O fichamento é um método de armazenamento, controle e consulta de informações sobre livros ou documentos através da elaboração de fichas, com conteúdo que facilita o estudo e a aprendizagem. Utiliza-se da mesma técnica típica do resumo e da resenha para a elaboração de seu conteúdo. Os fichamentos podem ser: de transcrição ou citação, de resumo ou conteúdo e de comentário ou crítico. Como distinguir cada um deles?
FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO OU DE CITAÇÃO
É aquele em que se passará o texto de um livro lido fidedignamente para a ficha. Com o uso de aspas no início e no final, para indicar a autoria, este tipo de fichamento destaca os trechos mais relevantes de uma obra. Cada trecho deve aparecer de modo sistematizado, resumido e com o número da página do trecho que foi transcrito para que as informações nele contidas sejam localizadas com facilidade.
FICHAMENTO DE RESUMO OU CONTEÚDO
É aquele que traz a compilação das ideias de um autor, ou seja, dos assuntos principais abordados no livro ou documento. Utiliza as mesmas recomendações da elaboração de um resumo.
FICHAMENTO DE COMENTÁRIO OU CRÍTICO
É aquele que realiza uma avaliação completa do livro ou documento em todos os seus aspectos, principalmente nos assuntos principais levando em consideração a opinião de quem elabora a ficha. Lembra a estrutura de uma resenha.
EXEMPLO DE UM FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO
OU CITAÇÃO
Fernão Pessoa Ramos é autor do artigo "Cinema e Realidade" fichado abaixo |
RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema e Realidade. In:
XAVIER, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
1 – "A imagem CINEMATOGRÁFICA e a mediação da
câmera inauguram uma forma imagética que pode ser singularizada. Esta
singularidade deve ser contraposta à visão gradualista de sua evolução, muito
em voga hoje em dia. (p. 141)
1.1 – A
especificidade da cinematografia surge em proximidade para com outras
imagens-câmera, inclusive a videográfica, em relação às quais as semelhanças
que as aproximam são bem mais densas do que os detalhes técnicos que as
distanciam.
1.2 – Trata-se de
imagens que têm por base a mediação de uma máquina com evidentes traços comuns
(a câmera), constituindo-se em uma situação de mundo que denominamos tomada,
a partir da marca, do índice, dessa circunstância em um suporte e manipulação.
1.3 – No caso da
imagem móvel o suporte movimenta-se ritmicamente no aparelho, com breves e
sucessivas paradas.
1.4 – No âmago de sua
natureza localizamos o binômio tempo por movimento, binômio que Deleuze em seus
livros dedica-se a estirpar através da interposição de uma forte camada
estilística (o cinema moderno).
1.5 – Já no século
XIX existem diversas máquinas que reproduzem o movimento, inicialmente
utilizando-se de aparelhos múltiplos de fotografia como nas conhecidas
experiências de Edward Muybridge ou através de um só aparelho como no “fuzil
fotográfico” de Étienne Marey.
1.6 – Estas
tentativas são seguidas, já em 1882, do registro dos movimentos em suportes
fixos, através de procedimentos que, incluindo no objeto fotografado, permitem a sobreposição de
várias tomadas na mesma chapa
sem que o registro seja o traço
borrado do movimento, característico de
sua impressão fotográfica. Para tal, são
utilizados objetos claros em contraste com o obrigatório fundo negro, onde
diversas posições do movimento do objeto fotografado podem ser sobrepostas sem
velar o negativo. (p. 142)
1.7 – Trata-se da câmera
cronofotográfica que Marey e seu auxiliar Georges Demeny desenvolvem na recém-inaugurada
Estação Fisiológica, em Paris, onde trabalham com experiências científicas
diversas, registrando movimento.
