sábado, 16 de novembro de 2013

A PROPÓSITO DO ANIVERSÁRIO DA ESCRITORA RACHEL DE QUEIROZ (17/11/1910 - 04/11/2003)


Outro dia alguém me fez a pergunta que eu menos gosto de escutar em se tratando de Literatura: qual é seu escritor preferido? Eu simplesmente não sei quem é, porque cada escritor consegue, por meio de uma obra ou outra, permanecer afetivamente em minha memória. Determinar quem é o maior ou o melhor escritor, para mim, não me parece tarefa agradável, fácil e necessária. 

Não é preciso viver no mundo e hierarquizar tudo, como tantos fazem. Querem compartimentar, eleger, determinar, ordenar até os gostares literários de que nos valemos para suportar esta existência insustentável. Dizer que prefiro um escritor é preterir um outro, e isto não é gesto de quem se tornou melhor através das tantas leituras realizadas.

Houve uma época em que, se alguém me perguntasse quem era o meu escritor favorito, eu, tão ingênuo quanto incapaz de discernimentos, respondia que não era um escritor o meu favorito, mas uma escritora. A escritora era Rachel de Queiroz. 

Não deixei de amá-la com amor devoto, apenas consegui, com o tempo, libertar-me dos rótulos que eu mesmo criara para mim - ou para ela?

Sabe como foi que Rachel de Queiroz, a escritora cearense que o Brasil reconhece como uma das maiores da nossa Literatura, me foi apresentada? Foi através de um livro de Literatura Brasileira direcionado ao Ensino Médio, de José de Nicola.

Comprei, ainda no Ensino Fundamental, de um colega o citado livro e, ao abrir nas páginas concernentes ao Modernismo, vi a fotografia de uma senhora de riso largo cujo nome era igual ao da minha bisavó materna, a quem eu admirava e respeitava com sofreguidão. Depois, li um fragmento de uma obra intitulada "O Quinze" que, segundo o autor, havia sido escrito por aquela senhora ainda quando esta era uma moça com seus vinte anos. Fiquei fascinando porque, no resumo, a protagonista vivia um dilema: casar, ter filhos e cuidar do marido, conforme outorga a sociedade pautada em conservadorismos, ou emancipar-se, estudar e viver sozinha por estar certa de que nem sempre é possível encontrar em outrem aquilo que poderia aquiescer a alma? Além do tal dilema, havia uma realidade mais grave a irromper daquela obra: uma família paupérrima, sofrida e sem solução, ante as agruras da seca, precisaria, em retirada, buscar novas possibilidades de vida longe da sua terra.

Aquele enredo, sem que eu possa dar explicação ampla, me comoveu profundamente. Um ano após buscar incessantemente aquele livro, uma grande amiga o encontrou para mim e emprestou-me. Eu o apertei nas mãos como se dissesse a mim mesmo que eu seria sempre recompensado por dispor de persistência. Ser persistente foi, devo destacar, uma necessidade maior ao longo de minha vida às vezes áspera como alguns cenários em que Rachel de Queiroz atirou suas personagens.

Eu poderia ter lido "O Quinze" numa tarde, mas protelei o término... Durante duas tardes eu, com os olhos petrificados, li a primeira obra literária que, profundamente, me apresentou a pungência, a solidão, a impotência, a fragilidade, o desespero do ser humano. Nunca mais eu vi o que se convencionou chamar Literatura da mesma forma. 

Por isto Rachel de Queiroz tornou-se a minha escritora preferida. Vieram outras leituras valorosas e epifânicas e envolventes com ares bem superiores em relação à obra "O Quinze", mas justiça seja feita: foi Rachel de Queiroz quem primeiro me tirou da caverna obscura do ser e apresentou-me resquícios de luz - a luz que ela me apresentou, em verdade, era de um sol vermelho e causticante que queima rancorosamente a pele dos homens em épocas de estiagem. 

E até hoje as personagens tão humanas quanto frágeis dessa obra me percorrem. Não sou mais o abobalhado que segurou aos prantos um livro emprestado por uma amiga memorável, mas basta abrir as páginas do romance "O Quinze" novamente e as emoções ressurgem - claro que elas foram acrescidas de um olhar mais crítico, porém nunca serei capaz de ler esta obra sem derramar sobre ela as minhas fragilidades mais sentidas.

Eu li todas as obras romanescas e as peças de teatro de Rachel de Queiroz. Realizei trabalhos acadêmicos sobre algumas delas. Fui pouco racional ao superestimar algumas características pertinentes à autora, também a coloquei num pedestal que ela mesma não aceitaria ser colocada. Decorei trechos de alguns livros, colecionei artigos que discorriam sobre ela e sua obra, guardei fotografias de livros e revistas e divulguei muito seu nome. Conheci suas virtudes literárias e pessoais. Conheci, também, suas falhas e transgressões. Percebendo-a humana, a compreendi e a aceitei melhor, sobretudo aprendi com ela que nem só de encômios deve viver um autor.

No mais, a propósito de sua obra, Maria Moura - e disto eu não abro mão - é a personagem por excelência de Rachel de Queiroz. Maria Moura me ensinou uma frase que tem sido repetida internamente com rigor: "Nesta vida, quem não briga pelo que quer se acaba". Eu a invoco quando quero confrontar aquilo de que tenho medo - como eu poderia imitar tamanha força! 

Quando Rachel de Queiroz faleceu, alguns dias antes do seu aniversário, em 2003, eu prestava Serviço Militar. Ainda fardado, fui entrando na casa de minha bisavó - cujo nome também era Rachel - e a encontrei sentada à frente da televisão fazendo trança de chapéu de carnaúba. Ao lado dela, minha tia foi logo divulgando a notícia funesta... Rachel de Queiroz havia falecido - foi divulgado em todos os jornais de emissoras abertas do país e em vários jornais do exterior. O Ceará de luto, também o Rio de Janeiro. A Língua Portuguesa de luto. E eu, que desejava um dia encontrá-la, tirei-o-cavalo-da-chuva e tentei me controlar. Lembro-me do barulho do meu coturno ecoando no corredor da casa da minha bisavó - saí às pressas para escrever, naquela manhã, um texto elegíaco sobre a autora que me tirou, para sempre, da escuridão intelectual.   

Sempre que é necessário, recorro ao que Rachel de Queiroz, no livro "O Quinze", me disse um dia: "A gente precisa criar seu ambiente, para evitar o excessivo desamparo... Suas ideias, suas reformas, seu apostolado... Embora nunca os realize... nem sequer o tente... mas ao menos os projete, e mentalmente os edifique."

Texto de: Émerson Cardoso
15/11/13

OBRAS DA AUTORA:




















Um comentário:

  1. Genial! Genial, o seu texto sobre Rachel. É um texto belamente lindo. Comungo contigo da dificuldade de "eleger" o meu (minha) escritor (a) preferido (a). Também fui jogado aos rincões literários da Raquel de Queiroz e descobri um jeito de "ser...tão". Magnânima obra. Tenho um "affair" especial com "DORa DORalina". Uma dupla história de dor. Dor de existir, dor se sentir-se abandonada... Mas ir avante. Sempre seguir, pois, como poderia nos ensinar um certo personagem da Raquel, "pra frente é que se anda." Obrigado pela publicação de presente(-)texto...

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