quinta-feira, 21 de novembro de 2013

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: COMO FAZER UM?


O fichamento é um método de armazenamento, controle e consulta de informações sobre livros ou documentos através da elaboração de fichas, com conteúdo que facilita o estudo e a aprendizagem. Utiliza-se da mesma técnica típica do resumo e da resenha para a elaboração de seu conteúdo. Os fichamentos podem ser: de transcrição ou citação, de resumo ou conteúdo e de comentário ou crítico. Como distinguir cada um deles?
FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO OU DE CITAÇÃO
É aquele em que se passará o texto de um livro lido fidedignamente para a ficha. Com o uso de aspas no início e no final, para indicar a autoria, este tipo de fichamento destaca os trechos mais relevantes de uma obra. Cada trecho deve aparecer de modo sistematizado, resumido e com o número da página do trecho que foi transcrito para que as informações nele contidas sejam localizadas com facilidade.  
FICHAMENTO DE RESUMO OU CONTEÚDO
É aquele que traz a compilação das ideias de um autor, ou seja, dos assuntos principais abordados no livro ou documento. Utiliza as mesmas recomendações da elaboração de um resumo.
FICHAMENTO DE COMENTÁRIO OU CRÍTICO
É aquele que realiza uma avaliação completa do livro ou documento em todos os seus aspectos, principalmente nos assuntos principais levando em consideração a opinião de quem elabora a ficha. Lembra a estrutura de uma resenha.  

EXEMPLO DE UM FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO 
OU CITAÇÃO

Fernão Pessoa Ramos é autor do artigo
 "Cinema e Realidade" fichado abaixo

RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema e Realidade. In: XAVIER, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
    