1.8 – A partir de
1888, com a introdução do suporte móvel no registro e, principalmente, a partir
de 1890 com o suporte celulóide (sic)
e a câmera cronofotográfica à película, já existe um nível de definição
bastante satisfatório na apreensão fotográfica de movimentos diversos [...]
seguido da projeção do mesmo movimento, em 1891, com o projetor
cronofotográfico. As filmagens realizadas por Georges Demeny, no início dos
anos 1890, são efetivamente impressionantes pela nitidez na reprodução do
movimento.
1.9 – Thomas Edison
apresenta uma primeira versão do quinetoscópio (visor individual de imagens
móveis), que só seria explorado comercialmente em 1894 com a construção de um
estúdio, o Black Maria, para captação de imagens. A câmera do quinetoscópio,
chamada de quinetógrafo, era pouco ágil e muito grande, necessitando de
condições especiais para seu aproveitamento pleno, geralmente, ambientes
fechados. (p. 142)
2 – A singularidade da imagem cinematográfica,
tomando-se por base o ano de 1895 e a máquina Lumière, não localiza-se (sic), portanto, na questão da reprodução
do movimento fotográfico mas na conjunção
de uma série de fatores estéticos e econômicos que delineiam, de maneira
espantosamente precisa, os futuros contornos imagéticos da reprodução e da
exploração da representação do movimento em sua duração. (p. 142)
2.1 – A
historiografia tradicional localiza na projeção ampliada da imagem a principal
deficiência do quinetoscópio que teria
sido vencida pelo cinematógrafo Lumière.
2.2 – Mais do que a
projeção da imagem em sessão paga (que os irmãos Max e Emile Skladonowsky,
entre outros pioneiros menos documentados, já haviam realizado na Alemanha em
1º de novembro de 1895), talvez possamos localizar o salto qualitativo da
imagem móvel cinematográfica em outro degrau.
2.3 – Ao
operacionalizar projetor e câmera em um mesmo pequeno e portátil aparelho os
irmãos Lumière não só compuseram a fruição que seria a do espectador
cinematográfico durante décadas [...], mas permitiram igualmente que a
máquina-câmera tivesse condições para ocupar o lugar que seria o seu dali em
diante: solta e imiscuída no mundo, extraindo do espetáculo a interação com o
que lhe é exterior, sua primeira fonte de atração.
2.4 – Mais do que
inventores de algo indefinido chamado cinema, Louis Lumière e seus operadores
talvez tenham sido os primeiros cineastas, os primeiros fotógrafos do
movimento, explorando com incrível agilidade as potencialidades estéticas da
imagem-câmera produtora de imagem móvel e inaugurando um padrão imagético:
movimento em profundidade de campo, primeiros planos, entrada e saída de campo
e, mais do que tudo, um enquadramento refinado. (p. 143)
2.5 – Estes
procedimentos fazem com que A Chegada do Trem na Estação de Ciotat seja
pioneiro, não do cinema como nova imagem (o que efetivamente não foi, tendo
sido produzido, provavelmente, já em 1896), mas pioneiro de uma estilística da
imagem que já explora com agilidade as principais potencialidades estéticas
proporcionadas pelo movimento com relação ao quadro em que se insere. Nas
imagens Lumière encontramos finalmente as condições técnicas para a expressão
do fascínio do movimento do mundo, já com o peso pleno de sua abertura para a
indeterminação do transcorrer. O que surge na tela para os espantados
espectadores é aquilo que nunca se viu antes, naquela forma: rolos de fumaça,
grandes massas em movimento, velocidade, carros, transeuntes, ruas habitadas,
faces e expressões familiares, paisagens remotas e insólitas, e mais do que
tudo, movimento, o gosto pelo espanto provocado pelas formas inauditas do
movimento.
2.6 – O que irá
atrair o espectador não será apenas a imagem fotográfica deste mundo dotado de
movimento mas os efeitos sensacionais deste movimento manipulado. Em outras
palavras, a principal atração, neste primeiro momento, parece ser as
potencialidades da câmera na reprodução e na variação do movimento daquilo que
lhe foi exterior.
