Ao
concluir a leitura do livro Moto-contínuo,
do professor, músico, contista e poeta Tiago Nascimento Silva, veio-me a ideia
de que eu poderia, a princípio, procurar uma palavra que o resumisse. E a
palavra encontrada foi: desencanto. Desencanto, porém, não numa perspectiva
pejorativa, mas no mais estético sentido do termo.
Tiago Nascimento Silva atira sobre seus textos a
necessidade, mais que pertinente neste século em que nos arrastamos pelos escombros
da barbárie, de observar o mundo com vieses realistas. Já no primeiro poema,
por exemplo, deparamo-nos com um eu lírico que vislumbra a realidade com
olhares pesarosos e angustiados, como é o caso de Transbordamento: “Percebi que estava doente / meus dias ficando sem
cor / só via flores morrendo / tudo era choro, era dor”. Isto, no entanto, não
o impede de encontrar um lenitivo para alma, ou seja, a poesia, como
possibilidade de expurgação de seus males interiores, é o seu subterfúgio: “Mas
hoje minha vida está calma / consumi quem me consumia / o que faltava em minh’alma
/ era um pouco de poesia”.
Parece uma luz no fim do túnel o encontro do eu
lírico com a poesia – esta figura como uma quase “entidade” que surge no
irremediável do cotidiano e é capaz de sufragar o desânimo, a angústia e a dor
que ele rumina.
O fazer poético, neste sentido, torna-se um meio
catártico e, consequentemente, “salvacionista”. Não devemos, contudo, nos deixar
enganar por esse tom “otimista” presente no primeiro texto. O que se segue, e
isto podemos confirmar ao ler a maior parte dos poemas, é uma visão pessimista,
desencantada e derrotista da existência.
Exemplificamos nossa assertiva com, pelo menos, três
poemas: 1) A dança das engrenagens do
universo, 2) Conferência
internacional da decadência humana e 3) Catarse.
A dança das
engrenagens do universo é um poema filosófico. Do ponto de
vista formal, o uso de anáforas, a repetição de palavras do campo semântico da negação e períodos curtos remetem ao tom
provocativo e autoafirmativo do eu lírico. Nele, percebemos o tom contraditório
do discurso de um eu lírico que, por um lado, expressa revolta e afirma,
inconformado, sua insatisfação ante o esvaziamento do ser e ante o nada, que pode
camuflar-se em discursos construídos socialmente e tendem à imposição de “regras”,
de “teorias” e até da “felicidade”. Ele não aceita tais imposições e brada: “Não
me venham com regras, / Não me tragam teorias, / Não existe felicidade”.
Por outro lado, ao dizer, incisivamente, que tudo “se
resume a nada”, e repetir que os dias, as noites e as vidas são “todas iguais”,
e que “nada é o que existe”, percebemos mais uma nuance do eu lírico: o ser inconformado
dá vazão ao ser estático, paralisado e incapaz de assimilar o mundo em que está
inserido como passível de mudança a partir de suas próprias ações. Se nada mais
“há”, qualquer esforço para alterar o rumo das coisas seria um esforço vão. Sua
luta consiste, apenas, na tentativa de expurgação, de insatisfação e
insolência. Tão hiperbólico quanto desiludido, o eu lírico está enredado na
teia perigosa de um cotidiano percebido como algo inalterável. Ele está fechado
em sua visão de que há uma verdade “paradoxal” e “inexorável”, assim qualquer
esforço seria inútil – ele restringe-se a sentir o nada no que há de mais
patético e irremediável. O eu lírico tenta justificar, neurótico, sua reação
agressiva: “Não é mau humor, nem melancolia, / nem tristeza, nem pessimismo. / Não
é nada”.
O título Conferência
internacional da decadência humana nos remete, de certo modo, ao texto de Carlos
Drummond de Andrade: Congresso
internacional do medo. Em mais de um texto, ressaltemos, percebemos a
influência de Drummond sobre a escrita de Tiago Nascimento Silva. No poema
deste, o eu lírico apresenta, na primeira estrofe, quatro indagações. Dentre elas,
merece destaque: “Quem fez dos meus olhos estes poços secos de paisagem
estática?”
