segunda-feira, 1 de agosto de 2016

CRÔNICA: "O AMOR SEGUNDO QUEM-AMA-SEM-AMAR"


Rilke[1] aconselha a um jovem poeta: “Não escreva poesias de amor. Evite, de início, os temas demasiado comuns: são os mais difíceis”. Será que o conselho não deveria estender-se também aos que se aventuram a escrever prosa? Sim, certamente.
            Apesar de ter consciência disso, eu decidi escrever sobre o muito discutido amor. O amor, neste caso, na perspectiva apontada por Platão em sua obra O Banquete. O amor como busca, desejo, necessidade de consolidação.
Outro dia alguém me perguntou se já amei e eu disse que não escreveria se nunca tivesse amado, no entanto eu sequer sei responder pergunta tão séria. Se eu amei algum dia não foi, certamente, com base na visão propagada ardorosamente pelos canais que a este assunto se reporta.
Se amei ou amo, perguntou-me o alguém, a quem direciono tal amor? Isto não importa, pois dizer que amo alguém não trará este alguém para mim. E amar é totalmente contrário ao ato de exposição – ao menos no meu caso –, porque sou avesso a declarações mais explícitas. E costumo dizer, contrariando visões mais telenovelísticas, que a confissão de amor é uma falha sem precedentes numa relação afetiva. O amor deve ser expresso, mas não com palavras. Confessar a alguém o amor sentido é um risco desnecessário – o que é mistério instiga.
O contrário do amor é o ódio? Perguntaram-me. Fui incisivo: não. O contrário do amor é a indiferença, a inexistência de qualquer afeto direcionado a quem fora antes alvo de sentimentos profundos e verdadeiros. O ódio só reforça os desvelos do amante para com o ser amado.
Uma pessoa está perdida se amar? Sendo capaz de amar com sofreguidão sem que haja reciprocidade, sim, porque, se amor é busca e possibilidade de encontro, o ser que ama sem ser amado está perdido irremediavelmente. 
Dizem em músicas sobre amor uma série de coerências e incoerências. Ninguém disse, no entanto, sobre esse vocábulo o que eu preciso escutar. Talvez Djavan, na música Faltando um pedaço, aproximou-se sutilmente do que eu poderia supor como definição ou explanação ou expressão do que o amor poderia ser em sua beleza e essência. Em francês, foi Edith Piaf com seu L’hymne à l’amour.
Cansei: escrever sobre amor é piegas. O povo no Brasil e no mundo vende produto demais sobre amor. Lamento que amar seja explorado por jogatinas de marketing, porém discutir sobre o assunto também é piegas. Amar sempre será piegas? Algumas histórias exploram a pieguice do amor e tornam-se grandes clássicos.
Tenho a impressão de que se alguém descobre que a gente ama é possível que este utilize o nosso amor para demonstrar todo desamor de que é capaz. Dizem, ainda, que amor pode matar, pode destruir, pode ser feroz, pode até dilacerar a alma. Mas isto não é paixão? O amor é tão absorvente assim? Não sei. Talvez o amor não seja do tipo que se entrincheira, ou pelo menos não deveria, em insanidades ou vicissitudes tumultuárias. Em verdade, amar pode fazer-se com urgência sem que se entenda como aconteceu e deve preservar o mínimo possível uma ilusão de harmonia e coerência.
Amar é complicado: ter a sensação de que alguém é indispensável é deprimente demais: amar dói e pensar sobre isto também. Os frágeis da nação nunca saberão lidar com parcimônia quando estiverem enredados por ele. Amar exige cuidado, pois pode conduzir o amante para abismos – e ninguém se prepara para queda que não sabe que vai acontecer. Amar parece uma dor sem fronteiras para o mais-doer-a-cada-instante. Amar é doação exagerada quase devastação do um que se funde ao outro.
A pergunta me vem novamente: amei ou amo? Tenho receio de dizer, ou tenho vergonha, ou tenho incerteza? Está bem, falarei a verdade: não. Ou sim? Digamos que não: então estou em paz por todo sempre. Digamos que sim: e, se não morri, foi porque aprendi a respirar em condição de afogamento.
