O
LEITOR. Direção
de Stephen Daldry. Produção: Anthony Minghella, Sydney Pollack, Donna Gigliotti
e Redmond Morris. Elenco: Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross. Estados
Unidos: 2008. Filme (123 min), DVD.
No filme O
Leitor (2008), de Stephen Daldry – que rendeu a Kate Winslet, vivendo
a personagem Hanna Schmitz, os mais importantes prêmios cinematográficos de
2009 –, uma personagem feminina é julgada e condenada por seus crimes contra a
comunidade judaica. O enredo conduz-nos a acompanhar o drama desta personagem e
compreender que ela, quando em Auschwitz, foi condicionada a cumprir ordens sem
pensar sobre seus atos, muito menos questioná-los. Este filme é baseado na obra
de mesmo título do escritor alemão Bernhard Schlink, publicada em 1995.
A propósito do enredo, O Leitor
é constituído por flashbacks que retomam
a história de Michael Berg e sua relação amorosa com a personagem Hanna
Schmitz, ocorrida no verão de 1958. Entre leituras d’A Odisseia, de Homero, e d’A dama
do cachorrinho, de Tchekhov, Hanna e Michael vivenciam uma relação afetiva que
os aproximam intensamente, até que Hanna, após ser promovida em seu local de
trabalho, desaparece sem informá-lo de seu paradeiro.
Michael havia conhecido Hanna aos quinze anos, quando ela lhe prestou auxílio
por ocasião de um problema de saúde. Apesar da diferença de idade, eles passam
a viver uma relação afetiva que representa para Michael a descoberta do amor e de
sua sexualidade. Com o desaparecimento de Hanna, Michael retoma sua vida e entra
para a faculdade de Direito, ocasião em que conhece uma colega de curso com
quem tem uma filha. Neste mesmo período, durante um estágio num tribunal, ele é
instigado por seu professor a participar do julgamento de ex-guardas dos campos
de concentração de Auschwitz, que seriam julgadas por terem participado da
“marcha da morte”, em 1944, e por terem sido responsáveis, numa igreja da
Cracóvia, pela morte de 300 judias que foram incendiadas.
Michael reencontra Hanna, sua antiga amante, entre as mulheres que
estavam no banco dos réus. Somos informados de que Hanna, ao escolher as
mulheres que iriam morrer no campo de concentração, optava pelas mais jovens,
aparentemente as de aspecto doentio e frágil, a quem ela protegia e para as
quais ela pedia que realizassem leituras. Ao conhecer Michael, foi exatamente
assim que Hanna procedeu: em seu primeiro contato com o rapaz ela o auxiliou, o
protegeu e, após o estreitamento da relação, ela pedia que ele também
realizasse leituras.
No julgamento, a acusação mais grave recai sobre Hanna, que tinha sido
uma mera guarda, mas que na ocasião é acusada de estar no comando do grupo
responsável pela morte das 300 judias incendiadas na igreja. Ela é acusada,
neste caso, de ter escrito o relatório que comprovaria sua participação no
comando da ação e, consequentemente, de ser responsável, mais que as demais, de
exterminar as mulheres.
As demais acusadas são condenadas a quatro anos e seis meses de prisão,
mas Hanna, que assume a autoria do relatório, é condenada à prisão perpétua.
Michael, no entanto, detém uma informação que poderia salvá-la da acusação.
Esta informação, porém, é um segredo que Hanna não quer revelar a ponto de
submeter-se à punição para mantê-lo escondido. Isto leva Michael a passar por uma
severa crise moral. O que fazer: 1) permitir que Hanna se entregue à prisão
perpétua, mas ser fiel a ela e assegurar-lhe que seu segredo será resguardado,
ou 2) revelar seu segredo ao tribunal e, assim, libertá-la da prisão perpétua,
mesmo que isto contrarie seu desejo e atente, de algum modo, contra sua
dignidade?
Michael opta, como podemos constatar, pelo silêncio. Ele respeita sua
antiga amante, aceita sua decisão de não relutar ante a condenação e retoma sua
vida. Isto coaduna com o que Hanna diz, em determinada ocasião: “Não importa o
que sentimos, mas o que fazemos”. Michael sofre com a ideia de que, para ser
fiel ao desejo de sua ex-amante, se viu obrigado a silenciar quando seu
testemunho poderia salvá-la.
Alguns
anos após, Michael decide gravar fitas em que ele realiza leituras e as envia
para Hanna, que tenta manter contato com Michael, em 1976, porém não recebe
resposta. Em 1988, quando Hanna consegue a concessão para sair do presídio, e
Michael é informado de que ela será liberta, há um reencontro entre eles –
talvez seja uma das cenas mais pungentes do filme. Ela constata que seu grande
amor não é mais o mesmo. Sua condição de ex-presidiária, sua velhice e seu
crime representavam barreiras intransponíveis entre ela e o amado, que decide auxiliá-la
em sua tentativa de retomar a vida, mas ela realiza um ato desesperado antes de
sair do presídio.