1 – "A imagem CINEMATOGRÁFICA e a mediação da câmera inauguram uma forma imagética que pode ser singularizada. Esta singularidade deve ser contraposta à visão gradualista de sua evolução, muito em voga hoje em dia. (p. 141)
1.1 – A especificidade da cinematografia surge em proximidade para com outras imagens-câmera, inclusive a videográfica, em relação às quais as semelhanças que as aproximam são bem mais densas do que os detalhes técnicos que as distanciam.
1.2 – Trata-se de imagens que têm por base a mediação de uma máquina com evidentes traços comuns (a câmera), constituindo-se em uma situação de mundo que denominamos tomada, a partir da marca, do índice, dessa circunstância em um suporte  e manipulação.
1.3 – No caso da imagem móvel o suporte movimenta-se ritmicamente no aparelho, com breves e sucessivas paradas.
1.4 – No âmago de sua natureza localizamos o binômio tempo por movimento, binômio que Deleuze em seus livros dedica-se a estirpar através da interposição de uma forte camada estilística (o cinema moderno).
1.5 – Já no século XIX existem diversas máquinas que reproduzem o movimento, inicialmente utilizando-se de aparelhos múltiplos de fotografia como nas conhecidas experiências de Edward Muybridge ou através de um só aparelho como no “fuzil fotográfico” de Étienne Marey.
1.6 – Estas tentativas são seguidas, já em 1882, do registro dos movimentos em suportes fixos, através de procedimentos que, incluindo no objeto  fotografado, permitem a sobreposição de várias tomadas na  mesma  chapa   sem  que o registro seja o traço borrado  do movimento, característico de sua impressão fotográfica.  Para tal, são utilizados objetos claros em contraste com o obrigatório fundo negro, onde diversas posições do movimento do objeto fotografado podem ser sobrepostas sem velar o negativo. (p. 142)
1.7 – Trata-se da câmera cronofotográfica que Marey e seu auxiliar Georges Demeny desenvolvem na recém-inaugurada Estação Fisiológica, em Paris, onde trabalham com experiências científicas diversas, registrando movimento.
1.8 – A partir de 1888, com a introdução do suporte móvel no registro e, principalmente, a partir de 1890 com o suporte celulóide (sic) e a câmera cronofotográfica à película, já existe um nível de definição bastante satisfatório na apreensão fotográfica de movimentos diversos [...] seguido da projeção do mesmo movimento, em 1891, com o projetor cronofotográfico. As filmagens realizadas por Georges Demeny, no início dos anos 1890, são efetivamente impressionantes pela nitidez na reprodução do movimento.
1.9 – Thomas Edison apresenta uma primeira versão do quinetoscópio (visor individual de imagens móveis), que só seria explorado comercialmente em 1894 com a construção de um estúdio, o Black Maria, para captação de imagens. A câmera do quinetoscópio, chamada de quinetógrafo, era pouco ágil e muito grande, necessitando de condições especiais para seu aproveitamento pleno, geralmente, ambientes fechados.  (p. 142)
2 – A singularidade da imagem cinematográfica, tomando-se por base o ano de 1895 e a máquina Lumière, não localiza-se (sic), portanto, na questão da reprodução do movimento fotográfico  mas na conjunção de uma série de fatores estéticos e econômicos que delineiam, de maneira espantosamente precisa, os futuros contornos imagéticos da reprodução e da exploração da representação do movimento em sua duração.  (p. 142)
2.1 – A historiografia tradicional localiza na projeção ampliada da imagem a principal deficiência do quinetoscópio  que teria sido vencida pelo cinematógrafo Lumière.
2.2 – Mais do que a projeção da imagem em sessão paga (que os irmãos Max e Emile Skladonowsky, entre outros pioneiros menos documentados, já haviam realizado na Alemanha em 1º de novembro de 1895), talvez possamos localizar o salto qualitativo da imagem móvel cinematográfica em outro degrau.
2.3 – Ao operacionalizar projetor e câmera em um mesmo pequeno e portátil aparelho os irmãos Lumière não só compuseram a fruição que seria a do espectador cinematográfico durante décadas [...], mas permitiram igualmente que a máquina-câmera tivesse condições para ocupar o lugar que seria o seu dali em diante: solta e imiscuída no mundo, extraindo do espetáculo a interação com o que lhe é exterior, sua primeira fonte de atração.
2.4 – Mais do que inventores de algo indefinido chamado cinema, Louis Lumière e seus operadores talvez tenham sido os primeiros cineastas, os primeiros fotógrafos do movimento, explorando com incrível agilidade as potencialidades estéticas da imagem-câmera produtora de imagem móvel e inaugurando um padrão imagético: movimento em profundidade de campo, primeiros planos, entrada e saída de campo e, mais do que tudo, um enquadramento refinado. (p. 143)
2.5 – Estes procedimentos fazem com que A Chegada do Trem na Estação de Ciotat seja pioneiro, não do cinema como nova imagem (o que efetivamente não foi, tendo sido produzido, provavelmente, já em 1896), mas pioneiro de uma estilística da imagem que já explora com agilidade as principais potencialidades estéticas proporcionadas pelo movimento com relação ao quadro em que se insere. Nas imagens Lumière encontramos finalmente as condições técnicas para a expressão do fascínio do movimento do mundo, já com o peso pleno de sua abertura para a indeterminação do transcorrer. O que surge na tela para os espantados espectadores é aquilo que nunca se viu antes, naquela forma: rolos de fumaça, grandes massas em movimento, velocidade, carros, transeuntes, ruas habitadas, faces e expressões familiares, paisagens remotas e insólitas, e mais do que tudo, movimento, o gosto pelo espanto provocado pelas formas inauditas do movimento.
