CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Elsa e Fred com Anita e Marcello: um reencontro na Fontana de Trevi. Revista Sétima de Cinema, n. 06, p. 06 - 07, out. 2013.
Da primeira vez que assisti ao filme “Elsa & Fred” (2007), de Marcos Carnevale, foi impossível não desejar conhecer também “A doce vida” (1960), de Fellini.
Da primeira vez que assisti ao filme “Elsa & Fred” (2007), de Marcos Carnevale, foi impossível não desejar conhecer também “A doce vida” (1960), de Fellini.
Um homem solitário, previsível,
hipocondríaco, abalado pela morte recente da esposa, e sob “cuidados” de uma
filha controladora, muda-se para um prédio em que se torna vizinho de uma
mulher: expansiva, imprevisível, mentirosa, caloteira, aventureira e,
sobretudo, que sabe viver. Por serem idosos, ambos poderiam se deixar prender
pelas rédeas da idade que parecia querer tolhê-los, no entanto Elsa (China
Zorrilla) despreza qualquer limitação e alimenta um sonho: viver a cena
antológica do filme “A doce vida” protagonizada por Anita Ekberg e Marcello
Mastroiani na “Fontana di Trevi”.
No clássico de Fellini, Anita Ekberg
dá vida a Sylvia, uma das três mulheres que povoam a vida do jornalista
Marcello Rubini – vivido por Marcello Mastroiani. Sylvia é uma estrela
hollywoodiana que ostenta beleza e vivacidade e, numa das cenas mais belas do
filme, bem como do cinema universal, Sylvia entra na “Fontana di Trevi” (que
para os italianos é o símbolo da vida e da beleza) e convida Marcello Rubini a
acompanhá-la em sua aventura erótica, ao que ele obedece.
E por falar em erotismo, o filme
“Elsa e Fred”, de modo sutil, e não menos singelo, também discorre sobre a
externação do erotismo vivido pelas personagens evocas no título. Refiro-me não
ao erotismo como este tem sido propagado pelo senso comum, mas pelo erotismo
conforme nos apresenta Bataille (1987) que, ao discorrer sobre o assunto,
propõe três concepções a esse respeito (erotismo dos corpos, erotismo dos
corações e erotismo sagrado) de modo que a concepção que nos possibilita pensar
a relação do par romântico do filme “Elsa e Fred” é o erotismo, sobretudo, dos
corações. A esse respeito Bataille (ibidem,
p. 15) afirma:
O erotismo dos
corpos tem de qualquer maneira algo de pesado, sinistro. Ele guarda a
descontinuidade individual, e isto é sempre um pouco no sentido de um egoísmo
cínico. O erotismo dos corações é mais livre. Ele se separa, na aparência, da
materialidade do erotismo dos corpos, mas dele procede, não passando, com
frequência, de um seu aspecto estabilizado pela afeição dos amantes.
Elsa,
dada a uma concepção de mundo em que idealizações são possíveis, vivencia
finalmente – após envolver Fred em suas fantasias – seu grande sonho. A cena da
“Fontana di Trevi”, em “Elsa e Fred”, é recriada de modo lírico e erótico – um
“erotismo dos corações”, ressalto. Some-se à cena o fato de que Fred (Manuel
Alexandre) resolveu realizar o sonho de sua amada porque ela (embora ela
escondesse) poderia morrer em breve em decorrência de sérios problemas de
saúde.
Em “A doce vida” Sylvia é delicada,
cativante, jovial e entrega-se ao amor com devoção: deleitar os prazeres da
vida era sua prerrogativa existencial. Elsa, por sua vez, identifica-se
profundamente com a personagem – embora não seja tão idealizada assim – e
deseja tornar-se Sylvia, mesmo que por alguns segundos.
A relação entre as obras em destaque
parece centrar-se no fato de que há uma bem-sucedida releitura de uma cena
específica. Porém, sobretudo se considerarmos os temas abordados em ambas as
obras, perceberemos inúmeros elementos que poderiam ampliar nossa percepção a
este respeito.
Elsa e Sylvia buscam veementemente o
prazer e ambas lidam com homens cuja vida, em vários aspectos, denota uma
propensão à decadência: Marcello é um escritor frustrado que realiza pequenas
reportagens e que assume, por vezes, papel passivo ante as mulheres com as
quais viveu casos amorosos e que demonstra certa insegurança diante dos
conflitos que o cercam; Fred, por sua vez, é um aposentado hipocondríaco que
passou a vida cumprindo regras no trabalho e sendo fiel à vida conjugal e,
diante da impulsividade de Elsa, termina por se deixar guiar pelas ideias da
pretendente que lhe pareciam absurdas.
“A doce vida” é um filme amargo, de
personagens perdidas em desilusões, angústias e que vivem lacunas relacionais
em decorrência, por vezes, da falha de comunicação. Em “Elsa e Fred” é possível
perceber uma atmosfera que também se configura como angustiante, no entanto a
impulsividade da personagem feminina evocada no título, sua força e propensão à
vida ultrapassa essa aparente angústia e todas as personagens terminam por se
deixar envolver, direta ou indiretamente, pelas tentativas de “solução” que
Elsa – embusteira e nada ortodoxa – propõe.
Muitos outros elementos poderiam ser
apontados nesta perspectiva de ver as obras em destaque pelo viés da
comparação. Vale ressaltar que elas discorrem sobre a vida que, para o ser humano,
precisa sempre ser dotada de algum sentido: na obra de Fellini encontramos as
tensões de uma Roma moderna, mas decadente e, consequentemente, marcada pelos
desencontros e pela insubmissa marca da morte; na obra de Carnevale a morte
existe, até exageradamente, mas esta não parece, em suma, representar um
impedimento para que a vida seja possível de ser deleitada no sentido mais
profundo do termo, como nos propõe o trecho da letra da música tema do filme:
HOY PUEDE SER UN GRAN DÍA
Hoy puede ser un gran día
Imposible de recuperar,
Um ejemplar único,
No lo dejes escapar.
Que todo cuanto te rodea
Lo han puesto para ti.
No lo mires desde la ventana
Y siéntate al festín.
Pelea por lo que quieres
Y no desesperes
Si algo no anda bien.
Hoy puede ser un gran día
Y mañana también.
(Joan Manuel Serrat)
REFERÊNCIA:
BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
1987.
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