sábado, 12 de setembro de 2020

CRÔNICA: "SOBRE INGRATIDÃO"


No conto "A confissão de Leontina", de Lygia Fagundes Telles, nos deparamos com uma história lastreada pelo monstro sem caráter desprovido de memória que é a ingratidão. Esta palavra tem a ver com a incapacidade que alguns seres humanos têm de não reconhecer o bem que alguém lhe fez. A ingratidão é palavra curiosa: nomeia o ausente em uma pessoa - quem não sabe retribuir ou demonstrar gratidão mediante uma ajuda que outrora lhe foi direcionada cai em seus lastros. 

No conto, a personagem evocada no título tem um primo chamado Pedro que é a personagem mais ingrata que já vi numa obra literária. Ele é monstruoso, infame e cruel! Para entender sobre o que falo, leia o conto e confirme minha assertiva. Ele se chama Pedro (nome de origem grega que remete à palavra "rocha") e traz no nome uma nítida relação com a imagem do discípulo que negou Cristo - negar o outro não é a ingratidão manifestada com toda maldade e força?  

Por vezes, uma pessoa que se doa em excesso e exige muito dos outros tende a considerar ingrata qualquer pessoa que não atenda às suas expectativas de retorno em relação ao que foi ofertado. Faz-se necessário, portanto, que se tenha cautela para não cair em acusação contra tudo e todos. Querer uma contrapartida por uma ação benéfica dispendida a alguém é comportamento de gente mercenária, claro, mas não deveria ser preciso que a pessoa com tendência à doação exigisse do beneficiado um reconhecimento por aquilo que foi feito por e para esse outro. A pessoa beneficiada deveria ser, em verdade, capaz de demonstrar dignidade a ponto de ser grata a quem lhe estendeu a mão. 

Ocorre que gratidão é característica de quem tem espírito aberto às percepções mais elevadas dos laços humanos. O prudente é observarmos, em nossas condutas, o quanto nos é dada a possibilidade de demonstrar diante de um gesto nobre o reconhecimento por esse gesto. Retribuir, reconhecer e retornar o que foi dado por alguém é gesto de gente digna. Como é raro perceber no cotidiano demonstrações de gratidão, sobretudo se pensarmos a rapidez que tem feito girar o mundo. Gratidão, ressalvo, é gesto de quem tem espírito elevado. No simples e no complexo, gratidão é conduta de quem sabe encontrar caminhos em direção ao outro. 

O ser humano que não tem gratidão, penso, é pobre de alma, é podre de espírito. Será que eu devo atirar pedra nos ingratos do mundo de cima de minha torre de marfim de homem moralmente blindado? Não, obviamente não! Escrevo reflexões sobre o assunto, aqui, mais para manter contato com ele do que para atirar pedra contra alguém. Eu, quantas vezes, fui e tenho sido ingrato! Ninguém está livre de ser fadado à falibilidade que nos resume. Agora, escrevendo sobre, tenho pensado no quanto poderia ter sido mais grato em relação a algumas pessoas. Penso, porém, que não sou o monstro sem caráter e desprovido de memória que metaforiza a ingratidão neste meu texto de reflexão sem jeito. 

Lygia Fagundes Telles é capaz de cada coisa em termos de escrita! Sempre que leio "A confissão de Leontina" mergulho na profundidade de meu ser ainda em formação e descubro que sou capaz de atrocidades tantas, por isso devo ficar atento. Que eu me livre ao menos desta falha humana: não quero ser ingratidão. Quanto aos que foram ingratos em relação a mim: estão desculpados. Vamos zerar as culpas e começar tudo de novo! 

 Émerson Cardoso

12/09/2020

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