2.6 – O que irá atrair o espectador não será apenas a imagem fotográfica deste mundo dotado de movimento mas os efeitos sensacionais deste movimento manipulado. Em outras palavras, a principal atração, neste primeiro momento, parece ser as potencialidades da câmera na reprodução e na variação do movimento daquilo que lhe foi exterior.
3 – É nesse quadro que podemos delinear a singularidade da imagem cinematográfica no campo imagético, em continuidade com outras imagens-câmera: dentro da abertura (que é a abertura da lente expondo o suporte) para as formas da vida e sua duração, conforme são experimentadas pelo sujeito, a partir de seu corpo, em interação com a exterioridade a que chamamos mundo. Abertura esta que se dá a partir de uma imagem que possui fortes traços analógicos, com evidentes similaridades, no contorno de suas formas, para com imagens especulares. Esta imagem, que imprecisamente denominamos cinematográfica, deve ser entendida como determinada em suas particularidades estruturais pela máquina através da qual é produzida (a câmera), em interação com a máquina que a veicula (o projetor ou aparelho exibido), evidentemente a partir do estilo criativo dos sujeitos que manipulam esta matéria-prima. (p. 144)
3.1 – Cinema é um denominação imprecisa pois restringe-se à forma fílmica (imagens, com estatuto ficcional ou não, exploradas através de uma disposição narrativa com um padrão predeterminado de duração), não tematizando as potencialidades da imagem-câmera que devemos pensar a imagem-câmera fílmica, pois muito de suas potencialidades advêm estruturalmente do material mesmo que a constitui. Em outras palavras, advêm da maneira através da qual a mediação da câmera conforma seus traços.
3.2 – Uma característica própria a esta imagem é, neste sentido, a constituição em bloco dos traços da imagem (o espaço do instante configurado em todos os seus elementos conjuntamente, em cada simultaneidade), a partir de uma situação de mundo, anterior ou simultânea à exibição, situação esta que denominamos tomada.
4 – Esses elementos são decorrência da natureza mais íntima da máquina que compõe a imagem-câmera e farão com que o cinema sinta em relação às artes modernas a conformação pictórica dominante no século XX, um nítido complexo de inferioridade. (p. 144)
4.1 – Complexo sobre o qual debatem-se (sic) a quase totalidade dos teóricos do cinema mudo ao tentarem afirmar o cinema como arte “pura” (e não como imitação da natureza), atacando, simultaneamente, a questão da especificidade (cinema não é teatro, não é literatura, etc.) e da semelhança surpreendente entre o automatismo na conformação da imagem-câmera e as formas reflexas, conforme emergem no mundo.
4.2 – A teoria do cinema francesa e americana dos anos 60 / 70 contém um misto de condenação “ontológica” de deficiências ideológicas da representação inerentes à natureza da imagem-câmera móvel, junto à esperança (e uma tábua normativa) de que procedimentos estilísticos possam contornar esta natureza da conformação câmera, em si mesma condenável. (p. 145)
4.3 – Entre os elementos expostos à forte condenação ideológica estão: a afirmação de uma noção de sujeito centrado e pontual que vem se conformar a partir de um ponto de vista privilegiado; a transparência do discurso, que esta imagem permite, acentuando a reificação da dimensão referencial da tomada; a negação da ênfase na reflexividade e na espessura do trabalho da representação que surge como inerente ao “dispositivo” cinematográfico; o fechamento quase-objetivo do universo representado que aparece constituído para além da incidência subjetiva em sua conformação, etc.
4.4 – Esse choque da consciência moderna com os traços [...] da forma câmera é antigo, podendo ser remontado aos vitupérios de Baudelaire, em meados do século XIX, contra a imagem fotográfica, sua forma perspectiva e a potencialidade de trazer o traço analógico do mundo como marca.
4.5 – [...] Esta conformação imagética, perspectiva e analógica, ironicamente destoa, em sua natureza mais íntima, do quadro ideológico que irá dominar a segunda metade do século XX e que se constitui a partir de um questionamento radical do sujeito todo-poderoso, seja como foco cognitivo exponenciando sua racionalidade, seja como ponto de vista a partir do qual a representação do mundo poderá se efetivar.
4.6 – A inserção da reflexão sobre a imagem cinematográfica no pensamento dominante de sua época (inserção que ocorre plenamente a partir dos anos 60-70, em particular dentro do chamado pós-estruturalismo francês, desembocando nas abrangentes análises deleuzianas dos anos 80), faz com que, muitas vezes, traços estruturais dessa imagem não possam ser tematizados com a abrangência e a relevância que lhe são devidos. (p. 145)
5 – O que Barthes busca [...] é foto que [...] seja não somente uma imagem qualquer mas “uma imagem justa”, a verdadeira, imagem que constitua e suscite não apenas a identidade da mãe mas sua verdade. Em suas palavras, “a ciência impossível do ser único”. Ser único, singularidade, que, para Barthes, somente a fotografia pode compor através da identidade e onde, pela dimensão do punctum, experiência pessoal do referente, vem delimitar a dimensão da verdade. (p. 146)
5.1 – É nessa conjunção entre experiência pessoal própria da figura da mãe e sua inserção naquilo que é particular à imagem fotográfica, que Barthes define o noema da fotografia como isso foi ou ainda é o que chama de intratável. (p. 147)