Em resposta, o eu lírico afirma algo que nos lembra
do teor do poema Retrato, de Cecília
Meireles: “Olho para os meus braços / vejo carne morta, pele engelhada, veias à
mostra, / o padecimento de uma glória que não tive”. A sensação de deterioração
do seu corpo reflete, inequivocamente, a sensação de sua alma, que é reforçada pela visão pessimista que, por não suportar o mundo, espaço
em que “tudo é dor”, e em que o indivíduo está fadado, schopenhauerianamente, “a
arrastar um corpo até a escuridão eterna”, e o impele à morte.
Assim, ele expõe: “Quero morrer. / Espero morrer. /
Preciso morrer. / Sinto-me tão decrépito e inútil que nem morrer eu consigo”. No desfecho, cujo efeito é muito bem delineado,
mais uma vez percebemos a influência de Drummond, desta feita na linha do que
ele apresenta no poema Cidadezinha
qualquer. O eu lírico conclui: “Enquanto a foice não me decepa os dias, /
sento-me a espreitar o céu, / introjeto o universo em meus olhos / e percebo o
quanto a vide é besta.
Em Catarse,
um dos poemas mais longos do livro, o eu lírico inicia seu discurso com a tese:
“A vida foi feita pra ser sofrida”. A dor, para ele, surge personificada e, sádica,
“procura um peito em que habitar”. Contra as amarras da dor, segundo o eu
lírico: “Não há como fugir”. A dor, no entanto, após ser descrita como a mais
atroz das figuras para a condição humana, paradoxalmente é vislumbrada como
possibilidade de crescimento e “evolução” existencial – e por que não dizer
espiritual!
Talvez isso nos remeta a uma visão masoquista
expressa pelo eu lírico, que se compraz em sofrer porque disto resulta a capacidade
de compreender “o que é a vida”. É certo dizer, neste caso, que a dor, antes
personificada como algo terrífico a que fatalmente o ser estaria submetido, passa
a ser pensada como um mal necessário, pois conduziria o indivíduo à consciência
de si mesmo, do outro e do mundo.
Doer torna, por este ângulo de visão, o indivíduo
mais apto a evoluir, a tornar-se coerente em suas posturas, a sufragar suas
culpas – numa perspectiva judaico-cristão bem possível à leitura desse poema. No
mundo líquido, termo utilizado por Bauman, a dor é percebida como canal por meio do qual o
indivíduo seria capaz de, pelo que apreendemos do eu lírico, perceber suas
fragilidades e as dos outros. O eu lírico afirma, neste sentido: “Não há roupa
bonita / aparelho eletrônico / posição social / conta bancária / carro”, pois “a
vida não tem sentido”.
Como solução, para a dor cruel e fatal, embora
benéfica para o ser, e para a falta de sentido da vida, o eu lírico aconselha: “Senta
contigo mesmo / no silêncio sepulcral da noite / puxa pra dentro de si todo o
ar que pode (enquanto pode) / [...] Não se desespera / não se desengana (apesar
de a vida ser essa farsa circense)”. Ele completa, ainda, que “só a dor é
positiva / na mesma inexorabilidade ora descrita, / pois é através dela, / e só
dela, / que abandonamos a carcaça das preocupações individuais / e nos
dilatamos na sobriedade líquida da alteridade”.