            Carlos Drummond de Andrade pergunta, no poema Amar, presente no livro Claro Enigma[2]: “Que pode uma criatura, senão entre criaturas, / Amar?” Este extraordinário poema diz muito sobre o amor, porém me indago se não pode instigar demais o indivíduo a deixar-se seduzir pelas idealizações e conduzi-lo às amaríssimas sendas do amor e suas vicissitudes.
            A propósito, Rachel de Queiroz, em O Quinze[3], diz: “Ora o amor!... Esta história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... eu, pelo menos, nunca vi... o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforma as conveniências”. Internalizei de tal modo o realismo de Rachel de Queiroz que parece improvável que isto mude em mim.
O amor, no entanto, sou eu querendo chorar sem conseguir, porque choro é confissão e luta. É também a nublação que me vem em solitários dias. É sentir o peso de saber amar e não saber não ser amado. Dificilmente se é amado como se quer, ou se é amado por quem se quer. Eu preciso passar por esta vida tirana sem ter amor correspondido – tragédias particulares são valiosas para transformarem-se em escrita. Ou, sei lá, neste vale de contradições o que mais busco não é, senão, amar e ser amado? Talvez eu tenha nascido para problematizar o assunto, para vivê-lo jamais. Madame Bovary amou e sofreu as consequências, mas ela se defende: “Eu amei, e isto importa!”
A respeito do amor, não, ele ainda não me veio. Ainda estou isento de suas dilacerações. Eu me disponho humilde, porém, apesar do orgulho corrosivo de que sou vítima, a pensar mais sobre e a não fugir quando, por ventura ou desventura, o amor aparecer e demonstrar que merece ser vivido, porque não estou disposto a amar a quem não descobriu dele seu valor e sobriedade.
Os amantes sofrem muito. Tendem a suportar pesos ingentes. Eu não estou disposto. Se o mundo pode ser paz sem que abismos ambicionem nossos pés, por que reverter isso e procurar sendas de dor e desengano? O amor riu de mim, depois explodiu minhas mãos sempre vazias. Dizem que amar pode ser gratificante, no entanto esta ação pode doer arroubos.
Clarice Lispector disse, em O ovo e a galinha[4]: “O amor é quando é concedido participar um pouco mais”. Disse, ainda: “Amor é a desilusão do que se pensava que era amor”. Talvez eu tivesse muito a dizer sobre o que poderiam representar, para mim, essas ideias loucas de Clarice Lispector, escritora de densidade ímpar, mas prefiro apenas compartilhar esses trechos sem explicação ou análise. Amar pode ser somente fruição. 
No mais, que eu prossiga meu caminho por sendas solitárias. Medo é roupa que muito aperta, no entanto devemos resguardá-lo com intentos de melhor nos proteger. Antes que o sol se ponha, talvez, me virá o amor que ainda não veio. Ou talvez nunca venha e eu o espere – judeu silente a velar a estrela d’alva após arrebóis de sangue. Quem sabe o amor já não tenha vindo – pobre do amor que passou sem ser reconhecido!
         O amor, sei lá, parece rir de minha incapacidade de vivenciá-lo. Melhor que seja assim, afinal prefiro ser motivo de riso a ser propensão ao choro. E, obviamente, o mundo continuará a girar se o amor não vier me ver. Portanto: "Vae solis".
Émerson Cardoso
27/07/2016




[1] RILKE, Rainer Maria. Poemas e cartas a um jovem poeta.  Tradução de Geir Campos e Fernando Jorge. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013. p. 80.
[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 10. ed. Rio de Janeiro: Recordo, 1995.
[3] QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 58. ed. São Paulo: Siciliano, 1993.
[4] LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1977. 

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