6 – Em artigo do início de sua carreira no qual aborda a imagem cinematográfica, Merleau-Ponty define com bastante precisão a inserção singular da câmera no mundo e suas consequências para a composição imagética: “uma boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste na admiração dessa inerência do eu ao mundo  e ao próximo, em nos descrever esse paradoxo e essa desordem, em nos fazer ver o elo entre o indivíduo e o universo, entre o indivíduo e seus semelhantes [...]. Pois o cinema está particularmente apto a tornar manifesta a união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo, e a expressão de um dentro do outro.” (p. 147)
6.1 – Essa característica do que Merleau-Ponty chama “cinema”, de aderir ao transcorrer da duração em que o sujeito está imerso, leva a que a identificação sujeito-câmera (identificação aproximativa certamente, e que se concretiza no campo da fruição do espectador) se aproxime das condições de percepção que são próprios da sensação de vida. E é essa proximidade da imagem-câmera em movimento com as condições de percepção do sujeito em sua inerência ao mundo e sua abertura a outrem que irá permitir ao espectador fundar sua fruição em torno da noção de presença da câmera no campo da tomada.
6.2 – É esta mesma inerência ao transcorrer e à sensação do sujeito desse transcorrer como duração que irá fazer com que a imagem-câmera em movimento, em sua tradição cinematográfica, seja pensada, dentro do corte fenomenológico, como “imagem do presente”, ou, em outro corte teórico (Deleuze), como “imagem qualquer”.
7 – Albert Laffay [...] define o cinema como a arte do presente, na medida desta aderência da câmera ao transcorrer, em sua abertura para a causalidade e o indeterminado, próprios à forma do acontecer na franja da consecução temporal. Noção de presente na qual está necessariamente embutida a dimensão da presença, aí fundadora daquilo que pode ser definido como simultaneidade do ser à duração, a sobredeterminando. (p. 148)
7.1 – No entanto, Laffay irá opor ao cinema como presente, como mundo, como aderência ao transcorrer, o que ele chama de grande mostrador. Conceito caro a uma das mais fortes correntes contemporâneas da análise cinematográfica, a narratologia, o grande mostrador, é, segundo as palavras de Laffay, o “mestre de cerimônias” que vira as páginas da narrativa cinematográfica, a instância narrativa que assume a mostração das imagens através da câmera. Um dos maiores obstáculos ao trabalho de Laffay é a sobreposição conceitual entre a forma particular cinema narrativo e a imagem-câmera pensada em sua generalidade.
7.2 – Para fugir da amarração conceitual do termo cinema e dar à reflexão de ambos uma dimensão mais ampla, podemos trabalhar essa interessante ideia do cinema como arte do presente, frisando-a como característica própria à imagem-câmera móvel, entendida em sua aderência ao transcorrer, para, em seguida, analisar em que medida a tradição fílmica irá trabalhar e manipular estilisticamente as imagens a partir dessas potencialidades.
7.3 – A definição do cinema como arte do presente contém para Laffay uma dicotomia que faz com que a ideia a ele atribuída, do cinema como “eterno presente” possa ser vista como simplista. É na contradição entre “presente” e indeterminação, acaso (da imagem) e “arte” / relato (do cinema) que irá se constituir o que conceitualiza como os “dois polos do cinema”. (p. 149)
8 – Pier Paolo Pasolini distingue de um modo mais definido imagem em movimento e cinema, o que o leva a evitar algumas das confusões que Laffay vê-se enredado ao tematizar as potencialidades da imagem-câmera ao transcorrer, à duração. (p. 149)
8.1 – Para Pasolini, o conceito de cinema adquire uma consciência particular ao ser oposto à noção de morte, que é identificada ao filme propriamente dito. Especialmente atraído pela dimensão cinema da imagem, pela tomada em sua adesão plena ao transcorrer, Pasolini possui belos trechos escritos onde analisa o cinema de vanguarda americano dos anos 60, e a tendência de alguns diretores em trabalhar com planos longuíssimos.
8.2 – Contra o cinema eleva-se então o filme, que “mata” através do corte, da montagem, dissipando a presença que se abre para o indeterminado sempre renovado e presente, do mesmo modo que para o sucessivo uniforme. O filme é a morte e o sentido, corte do plano-sequência infinito que dá significância à abertura inconclusa. Esta, enquanto permanece aberta, como cinema, é indeterminada e insignificante.
8.3 – Fazer cinema (e não filme), diz o diretor em uma definição particularmente inspirada, “é escrever sobre papel que queima.” A morte no fechamento da abertura do cinema ilumina retrospectivamente o plano-sequência, agora finito, fazendo com que “a linguagem da ação” possa fechar-se sobre si mesma compondo significância.
8.4 – Morrer, então, para o autor, “é absolutamente necessário, pois, enquanto estivermos vivos nos falta sentido”, a morte “compõe uma montagem fulgurante de nossa vida [...] e é graças a ela que nossa vida pode servir para nos exprimir”. Na relação entre cinema e filme, para Pasolini, está contida a abertura infinita da imagem-câmera para o presente e o sentimento trágico da finitude da vida, ao qual, como consolação, corresponde o corte de significado. Entre sentido e vida o cinema é, no limite, uma experiência impossível. É na contraposição desta impossibilidade que Pasolini intui tragicamente a dimensão do “seu” plano-sequência, e a maneira brusca e cristalizadora pela qual o findou. (p. 150)
9 – A potencialidade da imagem-câmera em aderir ao transcorrer pode ser compreendida em toda sua dimensão ao adicionarmos, à forma particular de inserção da câmera no mundo, a aparência com traços especulares de sua forma. É ela que faz com que sejam transferidas intuitivamente para a imagem-câmera potencialidades de designação referencial próprias à imagem reflexiva. Há todo um pensamento que tematiza o cinema sob o impacto dessa proximidade. (p. 150)