Além disso, precisamos mencionar poemas que causaram
surpresa e despertaram a mais sincera simpatia: 1) O gume da faca (espécie de poema concreto que faz um trocadilho
criativo com a palavra “obrigado”), 2)
Poema dadaísta (que é o vazio, o oco, o nada ou, no dizer de Parmênides, o
não-ser), 3) A chave da poesia (texto
metalinguístico que discorre sobre a beleza do fazer poético, e que o defende contra
visões pouco afeitas à sua grandeza), 4) O
gari (poema contundente que mostra, em tom cinematográfico, o anonimato de
um gari capaz de cantar, apesar do pouco reconhecimento de sua função e de seus
males da alma), 5) Tristeza suturada na
carne (uma confissão da tristeza que se apodera da alma sem que se possa
dela fugir, pois ela seria fruto de uma condição fatalista impossível de ser
alterada), 6) Cântico da última esperança
(o eu lírico afirma arrastar-se pela vida em busca de sentido e sente a
esperança ir-se, para sempre, embora) e 7) O
ciclo fechado dos dias (poema concreto realizado em formato esférico que sugere
o ad infinitum da existência humana
envolta no cotidiano e seus tédios inevitáveis).
Podemos dizer, para nos situarmos quanto à produção
do autor, que Moto-contínuo é seu segundo
livro[1],
de modo que ele ainda está em busca de seu estilo e de seu leitmotiv. O que observamos, porém, é que os poemas estão repletos
de vozes líricas perdidas em atmosfera de irrealização, sofrimento e desilusão –
e isto os enriquece consideravelmente. A maior parte deles traz temas instigantes,
alguns são bem delineados e dispõem de uma linguagem prosaica adequada à ideia
de Mário de Andrade, que via na criação literária moderna a reivindicação pelo “direito
à pesquisa estética”.
É certo que, em busca de consolidar seu estilo, um
poeta tende a experimentar formas diversas de expressão e, desse modo, ainda
hesita entre um ou outro modo de expressar-se demonstrando, aqui e ali, alguns
excessos, inadequações linguísticas e descuido quanto ao conteúdo e à forma. Com
Tiago Nascimento Silva não é diferente, no entanto sejamos coerentes e façamos
justiça: pouco falta para que sua produção poética alcance o espaço da
segurança, da originalidade temática e da expressividade linguística.
Com relação a isto, por exemplo, vejamos o soneto Luta vã. Neste caso, seria mais
pertinente que ele tivesse produzido um soneto sem preocupações com a métrica,
um soneto de versos livres, sem apuro ou rigor formal. Ele tentou, no entanto,
produzir um poema com os ditames do gênero e terminou não conseguindo um bom
resultado, tendo em vista o problema com as rimas – que parecem forçadas –, com
a métrica – ora contamos 10 sílabas poéticas, ora contamos 11 e 12 – e com uma
inadequação na palavra “guerrear” – provavelmente problema de digitalização. O tema,
porém, está bem concatenado com os demais textos do livro, também algumas
imagens são criativas, mas o texto em si não está bem acabado.
Para além desses pontos, há em seu livro crítica
social, perspectivas políticas, percepções filosóficas, um bom trabalho com a
linguagem, títulos altamente criativos, imagens e desfechos bem delineados. Em nenhum
momento os poemas de Tiago Nascimento Silva são vulgares, obscuros, frágeis em
suas temáticas e em seus aspectos formais. Assim como os contos que ele
produziu em seu Teoria do sofrimento,
metafísica da dor ou filosofia de um triste, publicado em 2014, seus poemas
são contundentes, angustiantes e densos – o que os tornam dignos de leitura e
análise e admiração –, ao mesmo tempo em que são reflexivos, provocativos e realistas.
O mundo, para as vozes líricas de Tiago Nascimento Silva, aparentemente está
vazio, sem norte, sem possibilidades de melhores dias, mas, no fundo de tudo,
há, sim, um resquício de esperança – e esta contradição é o que de melhor localizamos
em Moto-contínuo.
Se alguém perguntar a Tiago Nascimento Silva o que
ele faz da vida, ele pode responder, como o faz o eu lírico do poema Sobre conversas e voos: “Poesia”. E, com
isto, ele falará a mais pura verdade!
SILVA,
Tiago Nascimento. Moto-contínuo: a
mecânica do desespero. Pará de Minas, MG: VirtualBooks, 2016.
Cícero
Émerson do Nascimento Cardoso
20/09/2016
[1] Em 2015, com o também poeta
Jonas Jandson, Tiago Nascimento Silva publicou o livro Quarenta e dois.
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