3 – É nesse quadro que podemos delinear a
singularidade da imagem cinematográfica no campo imagético, em
continuidade com outras imagens-câmera: dentro da abertura (que é a abertura da
lente expondo o suporte) para as formas da vida e sua duração, conforme são experimentadas
pelo sujeito, a partir de seu corpo, em interação com a exterioridade a que
chamamos mundo. Abertura esta que se dá a partir de uma imagem que possui
fortes traços analógicos, com evidentes similaridades, no contorno de suas
formas, para com imagens especulares. Esta imagem, que imprecisamente
denominamos cinematográfica, deve ser entendida como determinada em suas
particularidades estruturais pela máquina através da qual é produzida (a
câmera), em interação com a máquina que a veicula (o projetor ou aparelho
exibido), evidentemente a partir do estilo criativo dos sujeitos que manipulam
esta matéria-prima. (p. 144)
3.1 – Cinema é um
denominação imprecisa pois restringe-se à forma fílmica (imagens, com estatuto
ficcional ou não, exploradas através de uma disposição narrativa com um padrão
predeterminado de duração), não tematizando as potencialidades da imagem-câmera
que devemos pensar a imagem-câmera fílmica, pois muito de suas potencialidades
advêm estruturalmente do material mesmo que a constitui. Em outras palavras,
advêm da maneira através da qual a mediação da câmera conforma seus traços.
3.2 – Uma
característica própria a esta imagem é, neste sentido, a constituição em bloco
dos traços da imagem (o espaço do instante configurado em todos os seus
elementos conjuntamente, em cada simultaneidade), a partir de uma situação de
mundo, anterior ou simultânea à exibição, situação esta que denominamos tomada.
4 – Esses elementos são decorrência da natureza
mais íntima da máquina que compõe a imagem-câmera e farão com que o cinema
sinta em relação às artes modernas a conformação pictórica dominante no século
XX, um nítido complexo de inferioridade. (p. 144)
4.1 – Complexo sobre
o qual debatem-se (sic) a quase
totalidade dos teóricos do cinema mudo ao tentarem afirmar o cinema como arte
“pura” (e não como imitação da natureza), atacando, simultaneamente, a questão
da especificidade (cinema não é teatro, não é literatura, etc.) e da semelhança
surpreendente entre o automatismo na conformação da imagem-câmera e as formas
reflexas, conforme emergem no mundo.
4.2 – A teoria do
cinema francesa e americana dos anos 60 / 70 contém um misto de condenação
“ontológica” de deficiências ideológicas da representação inerentes à natureza
da imagem-câmera móvel, junto à esperança (e uma tábua normativa) de que
procedimentos estilísticos possam contornar esta natureza da conformação
câmera, em si mesma condenável. (p. 145)
4.3 – Entre os
elementos expostos à forte condenação ideológica estão: a afirmação de uma noção
de sujeito centrado e pontual que vem se conformar a partir de um ponto de
vista privilegiado; a transparência do discurso, que esta imagem permite,
acentuando a reificação da dimensão referencial da tomada; a negação da ênfase
na reflexividade e na espessura do trabalho da representação que surge como
inerente ao “dispositivo” cinematográfico; o fechamento quase-objetivo do
universo representado que aparece constituído para além da incidência subjetiva
em sua conformação, etc.
4.4 – Esse choque da
consciência moderna com os traços [...] da forma câmera é antigo, podendo ser
remontado aos vitupérios de Baudelaire, em meados do século XIX, contra a
imagem fotográfica, sua forma perspectiva e a potencialidade de trazer o traço
analógico do mundo como marca.
4.5 – [...] Esta
conformação imagética, perspectiva e analógica, ironicamente destoa, em sua
natureza mais íntima, do quadro ideológico que irá dominar a segunda metade do
século XX e que se constitui a partir de um questionamento radical do sujeito
todo-poderoso, seja como foco cognitivo exponenciando sua racionalidade, seja
como ponto de vista a partir do qual a representação do mundo poderá se
efetivar.
