Houve, porém, um problema impossível de
passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge da felicidade
pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o natural, no
centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente, permanecia
intocada.
Todos os móveis receberam nova coloração,
espargiam perfume, alguns receberam toalhas e enfeites novos. Apenas ela, a
mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a mesma cor desbotada,
desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos outros passaram, aos
poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de inferioridade, no
auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida
triste e lamentável a que aqueles seres a submetiam.
Quem aqueles móveis felizes pensavam que
eram? E onde estava a dona da casa que não valorizava a sua presença
inestimável? Como poderia ficar calada diante de situação tão adversa a seu
ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos servia à família que ali
residia. Era esse o pagamento recebido por tantos anos de benevolência e
solicitude? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como animais, e não em
sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que um incêndio
destruísse a felicidade daqueles móveis exibidos, que uma enchente destruísse
os risos daqueles seres frívolos. O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de
tudo para desfazer aquela alegria insuportável e sem graça.
Foi neste instante que gritou contra todos
os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias. Expôs o defeitos, as
fragilidades, os insucessos dos companheiros com a intenção de fazê-los se
sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu não mereço ser bem
tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que pensava e, sem se
importar com a tristeza que poderia causar aos seus, rebaixou-os com os piores
xingamentos.
Não se deu por vencida e passou a
lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que estavam ao seu redor
o quanto lhes havia ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras
contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva!
Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver mais tanta maldade e
ingratidão?
Depois que cansou de, desequilibrada,
criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos, aconteceu algo
que fez com que ela se calasse. De repente, com muita delicadeza, alguém a
limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe o
melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao longo
da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal de
contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes falava
com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais companheiros
com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia constrangida pelo
mal-estar que havia proporcionado.
A festa, no entanto, havia acabado para os
demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu conta de que fora uma
estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde.
Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e
desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito sábio, a olhou
condescendentemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém é um dom
tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de atirar
contra os outros as suas próprias frustrações”.
REFERÊNCIAS:
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da
mesa. In: Revista de Literatura e Artes
Boca Escancarada, n. 5, p. 21 – 22, mai. / ago. de 2014.
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