ameaça, da tigela
da sopa e do agasalho para a noite. Vinha enrolado quase até às sobrancelhas
numa manta velha, cujas pontas tocavam o chão; trazia na mão direita um grosso
cajado, a que se arrimava, na esquerda um saquinho de chita, onde mal podia
caber uma muda de roupa.
Mal
podendo ter-se nas pernas, amarelo como um círio, o homem desembuçou-se um
pouco, encostou-se à porta e, numa voz que a emoção enfraquecia e os soluços
embargavam, murmurou:
—
Padrinho! Sou eu...
O
senhor Justino Urbano deu um salto como se um aguilhão o picasse, ao reconhecer
naquele espectro o afilhado, e correu para ele, abraçando-o a rir e a chorar,
num alvoroço.
— Ó
Justino! Ó rapaz!
A Nazaré,
debulhada em lágrimas, e o Francisco foram-no amparando, levando-o devagarinho
para uma cadeira baixa, ao cantinho da chaminé.
O
senhor Justino Urbano parecia doido. Fazendo grandes gestos, não deixando falar
ninguém, fazia andar tudo numa poeira, dando ordens e mais ordens, todo
entregue à mais inebriante alegria da sua vida.
— Deixa
lá, homem! Tira-te daí, Francisco — berrava para o filho.
—
Deixa-o tomar ar, cos diabos! Vai buscar lenha seca à loja! E tu, boca aberta —
gritava voltando-se para a filha, que, de pé, considerava o Justino com os
olhos rasos de água —, que estás para aí parada como um andor?! Despacha-te!
Vai matar um frango! Põe água a ferver, anda mulher!...
— Ora
esta! — dizia para o afilhado. — Uma assim nunca na minha vida vi! Ora o
Justino!... Mas como vieste tu cá parar ao fim de tantos anos?!
O
Justino sorria enlevado, estendendo à chama as mãos muito magras e trêmulas.
Como
tinha vindo cá parar!... Como os regatos vão parar ao mar, a planta ergue a
haste para o Sol e as nuvens se fundem nos horizontes! A terra chamara-o sempre
e, longe dela, nunca a sorte o bafejara, nunca! Ai, as saudades que ele tinha
tido! Naquelas terras de África exuberantes e riquíssimas, entre aqueles
extensos milharais de um verde intenso e cru, no meio toda aquela opulenta
vegetação carnuda e forte, crescendo à doida, lamentara do mais fundo da sua
cismática e austera alma alentejana os seus campos incultos, as suas charnecas
bravias, o cheiro a feno, a ervas amargas, a tostado, os seus pequeninos prados,
colchas bordadas a malmequeres e a botões de ouro que a Primavera estendia à
beira dos raros regatos, os ondulantes trigais salpicados de papoulas, toda a
sua terra a saber a rosmaninho e a alecrim, toda a sua linda província
recolhida e calma, que ele evocava como uma doce rapariga de rosto moreno,
olhos baixos e boca séria. Ai, as saudades que ele tinha tido!
E o
Justino, em voz muito fraca e ansiosa, depois de tomar a pequenos goles a
chávena de caldo muito apetitosa, a cheirar a hortelã, que a Nazaré lhe
preparara num instante, e de ter chupado uma asita e uma perna de frango,
pôs-se a contar aos três, que o ouviam cheios de piedade, a sua triste
história, história de desilusão e amargor. Os anos de luta e de esperança
primeiro, as suas ambições, os seus sonhos; depois a sua partida para o
interior, o roubo de que tinha sido vítima, a doença, as malditas febres, a
falta de recursos, por fim, o hospital, a vergonha que alguém soubesse na terra
a miséria em que caíra, o desânimo que dele se apoderara e que o fizera
permanecer ignorado e esquecido, dado por morto durante todos aqueles anos.
Depois, ao sentir aproximar-se a morte, a ansiedade de partir, de vir abraçar
os seus, de morrer na sua terra, na sua cama, de vir ver a sua casa e os seus
campos. A ideia de ficar para ali, abandonado como um cão, sem ninguém que lhe
fechasse os olhos, enchia-lhe a alma de pavor. Numa voz que de vez em quando se
molhava de lágrimas, contou depois a medonha odisseia da viagem, tudo o que
tinha sofrido, pensando não chegar vivo a casa, com o pensamento atroz de
morrer no mar, de ser atirado para os peixes com um peso aos pés, como um
bocado de carne podre. Mas conseguira chegar a Lisboa, depois à vila. Por uma
vez tivera sorte! Pusera-se logo a caminho, a pé, pois gastara os últimos
cinco réis e já não se importava
de morrer, agora que estava na sua rica terra da sua alma!
— Qual
morrer, nem qual carapuça! — bradou o senhor Justino Urbano, dando uma palmada
em cima da mesa que fez tilintar a tigela e o copo. — Quem é que fala em
morrer? Com uma açordinha todos os dias ao levantar, umas migas com chouriço e
um bom copázio de vez em quando, crias carne e ficas rijo e fero num mês! O
Francisco também assim chegou um pelém! E olha para ele, a ver se o conheces!
A
Nazaré e o irmão enxugavam os olhos disfarçadamente. O Justino sorriu, menos
pálido, menos trêmulo na atmosfera de bem-estar e de cordialidade de que se
sentia rodeado.
— Agora
— disse o senhor Justino Urbano —, lá para a tardinha, quando te sentires com
mais força, põe-se o macho ao carro e vamos até às Chãs.