4.6 – A inserção da
reflexão sobre a imagem cinematográfica no pensamento dominante de sua época
(inserção que ocorre plenamente a partir dos anos 60-70, em particular dentro
do chamado pós-estruturalismo francês, desembocando nas abrangentes análises
deleuzianas dos anos 80), faz com que, muitas vezes, traços estruturais dessa
imagem não possam ser tematizados com a abrangência e a relevância que lhe são
devidos. (p. 145)
5 – O que Barthes
busca [...] é foto que [...] seja não somente uma imagem qualquer mas “uma
imagem justa”, a verdadeira, imagem que constitua e suscite não apenas a
identidade da mãe mas sua verdade. Em suas palavras, “a ciência
impossível do ser único”. Ser único, singularidade, que, para Barthes, somente
a fotografia pode compor através da identidade e onde, pela dimensão do punctum,
experiência pessoal do referente, vem delimitar a dimensão da verdade. (p. 146)
5.1 – É nessa
conjunção entre experiência pessoal própria da figura da mãe e sua inserção
naquilo que é particular à imagem fotográfica, que Barthes define o noema
da fotografia como isso foi ou ainda é o que chama de intratável. (p.
147)
6 – Em artigo do início de sua carreira no qual
aborda a imagem cinematográfica, Merleau-Ponty define com bastante precisão a
inserção singular da câmera no mundo e suas consequências para a composição
imagética: “uma boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste
na admiração dessa inerência do eu ao mundo
e ao próximo, em nos descrever esse paradoxo e essa desordem, em nos
fazer ver o elo entre o indivíduo e o universo, entre o indivíduo e seus
semelhantes [...]. Pois o cinema está particularmente apto a tornar manifesta a
união do espírito com o corpo, do espírito com o mundo, e a expressão de um
dentro do outro.” (p. 147)
6.1 – Essa
característica do que Merleau-Ponty chama “cinema”, de aderir ao transcorrer da
duração em que o sujeito está imerso, leva a que a identificação sujeito-câmera
(identificação aproximativa certamente, e que se concretiza no campo da fruição
do espectador) se aproxime das condições de percepção que são próprios da
sensação de vida. E é essa proximidade da imagem-câmera em movimento com as
condições de percepção do sujeito em sua inerência ao mundo e sua abertura a
outrem que irá permitir ao espectador fundar sua fruição em torno da noção de
presença da câmera no campo da tomada.
6.2 – É esta mesma
inerência ao transcorrer e à sensação do sujeito desse transcorrer como duração
que irá fazer com que a imagem-câmera em movimento, em sua tradição
cinematográfica, seja pensada, dentro do corte fenomenológico, como “imagem do
presente”, ou, em outro corte teórico (Deleuze), como “imagem qualquer”.
7 – Albert Laffay [...] define o cinema como a
arte do presente, na medida desta aderência da câmera ao transcorrer, em sua
abertura para a causalidade e o indeterminado, próprios à forma do acontecer na
franja da consecução temporal. Noção de presente na qual está necessariamente
embutida a dimensão da presença, aí fundadora daquilo que pode ser definido
como simultaneidade do ser à duração, a sobredeterminando. (p. 148)
7.1 – No entanto,
Laffay irá opor ao cinema como presente, como mundo, como
aderência ao transcorrer, o que ele chama de grande mostrador. Conceito
caro a uma das mais fortes correntes contemporâneas da análise cinematográfica,
a narratologia, o grande mostrador, é, segundo as palavras de Laffay, o “mestre
de cerimônias” que vira as páginas da narrativa cinematográfica, a instância
narrativa que assume a mostração das imagens através da câmera. Um dos maiores
obstáculos ao trabalho de Laffay é a sobreposição conceitual entre a forma
particular cinema narrativo e a imagem-câmera pensada em sua generalidade.
