quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CRÔNICA: SETEMBRO AMARELO, QUE EM VERDADE FOI CINZA!


Na véspera do meu aniversário, deste fatídico ano de 2019, um colega de trabalho cometeu suicídio. Lembro-me de que nos falamos algumas vezes, durante o tempo em que trabalhamos juntos, mas não o suficiente para que eu percebesse nele algum resquício de angústia que o motivasse a tomar decisão tão drástica. É assim a vida: bastaria um golpe contra ela e, fim, tudo estaria concluído. Se quem está vivo permanece vivo é porque, de algum modo, a vida lhe significa algo. Viver, sinceramente, é desafio dos maiores - aliás, é o único desafio.

Discorrer sobre suicídio em campanha, numa tentativa de combate, será um meio eficaz de reverter esse quadro? Em minha cidade ocorreram, desde o começo deste ano, tantos suicídios que eu não me recordo de ter visto, desde que nasci, tantas notícias sobre o assunto. Talvez a falta de horizontes políticos, os desesperos existenciais movidos pela perda de direitos, as angústias do cotidiano com suas dores inevitáveis tenham vindo com força total neste ano de 2019 que, como tenho mencionado, é um ano funesto.

Depois de ouvirmos notícias diversas sobre o assunto, ao longo do ano, fomos informados a respeito do suicídio de dois adolescentes em uma mesma escola. Morreram de suicídio, neste mês de "setembro amarelo", um rapaz e uma moça com pouco tempo de um para o outro. O rapaz deixou uma carta, que eu li e deixou-me completamente reflexivo. Primeiro, pela sobriedade do texto; segundo, pela sensação de profunda identificação que eu tive com ele. Eu era um adolescente sensível e angustiado, assim como ele, e nunca escrevi carta de despedida, mas escrevi contos cujas personagens sempre cometiam suicídio. A vontade de me livrar da vida, que tanto me ocorria na adolescência, felizmente, foi sublimada.

Eu, assim como ele, também assisti, na escola, ao filme "Sociedade dos poetas mortos". Com este filme, senti o quanto ser eu mesmo poderia causar transtornos para o espaço social em que eu estava inserido. Ao mesmo tempo, esse filme me deu a grande lição de minha vida: é preciso não se deixar aprisionar, é necessário estar aberto ao que é novo, é urgente estar vivo com tudo o que o viver implica. Aprendi, com esse filme, a resistir, a sobreviver, a continuar, a prosseguir, apesar das adversidades. O rapaz que escreveu a carta talvez tenha se fixado demais em uma das personagens - e quem poderá criticá-lo por isto?

Desde sempre, quando vejo notícias de suicídio, paro e fico reflexivo. Os autores que morreram de suicídio sempre me chamam atenção, porque eles não suportaram as dores da vida apesar de tentarem sublimá-las, como eu fiz e continuo a fazer. Para mim, por muito tempo, havia certo lirismo neste tipo de morte. Hoje, quando vejo tantos que se destruíram porque se desiludiram com a vida, eu sinto tristeza e vontade de dizer a eles o quanto as coisas podem mudar, caso a gente tenha um pouco de paciência e teimosia.

No suicídio está implícita uma imensa vontade de viver. O que torna essa vontade de viver um espectro de autodestruição é a impossibilidade de viver aquilo que a alma tanto aspira. Os cerceamentos, os falsos moralismos, os desrespeitos, dentre outros fatores, criam gatilhos que levam o ser humano a querer se matar, porque nem todo mundo tem força, apoio, saúde psicológica, possibilidades de reverter quadros depressivos etc.

Quanto ao tal "setembro amarelo", eu sou totalmente contra. A hipocrisia reina nesse tipo de campanha. Digo isto porque o mesmo ser humano que pode triturar os outros com palavras, ou desrespeitos outros, pode também confeccionar fitinhas amarelas às pampas para distribuir com falsidade. 

Penso que não devemos fazer campanhas contra o ato de tirar a vida, que se mostra uma opção para quem já não suporta os sofrimentos cotidianos e seus correlatos. Devemos fazer campanhas, em verdade, a favor de uma maior humanização em casa, nas escolas, nas ruas, no Brasil e no mundo. Devemos fazer as pessoas considerarem possível estar vivas. Olhá-las, ouvi-las, buscar compreendê-las em suas singularidades. Não digo isto com tendência utópica, porque sei que o convívio humano é complexo e, portanto, doloroso. Olhar com mais sensibilidade para a realidade dos outros, porém, pode ser bem mais útil do que ficar exibindo fitinhas amarelas para mostrar que se importa com o outro. Penso que é desafiador, sim, tentar ser empático, sobretudo em alguns contextos, mas deveríamos ao menos tentar.

Como professor que sou, fico impressionado com o modo como o âmbito escolar tem sido um espaço cada vez mais contraditório. Fala-se em educação para a cidadania, para a vida e coisa e tal, no entanto, o que se faz muito é: amontoar quarenta e tantas vidas em uma mesma sala de aula, incentivar constantemente o estudante à competitividade, exigir em várias instâncias hierárquico-burocráticas resultados e mais resultados, cercear a capacidade criativa e humana e sensível do estudante com pressões psicológicas que atendem a uma matriz curricular (que ainda denominam grade curricular, para fazerem jus ao teor de presídio das escolas), dentre outros pontos.

Se pensarmos a realidade do professor, então, é melhor não entrar em detalhes, porque me estenderei demais e terminarei por expor, ainda que parcialmente, o porquê de meu colega de trabalho ter cometido suicídio quando ele era, pelos discursos contraditórios da educação, o mais apto a lidar com os diversos conflitos que fazem parte do métier da profissão. Há tantos professores e professoras querendo morrer nas salas de aula deste país sem educação, enquanto há tanta gente indiferente preocupada apenas em cumprir ordens que vêm de funcionários que sabem pouco, ou nada, sobre o que é estar em sala de aula! E há tanta gente inapta que odeia professor sem tentar entender suas misérias humanas, seus conflitos, suas dores!

Enfim, o suicídio é algo sério, não tenho como alongar mais o texto na tentativa de explaná-lo, porque falar sobre ele tem me causado uma sensação de angústia sem precedentes. E, para concluir, creio que o suicídio seja a grande problemática da existência, porque, ainda que de forma generalizante, o ser humano tem apenas duas opções neste mundo: 1) querer estar vivo, embora com a consciência de que estar vivo é lidar com as dores e seus universos, ou 2) decidir se quer, definitivamente, morrer. Assim é a vida: tomar decisões e implorar para que essas decisões sejam as mais acertadas.

Émerson Cardoso
29/09/2019

2 comentários:

  1. Que texto lúcido, meu querido!
    É um prazer lê-lo!
    Em 1999, quando eu tinha doze anos, tentei suicídio três vezes.
    Depois, comecei a escrever para expurgar meus fantasmas e digo com todas as letras: a arte me salvou e é ela que mantém viva. Ou como diria Clarice: "Escrevo como se quisesse salvar a vida de alguém. Talvez a minha própria".
    E vamos disseminar a Vida! Vamos disseminar o amor nestes tempos de reacionismo.
    Beijos, meu querido!

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