“Caiu um poste
ou quebrou-se o gerador. Faltou luz na cidade. Das ruas que vêm ter à praça
continuavam a chegar pequenos grupos. Desarmado o circo, tudo já seguira, de
trem ou nos dois degraus da igreja, nas cornijas, nos fios, nos telhados. Mãos
para trás, eu entre os da turba, olhos na tromba erguida para a lua cheia.
Queríamos saudar a elefanta pela última vez. Faróis de bicicletas se enovelavam
no ar empoeirado, laçando a multidão. Entre as sombras, vi o rosto de Armando,
seu ar perdido, os olhos etéreos, a mão direita sobre o paletó. Não fora olhar
para Hahn; queria ver o pátio enluarado. Aprecia o luar. Com a lua, não vê o
monturo, as paredes sujas, as caras dos bêbados. Um pouco de esforço, e
descobre um fiorde. Ou algum dos bichos que continuava a inventar nos seus
óleos. Havia qualquer coisa de antigo ritual na multidão que marchava
lentamente. Alguém cantava a marcha da Aída,
para nós já familiar. Outras vozes, aos poucos, juntaram-se àquela voz
iniciadora. Onde li o caso do elefante que, durante doze anos – sim, doze –
viajou sozinho através da baía de Bengala, de ilha em ilha, percorrendo
centenas de quilômetros? Que procurava? E há quanto ando eu nesta cidade, golfo
de consternação, perseguindo o que talvez não exista? Duas jovens, à minha
frente, levavam ramos de árvores erguidos. Fome de dar-lhes o braço,
extraviar-me em sua companhia, cantando como os outros. Iriam quantas mulheres,
além delas? Não haveria, entre todas, nenhuma ao mesmo tempo real e fictícia,
para dissipar a invisível nuvem que me separava da vida? Nenhuma? Exclamei com
voz rouca: “Adeus, Hahn!”. Não sabia, ao certo, de que profundo bem, de que
essencial esperança me desapossava. As moças dos ramos de árvore, sorrindo, olharam
para trás. Envergonhado, adentrei-me num beco. Mais uma vez, sem rumo, uivando
dentro de mim, ganhei as ruas adormecidas”.
LINS, Osman. Nove,
novena – narrativas. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 58 - 59.
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