7.2 – Para fugir da
amarração conceitual do termo cinema e dar à reflexão de ambos uma dimensão
mais ampla, podemos trabalhar essa interessante ideia do cinema como arte do
presente, frisando-a como característica própria à imagem-câmera móvel,
entendida em sua aderência ao transcorrer, para, em seguida, analisar em que
medida a tradição fílmica irá trabalhar e manipular estilisticamente as imagens
a partir dessas potencialidades.
7.3 – A definição do
cinema como arte do presente contém para Laffay uma dicotomia que faz com que a
ideia a ele atribuída, do cinema como “eterno presente” possa ser vista como
simplista. É na contradição entre “presente” e indeterminação, acaso (da
imagem) e “arte” / relato (do cinema) que irá se constituir o que conceitualiza
como os “dois polos do cinema”. (p. 149)
8 – Pier Paolo Pasolini distingue de um modo
mais definido imagem em movimento e cinema, o que o leva a evitar algumas das
confusões que Laffay vê-se enredado ao tematizar as potencialidades da
imagem-câmera ao transcorrer, à duração. (p. 149)
8.1 – Para Pasolini,
o conceito de cinema adquire uma consciência particular ao ser oposto à noção
de morte, que é identificada ao filme propriamente dito. Especialmente atraído
pela dimensão cinema da imagem, pela tomada em sua adesão plena ao transcorrer,
Pasolini possui belos trechos escritos onde analisa o cinema de vanguarda
americano dos anos 60, e a tendência de alguns diretores em trabalhar com
planos longuíssimos.
8.2 – Contra o cinema
eleva-se então o filme, que “mata” através do corte, da montagem, dissipando a
presença que se abre para o indeterminado sempre renovado e presente, do mesmo
modo que para o sucessivo uniforme. O filme é a morte e o sentido, corte do
plano-sequência infinito que dá significância à abertura inconclusa. Esta,
enquanto permanece aberta, como cinema, é indeterminada e insignificante.
8.3 – Fazer cinema (e
não filme), diz o diretor em uma definição particularmente inspirada, “é
escrever sobre papel que queima.” A morte no fechamento da abertura do cinema
ilumina retrospectivamente o plano-sequência, agora finito, fazendo com que “a
linguagem da ação” possa fechar-se sobre si mesma compondo significância.
8.4 – Morrer, então,
para o autor, “é absolutamente necessário, pois, enquanto estivermos vivos nos
falta sentido”, a morte “compõe uma montagem fulgurante de nossa vida [...] e é
graças a ela que nossa vida pode servir para nos exprimir”. Na relação entre
cinema e filme, para Pasolini, está contida a abertura infinita da
imagem-câmera para o presente e o sentimento trágico da finitude da vida, ao
qual, como consolação, corresponde o corte de significado. Entre sentido e vida
o cinema é, no limite, uma experiência impossível. É na contraposição desta
impossibilidade que Pasolini intui tragicamente a dimensão do “seu” plano-sequência,
e a maneira brusca e cristalizadora pela qual o findou. (p. 150)
9 – A potencialidade da imagem-câmera em aderir
ao transcorrer pode ser compreendida em toda sua dimensão ao adicionarmos, à
forma particular de inserção da câmera no mundo, a aparência com traços
especulares de sua forma. É ela que faz com que sejam transferidas
intuitivamente para a imagem-câmera potencialidades de designação referencial
próprias à imagem reflexiva. Há todo um pensamento que tematiza o cinema sob o
impacto dessa proximidade. (p. 150)
9.1 – [...] Para
alguns dos chamados “impressionistas franceses” essa disposição particular dos
traços da imagem-câmera, aliada à sua inserção no transcorrer, faz com que o
mundo surja transfigurado, exponenciando uma intensidade. Para designar esta
intensidade, Jean Epstein dizia que o cinema é como um vulcão. Imagem por
excelência adequada para designar o vibrar da natureza que surge transfigurada
na imagem, caracterizando a novidade que apresenta para a sensibilidade
estética da época.