Hanna
pede, em dado momento, que Michael entregue um dinheiro, que ela guarda numa
lata velha, às sobreviventes do incêndio da igreja. Ele encontra-se com uma
delas, entretanto esta aceita apenas a lata e recusa o dinheiro. Quando Michael
pergunta se poderia utilizar o dinheiro para alguma entidade direcionada à
comunidade judaica, ela afirma, em tom arrogante e magoado, revestido de
lembranças amargas e de sofrimento, que ele faça o que quiser com o dinheiro, e
que judeus nunca precisaram de auxílios como os que ele propõe.
Hanna é uma personagem densa. Talvez a mais complexa das personagens a
que Kate Winslet emprestou seu talento. Por trás da ação monstruosa que a fez
partícipe do extermínio dos mais de seis milhões de judeus, em campos nazistas,
acontecimento histórico que não pode ser esquecido, e repetido, há uma mulher
que traz um limite que a torna tão vulnerável quanto fragilizada.
Para manter seu segredo, ela perde o amor de sua vida, é condenada à
prisão perpétua e é humilhada pela filha da judia que ela, no passado, quase
exterminou. Hanna é uma personagem contida, independente e solitária. Vivencia,
sem crises morais, um envolvimento afetivo-amoroso com um rapaz mais jovem – na
cena do restaurante ela é confundida com a mãe dele. Ela traz em si, todavia,
sentimentos de culpa que a tornam infeliz – a cena da igreja, em que ela
observa crianças a cantar, remete-a ao crime cometido, por isto o choro
incontido cuja motivação Michael desconhece.
Além disso, ela é uma personagem cujo caráter prático, racional, faz com
que ela renuncie ao amor e à liberdade para que, desse modo, seja resguardado
aquilo que mais a torna vulnerável. Seu segredo parece-lhe algo vergonhoso
demais para que ela possa assumir para si, e para o mundo, sem que isto a
destrua em sua dignidade.
Quanto ao trabalho no campo nazista, Hanna interpela um dos advogados
que a acusa perguntando-lhe sobre o que ele teria feito se estivesse em seu
lugar. Ela argumenta que havia uma vaga de guarda do campo nazista, que pleiteou
a vaga e conseguiu o cargo tendo, obviamente, que cumprir ordens. Mais uma vez
vem à tona a frase que anteriormente apontamos: “Não importa o que sentimos,
mas o que fazemos”. Apoiada nisto, ela realiza os atos que a levam ao tribunal
– não sem sentimento de culpa, como apreendemos de seu último gesto –, ela envia
o dinheiro para a filha da sobrevivente do campo nazista (que ela reencontrara
no tribunal) e comete suicídio (gesto simbólico de autopunição).
Esse filme instiga-nos a vários questionamentos: até que ponto alguém é
capaz de guardar um segredo? Renunciar ao amor e a uma vida é coerente quando vivê-los
implica na exposição de um segredo que nos humilha? Que vida alguém pode ter
após destruir tantas outras vidas? Quem pode livrar-se da culpa, quando a
existência aponta-nos para as consequências de nossas ações impensadas e
realizadas no irremediável?
Michael, por sua vez, também é uma personagem complexa. Ele passa sua
vida inteira preso às lembranças da mulher com quem ele descobriu as
vicissitudes do amor. Em algumas cenas, percebemos sua incapacidade de
permanecer na cama com uma mulher após relacionar-se sexualmente com esta. Sua
primeira amante deixou nele lembranças intensas demais para que ele consiga retomar
a vida sem recordar-se de que ela existiu.
A cena em que Michael e sua filha Júlia vão ao túmulo de Hanna, em 1995,
ocasião em que ele passa a contar para ela quem era aquela mulher sobre quem
ele nunca falou, parece-nos uma tentativa de libertar-se, também ele, da culpa
de não tê-la absolvido, com seu testemunho, da condenação. Ou mesmo da culpa de
ter dado continuidade à vida – mesmo marcado pelas lembranças do passado –
sabendo que ela poderia estar livre se ele tivesse dito no tribunal aquilo que
ela tanto quis ocultar.
Essa é uma história de amor,
lealdade e, sobretudo, respeito. Mas é uma história amarga, que mostra o outro
lado desse acontecimento tenebroso que foi o holocausto. Embora tenha sido
visto o lado humano de Hanna, nem por isto ela foi isenta de cumprir penas
pelos crimes hediondos que cometera. Hanna foi uma das poucas envolvidas com os
crimes nazistas, dentre os oito mil trabalhadores que foram recrutados para tal
empreendimento desumano, que foi condenada. Ela deve ter sentido medo, desejo
de libertar-se, deve ter alimentado conflitos, no entanto suas ações eram
motivadas por uma linha de raciocínio que a fez enfrentar a si mesma ante os
medos e a motivou a realizar seu grande erro existencial: “Não importa o que
sentimos, mas o que fazemos”.
CARDOSO,
Cícero Émerson do Nascimento. Resenha Crítica: “O Leitor”, de Stephen Daldry. Revista Sétima de Cinema, n. 38, p. 03 –
07, dez. 2016.
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