9.1 – [...] Para alguns dos chamados “impressionistas franceses” essa disposição particular dos traços da imagem-câmera, aliada à sua inserção no transcorrer, faz com que o mundo surja transfigurado, exponenciando uma intensidade. Para designar esta intensidade, Jean Epstein dizia que o cinema é como um vulcão. Imagem por excelência adequada para designar o vibrar da natureza que surge transfigurada na imagem, caracterizando a novidade que apresenta para a sensibilidade estética da época.
9.2 – Louis Delluc cunha o termo fotogenia para designar o efeito da intensidade: deslumbre, frisson, espanto. [...] Animismo e fotogenia são elementos centrais dessa nova representação do mundo. (p. 150)
10 – Anos mais tarde, Edgar Morin, em “Le Cinéma ou L’Homme Imaginaire”, irá descrever com outra ênfase essas potencialidades. Nos anos 50, toda uma tradição crítica forma-se pensando essa questão da grande alma do mundo na transfiguração da imagem- câmera. (p. 151)
11 – A manipulação das formas com aparência especular, que havia detonado o já mencionado animismo na vanguarda dos anos 20, surge então aqui dentro de uma temática que tem o cristianismo no horizonte e que lida com a produção de Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini, Robert Bresson e Carl Dreyer. É assim que Rohmer pode afirmar que “talvez por ser, entre as artes da imitação, o mais rudimentar, o mais próximo da reprodução mecânica, o cinema pode apreender mais detidamente a essência metafísica do homem e do mundo.” (p. 53)
12 – Essas potencialidades singulares da imagem-câmera adquirem relevo particular quando, à intensidade animista, vêm se sobrepor a dimensão do extraordinário. (p. 153)
13 – Tematizando esta particular intensidade da imagem-câmera dois autores da geração “anos 60” do Cahiers du cinéma, Pascal Bonitzer e Serge Daney, publicam, em março de 1972, artigo intitulado “L’Écrau du Fantasme”. [...] O artigo problematiza [...] a dimensão traumática aberta pelo trago imagético que a presença da câmera na circunstância da tomada determina.  (p. 155)
13.1 – Abordando um tema ao qual retornará outras vezes Bonitzer define de maneira crítica o que chama de paradigma da fera, “uma das metáforas mais radicais do real”. Presente no núcleo da sensibilidade baziniana, este paradigma determina uma estética que é antes de tudo uma ética da imagem em face da circunstância da tomada. Pode ser definida no paradoxo que impõe um limite à conformação da imagem-câmera traumática: “foi a câmera que ‘devorou’ a fera, mas poderia ter sido o contrário, a fera poderia ter devorado o câmera e o diretor”. Neste intervalo, ou na ameaça de sua concretização, situa-se a fruição do espectador. Seu fantasma, continua Bonitzer, “é ser o diretor; é ele que flui o Aufhebung [preservar ou elevar / movimento de transformação que acontece no fluxo temporal: grifo meu] desta luta mortal.”
13.2 – Metáfora da presença na circunstância da tomada e de seu traço na imagem, traz em si efeito amplo. De um lado traz o frisson: por exemplo, a comicidade da unidade espacial, a “marca” da fera, Chaplin e o leão na jaula. De outro, o dilema que traz seu limite, a imagem impossível: o selvagem cortador de cabeças que deixa de ser selvagem se não corta a cabeça do operador da câmera.
13.3 – Entre os dois delineia-se a posição do espectador (as fronteiras do campo onde pode manter sua posição espectorial) e uma ética da imagem. (p. 155)
14 – Em um texto já bem posterior, publicado nos anos 80, Bonitzer volta a utilizar um termo [...] cunhado por André Bazin para trabalhar com este paradoxo: o complexo de Nero. (p. 155)
14.1Definidor da fruição estética da imagem traumática, da imagem que dilata a máximo o “grau do real”, “excedendo toda figuração”, o complexo de Nero remete-nos à voracidade do espectador face a uma imagem onde “não basta mais caçar o leão, se ele não come os caçadores”, ou, em última instância, se não come a câmera. (p. 156)
15 – A intensidade baziniana da imagem, e o relacionamento privilegiado que o crítico mantém com este tipo imagético, só podem ser compreendidos se analisarmos o paradigma da unidade espacial a partir do que Bazin chama complexo de múmia. Recorte temporal do espaço unitário, figura da subjetividade espectoral que circunda e sobredetermina a ontologia da imagem baziniana, o complexo de múmia e a obsessão em preservar compõem o quadro em que a intensidade emerge e á fruída pelo espectador. (p. 158)
15.1 – É a partir desta potencialidade da imagem-câmera [...] que podemos ver emergir a intensidade e a transfiguração do real própria a esta forma imagética. É o saber do espectador (o saber da tomada) e sua obsessão – e não a imagem analógica – que diz ser este traço tremido índice de perigo, signo quase abstrato. 
16 – [...] Não se trata [...] de uma norma, mas de uma melancolia do espectador Bazin, face ao conflito insolúvel entre a intensidade preservada (singularidade no tempo exponenciada pela unicidade absoluta do morrer), e a “contradição” da infinita e banal reprodutibilidade da técnica, que adequa-se (sic) à capacidade da máquina-câmera em aderir ao transcorrer uniforme, como imagem-qualquer. Qualquer determinado então duplamente pela natureza infinita da reprodução própria à máquina, que parece poder coincidir, em sua natureza de formadora mecânica de imagens, com a banalidade os instantes quaisquer que se sucedem na uniformidade cotidiana. (p. 159)