9.2 – Louis Delluc
cunha o termo fotogenia para designar o efeito da intensidade:
deslumbre, frisson, espanto. [...] Animismo e fotogenia são
elementos centrais dessa nova representação do mundo. (p. 150)
10 – Anos mais tarde, Edgar Morin, em “Le
Cinéma ou L’Homme Imaginaire”, irá descrever com outra ênfase essas
potencialidades. Nos anos 50, toda uma tradição crítica forma-se pensando essa
questão da grande alma do mundo na transfiguração da imagem- câmera. (p. 151)
11 – A manipulação das formas com aparência
especular, que havia detonado o já mencionado animismo na vanguarda dos anos
20, surge então aqui dentro de uma temática que tem o cristianismo no horizonte
e que lida com a produção de Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini, Robert
Bresson e Carl Dreyer. É assim que Rohmer pode afirmar que “talvez por ser,
entre as artes da imitação, o mais rudimentar, o mais próximo da reprodução
mecânica, o cinema pode apreender mais detidamente a essência metafísica do
homem e do mundo.” (p. 53)
12 – Essas potencialidades singulares da
imagem-câmera adquirem relevo particular quando, à intensidade animista, vêm se
sobrepor a dimensão do extraordinário. (p. 153)
13 – Tematizando esta particular intensidade da
imagem-câmera dois autores da geração “anos 60” do Cahiers du cinéma, Pascal
Bonitzer e Serge Daney, publicam, em março de 1972, artigo intitulado “L’Écrau
du Fantasme”. [...] O artigo problematiza [...] a dimensão traumática
aberta pelo trago imagético que a presença da câmera na circunstância da tomada
determina. (p. 155)
13.1 – Abordando um
tema ao qual retornará outras vezes Bonitzer define de maneira crítica o que
chama de paradigma da fera, “uma das metáforas mais radicais do real”.
Presente no núcleo da sensibilidade baziniana, este paradigma determina uma
estética que é antes de tudo uma ética da imagem em face da circunstância da
tomada. Pode ser definida no paradoxo que impõe um limite à conformação da
imagem-câmera traumática: “foi a câmera que ‘devorou’ a fera, mas poderia ter
sido o contrário, a fera poderia ter devorado o câmera e o diretor”. Neste
intervalo, ou na ameaça de sua concretização, situa-se a fruição do espectador.
Seu fantasma, continua Bonitzer, “é ser o diretor; é ele que flui o Aufhebung
[preservar ou elevar / movimento de transformação que acontece no fluxo
temporal: grifo meu] desta luta mortal.”
13.2 – Metáfora da presença
na circunstância da tomada e de seu traço na imagem, traz em si efeito
amplo. De um lado traz o frisson: por exemplo, a comicidade da unidade
espacial, a “marca” da fera, Chaplin e o leão na jaula. De outro, o dilema que
traz seu limite, a imagem impossível: o selvagem cortador de cabeças que deixa
de ser selvagem se não corta a cabeça do operador da câmera.
13.3 – Entre os dois
delineia-se a posição do espectador (as fronteiras do campo onde pode manter
sua posição espectorial) e uma ética da imagem. (p. 155)
14 – Em um texto já bem posterior, publicado
nos anos 80, Bonitzer volta a utilizar um termo [...] cunhado por André Bazin
para trabalhar com este paradoxo: o complexo de Nero. (p. 155)
14.1 – Definidor
da fruição estética da imagem traumática, da imagem que dilata a máximo o “grau
do real”, “excedendo toda figuração”, o complexo de Nero remete-nos à
voracidade do espectador face a uma imagem onde “não basta mais caçar o leão,
se ele não come os caçadores”, ou, em última instância, se não come a câmera.