O
Justino ergueu para ele os olhos brilhantes de febre e atreveu-se a fazer a
pergunta que desde a chegada se lhe adivinhava nos lábios. A medo murmurou:
— E a
minha tia?... E o meu pai?...
— A tua
tia — respondeu o senhor Justino Urbano, num tom um pouco contrafeito e
esforçando-se para dar às palavras um tom natural. — A tua tia lá está, muito
velhinha mas lá anda. Agora o teu pai... sim... vais vê-lo. — E em voz mais
firme: — Está rijo! Está bom!
O
Justino sorriu apaziguado e ficou-se a dormitar.
À
tardinha, o macho posto ao carro, o Justino bem instalado numa cadeirinha e bem
agasalhado num amplo capote à alentejana de farta gola de peles de raposa, os
três homens lá foram a caminho do Monte das Chãs.
A tarde
declinava já. Os campos abandonados espreguiçavam-se a perder de vista,
vagamente polvilhados de ouro, de um ouro pálido que esmaecia. O rapaz ia
calado, embevecido. A cada canto um fantasma, uma recordação; a cada volta da
estrada uma saudade. Os olhos prendiam-se-lhe a tudo, pareciam levar beijos no
olhar, como se pousassem devotamente em qualquer coisa de sagrado.
Passou
no alto um bando de pássaros negros. Só num pé, à beira de um regato, grave e
melancólico, uma cegonha cismava. O Justino sorriu. Era tudo como dantes. Nada
tinha mudado.
Ao
atravessarem o montado do Ribeiro, o padrinho voltou-se para trás e inquiriu,
num ar vagamente inquieto:
— Vais
bem?
Ele
acenou que sim com a cabeça.
Dali a
instantes o senhor Justino Urbano tossiu, assoou-se e, sem se atrever a olhar
para ele, tornou:
— O teu
pai... não o estranhes... Anda a modos que esquisito de há um tempo para cá...
E ao
ver o rapaz sobressaltar-se:
— Não é
nada de cuidado — apressou-se a explicar. — Velhice. Ele já deve andar pelos
setenta. É mais velho do que eu um bom par de anos.
O
silêncio caiu, cheio de pensamentos tristes. O Francisco, para se animar,
começou a assobiar as “saias” daquele ano. O macho caminhava sem se apressar,
contornando os montes, que, na brandura da tarde, pareciam recolher-se como
pássaros para dormir.
Ao
passarem pela azinheira grande, no cotovelo do atalho onde o senhor Justino
Urbano, anos antes, tinha passado uns momentos bem amargos, avistaram a casa, o
montado das Chãs, o murozinho da horta em baixo. O rapaz estendeu os braços
como se quisesse abraçar tudo num abraço muito apertado, muito cingido ao peito
alvoroçado e contente naquela bendita hora, tão sonhada, do regresso!
Era
noite quando chegaram. Inquietos, os cães ladraram raivosamente. A ti Ana,
corcovada e trôpega, abriu a porta da cozinha e espreitou para fora. Ao
reconhecer a voz do compadre Justino, recuou e foi à pressa buscar a candeia.
— Quem
é? — perguntou uma voz do canto da chaminé.
— Boas
noites — gritou da porta o senhor Justino Urbano. — Cá estamos, compadre! Venha
de lá uma pinga! Trago-lhe uma visita!
— Uma
visita... — balbuciou o velho, interrompendo o cigarro que estava e olhando
curiosamente para onde sentia um rumor de vozes.
Entraram
todos. A ti Ana, que ainda segurava a candeia, ao dar com os olhos no Justino
soltou um grito e agarrou-se num desespero ao Francisco, sem tirar os olhos do
sobrinho, que reconhecera logo.
Este,
sem poder avançar um passo, branco como a cal, ficou à porta, a olhar de longe
o pai sentado à chaminé.
— Ora essa,
compadre! — disse a voz trêmula do velho. — Entre. Cheguem-se cá para o lume.
O
senhor Justino Urbano avançou, amparando o afilhado, que tremia como varas
verdes. Entrou com ele na zona iluminada. A chama do lume e a luz da candeia
deram-lhe em cheio no rosto, descobrindo-lhe as feições como em pleno dia.
Todos
olhavam como que petrificados, os peitos opressos pela poderosa emoção da cena,
à espera...
O
velho, muito alquebrado, trêmulo, levantou a cabeça toda branca e cravou os
olhos no filho que de pé, ansioso, fremente, o olhava também, pronto a
lançar-se-lhe nos braços.
O velho
abriu mais os olhos. Um lampejo de lucidez atravessou-lhe, numa vertigem, as
pupilas baças, teve um sobressalto brusco, quase deixando cair o cigarro que
segurava, o rosto contraiu-se-lhe numa expressão de ansiedade, de angústia, num
esforço de compreensão, de tortura inenarrável, e os braços esgueiraram-se-lhe
instintivamente no largo gesto de quem vai abençoar.
Mas foi
um momento... Desviou os olhos... as pálpebras tornaram a descer brandamente
sobre as pupilas foscas que as sombras da loucura obscureciam. Estendeu o
braço, procurando no lume um ramo a arder onde acender o cigarro e,
indiferente, longínquo, tornou, na sua voz trêmula, num risinho pueril e
quebrado:
— Pois
é verdade, compadre... Quando o meu rapaz voltar...
(Florbela Espanca)[1]
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