16.1 – Estamos novamente face à natureza particular da imagem-câmera na representação do extraordinário, e os dilemas estilísticos que a envolvem. É aqui que Daney proíbe os maneirismos, os travellings e as fusões, que Bazin sente a necessidade de um limite no mostrar e opta pela elipse disfarçando seu olho guloso, que Pasolini estabelece a morte como elemento limítrofe do cinema, que Bonitzer é ácido para com a voracidade do tipo Nero tentando delimitar um campo espectoral, que Barthes é o poeta melancólico da intensidade e de seu efeito. É importante frisar que o efeito traumático não se reduz à imagem violenta mas configura-se, de maneira mais ampla, na gama de transfigurações abertas pela presença da câmera na circunstância da tomada. É dentro deste campo que se expressa a reação do espanto epsteiniano face às novas formas do mundo transfigurado, a melancolia face a preservação do traço e a tensão espectorial aberta pela intensidade traumática que estoura a espessura da significação. Elementos que delineiam o leque restrito, mas ainda pouco estudado, das potencialidades da conformação imagética que tem seus traços – e na circunstância de sua composição – a marca da mediação dessa máquina de imagens que denominamos câmera". (p. 60)


8 comentários:

  1. Olá, estou com uma dúvida, esses 16 fichamentos seria considerado apenas 1 ou 16 fichamentos de transcrição?

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    1. Apenas um fichamento. É que os trechos transcritos em negrito correspondem ao tópicos frasais de cada parágrafo. Os que se subdividem, são as informações adicionais de cada parágrafo.

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  2. como são do mesmo texto seria apenas um porque voce usou apenas uma referencia

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  3. Tenho uma duvida.Essas fichas podem ser colocadas em parágrafo do geito que está ai com as aspas abrindo o começo do fichamento e fenchando o final dele

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  4. Este fichamento foi dividido em 16 pontos porque fiz a transcrição por parágrafo. Cada ponto é um parágrafo que resolvi transcrever do texto e, como é um fichamento de transcrição, eu coloquei aspas apenas no primeiro parágrafo e no último, de modo a enfatizar a autoria.

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  5. Eu não entendi qual a regra que itiliza para para defini 1 depois 1.1 1.2

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    1. Os trechos transcritos em negrito correspondem ao tópicos frasais de cada parágrafo. Os que se subdividem, são as informações adicionais de cada parágrafo.

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