Uma mesinha, um banco, uma cama de folhas secas e
três copos de barro, eis toda a sua mobília. Dois buracos nas paredes serviam
de janelas. De um lado, estendiam-se a se perderem de vista planícies estéreis
tendo à superfície pálidos laguinhos por toda parte; e o grande rio, à sua
frente, rolava suas ondas esverdeadas. Na primavera, a terra úmida tinha um
cheiro pútrido. Depois, um vento desordenado levantava turbilhões de poeira.
Entrava em toda a parte, turvava a água, fendia as gengivas. Um pouco mais
tarde, eram nuvens de mosquitos, cujo sussurro e as picadas não paravam dia e
noite. Em seguida, sobrevinham geadas tão terríveis que davam às coisas a
rigidez da pedra, e inspiravam um desejo delirante de comer carne.
Passarem-se meses sem que Julião visse alguém. Por
vezes, ele fechava os olhos, tentando, pela memória, voltar à sua juventude; –
e o pátio de um castelo aparecia com galgos no patamar, criados na sala de
armas, e numa caramanchão de pâmpanos, um adolescente de cabelos louros entre
um ancião coberto de peles e uma dama com grande toucado; de repente, os dois [cadáveres]
estavam lá. Ele atirava-se de bruços na cama, e repetia chorando:
– Ah! pobre
pai! pobre mãe! pobre mãe!
E caía numa sonolência onde as visões fúnebres
prosseguiam.
Uma noite, quando dormia, cuidou de ouvir alguém
chamá-lo. Apurou o ouvido e distinguiu apenas o rugido das ondas.
Mas a mesma voz voltou:
– Julião!
A voz vinha da outra margem, o que lhe pareceu
extraordinário, dada a largura do rio.
Chamaram uma terceira vez:
– Julião!
E esta voz aguda tinha a entonação de um sino de
igreja.
Depois de acender a lanterna, saiu da cabana. Um
tufão furioso enchia a noite. As trevas eram profundas, e aqui e ali rasgadas
pela brancura das vagas que saltavam.
Após um minuto de hesitação, Julião soltou a amarra.
A água, subitamente, ficou tranquila, o barco deslizou nela e tocou a outra
margem, onde um homem esperava.
Estava envolto numa túnica em farrapos, o rosto
semelhante a uma máscara de gesso e os olhos mais vermelhos do que brasas.
Alumiando-o com a lanterna, Julião notou que uma lepra horrenda o cobria
completamente; no entanto, havia em sua atitude uma majestade de rei.
Assim que ele entrou no barco, este afundou
extraordinariamente, esmagado por seu peso; uma sacudidela o fez subir; e
Julião começou a remar.
A cada remada, a ressaca das ondas levantava-o de
proa. A água, mais negra do que piche, corria furiosa pelos dois lados da
bordagem. Abria precipícios, fazia montanhas, e a chalupa saltava por cima,
depois voltava a descer nas profundezas onde redemoinhava, sacudida pelo vento.
Julião debruçava o corpo, esticava os braços, e,
retesando-se, fincando os pés, revirava-se com uma flexão do tronco, para ter
mais força. O granizo fustigava suas mãos, a chuva escorria pelas suas costas,
a violência do ar sufocava-o; ele parou. Então o barco foi á deriva. Mas,
compreendendo que se tratava de uma coisa considerável, de uma ordem, à qual
não devia desobedecer, retomou os remos; e o ranger [das borlas] cortava o
clamor da tempestade.
A pequena lanterna consumia-se à sua frente.
Pássaros esvoaçando, escondiam-na a intervalos. Mas continuava reparando nos
olhos do leproso que se mantinha de pé, na popa, imóvel como uma coluna.
E isto durou muito tempo, muitíssimo tempo!
Quando chegaram à cabana, Julião fechou a porta; e
ele viu-o sentar-se no banco. A espécie de sudário que o cobria tinha-lhe caído
até os quadris; e suas costas, seu peito, seus braços magros desapareciam sob
as placas de pústulas escamosas. Rugas enormes sulcavam sua fronte. Como um
esqueleto, ele tinha um buraco no lugar do nariz; e seus lábios azulados
soltavam um bafo espesso como um nevoeiro, e nauseabundo.
– Tenho fome! – disse ele.
Julião deu-lhe tudo o que possuía, um pedaço de
toucinho e côdeas de pão escuro.
Depois que devorou tudo, a mesa, o prato e o cabo da
faca apresentavam as mesmas manchas de que se viam em seu corpo.
Depois, ele disse:
– Tenho sede!
Julião foi buscar o seu cântaro; e, quando o pegou,
ele exalou um aroma que dilatou seu coração e suas narinas. Era vinho; que
achado! mas o leproso esticou o braço, e de uma tragada esvaziou todo o
cântaro.
Em seguida, disse:
– Tenho frio!
Julião, com sua vela, ateou fogo a um molho de fetos
[samambaias], no meio da cabana.
O leproso ali se aqueceu, e, agachado sobre os
calcanhares, tremia com todos os seus membros, debilitava-se; seus olhos já não
brilhavam, suas chagas escorriam, e, com uma voz quase apagada, murmurou:
– Tua cama!
Julião ajudou-o serenamente a se arrastar até lá, e
até estendeu sobre ele, a tela do seu barco.
O leproso gemia. Os cantos de sua boca descobriam
seus dentes, um estertor acelerado sacudia-lhe o peito, e o ventre, em cada uma
das aspirações, escavava-se até as vértebras.
Depois cerrou as pálpebras.
– É como se tivesse gelo nos ossos! Fica junto de
mim!
E Julião, levantando a tela, deitou-se nas folhas
secas, junto dele, lado a lado.
O leproso virou a cabeça.
– Tira tua roupa, para eu ter o calor do teu corpo!
Julião despiu-se; depois, nu como no dia do seu
nascimento, deitou-se outra vez na cama; e sentia contra a sua coxa a pele do
leproso, mais fria que uma serpente e áspera como uma lima.
Julião procurava animá-lo; e o outro respondia,
ofegante:
– Ah! eu vou morrer!... Aproxima-te, aquece-me! Não
com as mãos! não! com todo o seu corpo.
Julião estendeu-se completamente em cima dele, boca
com boca, peito com peito.
Então o leproso estreitou-o; e seus olhos, de
repente, tiveram uma claridade de estrelas; seus cabelos alongaram-se como
raios de sol; o bafo de suas narinas tinha a suavidade das rosas; uma nuvem de
incenso elevou-se da lareira, as ondas cantavam.
No entanto uma abundância de delícias, uma alegria
sobre-humana descia como uma inundação na alma de Julião desfalecido; e aquele
cujo braço o continuava apertando, crescia, crescia, tocando com a cabeça e os
pés, as duas paredes da cabana. O telhado voou, o firmamento se desenrolava; –
e Julião subiu nos espaços azuis, face a face com Nosso Senhor Jesus, que o
levava para o céu.
E eis a história de São Julião, o Hospitaleiro, tal
como mais ou menos a encontramos nos vitrais de uma igreja de minha terra.
(FLAUBERT, 1974, p. 99 – 102)
REFERÊNCIAS:
FLAUBERT,
Gustave. Trois contes. Paris: Louis Conard, Librarie-Éditeur, 1910.
__________.
Três contos. Tradução de Luís Lima. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974.
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