(p. 156)
15 – A intensidade baziniana da imagem, e o
relacionamento privilegiado que o crítico mantém com este tipo imagético, só
podem ser compreendidos se analisarmos o paradigma da unidade espacial a partir
do que Bazin chama complexo de múmia. Recorte temporal do espaço
unitário, figura da subjetividade espectoral que circunda e sobredetermina a
ontologia da imagem baziniana, o complexo de múmia e a obsessão em preservar
compõem o quadro em que a intensidade emerge e á fruída pelo espectador. (p.
158)
15.1 – É a partir
desta potencialidade da imagem-câmera [...] que podemos ver emergir a
intensidade e a transfiguração do real própria a esta forma imagética. É o
saber do espectador (o saber da tomada) e sua obsessão – e não a imagem
analógica – que diz ser este traço tremido índice de perigo, signo quase
abstrato.
16 – [...] Não se trata [...] de uma norma, mas
de uma melancolia do espectador Bazin, face ao conflito insolúvel entre a
intensidade preservada (singularidade no tempo exponenciada pela unicidade
absoluta do morrer), e a “contradição” da infinita e banal reprodutibilidade da
técnica, que adequa-se (sic) à capacidade da máquina-câmera em aderir ao
transcorrer uniforme, como imagem-qualquer. Qualquer determinado então
duplamente pela natureza infinita da reprodução própria à máquina, que parece
poder coincidir, em sua natureza de formadora mecânica de imagens, com a
banalidade os instantes quaisquer que se sucedem na uniformidade cotidiana. (p.
159)
16.1 – Estamos
novamente face à natureza particular da imagem-câmera na representação do
extraordinário, e os dilemas estilísticos que a envolvem. É aqui que Daney
proíbe os maneirismos, os travellings e as fusões, que Bazin sente a
necessidade de um limite no mostrar e opta pela elipse disfarçando seu olho
guloso, que Pasolini estabelece a morte como elemento limítrofe do cinema, que
Bonitzer é ácido para com a voracidade do tipo Nero tentando delimitar um campo
espectoral, que Barthes é o poeta melancólico da intensidade e de seu efeito. É
importante frisar que o efeito traumático não se reduz à imagem violenta mas
configura-se, de maneira mais ampla, na gama de transfigurações abertas pela
presença da câmera na circunstância da tomada. É dentro deste campo que se
expressa a reação do espanto epsteiniano face às novas formas do mundo transfigurado,
a melancolia face a preservação do traço e a tensão espectorial aberta pela
intensidade traumática que estoura a espessura da significação. Elementos que
delineiam o leque restrito, mas ainda pouco estudado, das potencialidades da
conformação imagética que tem seus traços – e na circunstância de sua
composição – a marca da mediação dessa máquina de imagens que denominamos
câmera". (p. 60)
Olá, estou com uma dúvida, esses 16 fichamentos seria considerado apenas 1 ou 16 fichamentos de transcrição?
ResponderExcluirApenas um fichamento. É que os trechos transcritos em negrito correspondem ao tópicos frasais de cada parágrafo. Os que se subdividem, são as informações adicionais de cada parágrafo.
Excluircomo são do mesmo texto seria apenas um porque voce usou apenas uma referencia
ResponderExcluirTenho uma duvida.Essas fichas podem ser colocadas em parágrafo do geito que está ai com as aspas abrindo o começo do fichamento e fenchando o final dele
ResponderExcluirSim, certamente!
ExcluirEste fichamento foi dividido em 16 pontos porque fiz a transcrição por parágrafo. Cada ponto é um parágrafo que resolvi transcrever do texto e, como é um fichamento de transcrição, eu coloquei aspas apenas no primeiro parágrafo e no último, de modo a enfatizar a autoria.
ResponderExcluirEu não entendi qual a regra que itiliza para para defini 1 depois 1.1 1.2
ResponderExcluirOs trechos transcritos em negrito correspondem ao tópicos frasais de cada parágrafo. Os que se subdividem, são as informações adicionais de cada parágrafo.
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