AUERBACH,
Erich. A cicatriz de Ulisses e Epílogo. Mimesis:
a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva,
2004.
EPÍLOGO
SOBRE
A CATEGORIA ANALÍTICA
1
– O tema deste escrito, a interpretação da realidade através da representação
literária ou “imitação”, ocupa-me há longo tempo. Parti originalmente da
interrogação platônica no livro X da República, que coloca a Mimesis em terceiro lugar após a
verdade, em relação com a pretensão de Dante de apresentar na Comédia a realidade verdadeira.
1.1
– Ao observar os vários modos de interpretação dos acontecimentos humanos nas
literaturas europeias, meu interesse concentrou-se e precisou-se,
desenvolvendo-se algumas ideias diretrizes que procurei perseguir. (p. 499)
QUE
IDEIAS SÃO ESTAS?
- A primeira destas ideias refere-se à doutrina antiga, mais tarde retomada por toda corrente classicista acerca dos níveis da representação literária. (p. 499)
- [...] tanto durante a Idade Média toda como ainda no Renascimento, houve um realismo sério; tinha sido possível representar os acontecimentos mais corriqueiros da realidade num contexto histórico sério e significativo, tanto na poesia como nas artes plásticas; a doutrina dos níveis não tinha validez universal. (p. 500). [Auerbach denomina como figural a “visão da realidade da tardia Antiguidade e da Idade Média”].
- Tornou-se-me claro que o realismo moderno, da forma que se formou no começo do século XIX na França, realiza como fenômeno estético uma total solução daquela doutrina [antiga]; mais total e mais significativa para a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. (p. 499) [...] o realismo moderno [...] se desenvolveu [...] em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida. (p. 500)
2
– A visão da realidade expressa a partir das obras cristãs da tardia
Antiguidade e da Idade Média é totalmente diferente da do realismo moderno. (p.
500)
SOBRE
A PESQUISA
3
– A pesquisa fundamenta-se nessas três ideias estreitamente ligadas entre si,
que deram forma ao problema original, mas que também lhe impuseram,
evidentemente, limites mais estreitos. Naturalmente ela envolve uma variedade
de outros motivos e problemas inerentes à abundância dos fenômenos históricos a
serem tratados; contudo, a maior parte deles está de alguma forma ligada
àquelas ideias e, em todo caso, recorre-se constantemente a elas. (p. 501)
SOBRE
O MÉTODO
4
– Uma história sistemática e completa do Realismo não somente teria sido
impossível, como também não teria servido à intenção, pois, devido às ideias
diretrizes, o tema ficou delimitado de uma forma muito determinada; já não se
tratava mais do Realismo em geral, mas da medida e espécie da seriedade, da
problematicidade e da tragicidade no tratamento de temas realistas de tal forma
que as obras meramente cômicas e que pertencem, indubitavelmente, ao âmbito do
estilo baixo ficaram excluídas; só entraram em consideração ocasionalmente,
como exemplo contrário, e, como tais, podiam ser apresentadas, por vezes, obras
totalmente irrealistas de estilo elevado.
4.1
– Evitei ressaltar teoricamente e descrever sistematicamente a categoria das
“obras realistas de estilo e caráter sérios” que, como tais, nunca foram
tratadas em si, nem sequer reconhecidas; isto teria resultado, logo de início,
num definir trabalhoso e cansativo [...] (pois nem sequer a expressão “realista
é unívoca”), e eu provavelmente não teria podido me arranjar com uma
terminologia desusada e rebarbativa.
4.2
– O método que adotei, isto é, o de apresentar, para cada época, uma certa
quantidade de textos, para com base nos mesmos pôr à prova os meus pensamentos,
leva imediatamente para dentro do assunto, de tal forma que o leitor chega a sentir
do que se trata, antes que lhe seja impingida uma teoria. (p. 501)
SOBRE
OS TEXTOS INTERPRETADOS
5
– O método de interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo
campo de ação: pode escolher e dar ênfase como preferir. Contudo, aquilo que
ele afirma deve ser encontrável no texto. (p. 501)
5.1
– As minhas interpretações são dirigidas, sem dúvidas, por uma intenção
determinada; mas esta intenção só ganhou forma paulatinamente, sempre durante o
jogo com o texto, e, durante longos trechos, deixei-me levar pelo texto.
5.2
– Os textos também são, em sua grande maioria, escolhidos ao acaso, muito mais
graças ao encontro casual e à inclinação pessoal do que à intenção precisa.
6
– Cada capítulo trata de uma época; por vezes uma época relativamente curta,
meio século, por vezes, também, uma época mais longa. (p. 502)
A CICATRIZ DE ULISSES
PARTE
I
APRESENTAÇÃO
DA CENA
1
– Os leitores da Odisseia lembrar-se-ão, sem dúvida, da bem preparada e
emocionante cena do canto XIX, quando Ulisses regressa à casa e Euricleia, sua
antiga ama, o reconhece por uma cicatriz na coxa. (p. 01)
2
– Tudo isto é relatado com exatidão e relatado com vagar. Num discurso direto,
pormenorizado e fluente, ambas as mulheres dão a conhecer os seus sentimentos;
não obstante tratar-se de sentimentos, um pouco mesclados a considerações muito
gerais acerca do destino dos homens, a ligação sintática entre as partes é
perfeitamente clara; nenhum contorno se confunde. (p. 02)
NOTA:
No parágrafo seguinte, Auerbach discorre sobre a descrição da cena presente e
da cena digressiva, que diz respeito à caça ao javali, ocasião em que Ulisses
adquiriu sua cicatriz.
3
– O primeiro pensamento que acode ao leitor moderno, de que se pretende é
aumentar a tensão, é, se não totalmente falso, pelos menos não decisivo para a
explicação do processo homérico. Pois o elemento da tensão é muito débil nas
poesias homéricas; elas não se destinam, em todo o seu estilo, a manter em
suspenso o leitor ou ouvinte.
3.1
– O não preenchimento total do presente faz parte de uma interpolação que
aumenta a tensão mediante o retardamento; é necessário que ela não aliene da
consciência a crise por cuja solução se deve esperar com tensão, para não
destruir a suspensão do estado de espírito; a crise e a tensão devem ser
mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano.
3.2
– Só que Homero [...] não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre
somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. É
o que acontece na passagem citada. (p. 03)
4
– Goethe e Schiller [...] se correspondiam [...] sobre o “elemento retardador”
na poesia homérica em geral, e opunham-no diretamente ao princípio da “tensão”
[...].
4.1
– O elemento retardador, o “avançar e retroceder” mediante interpolações,
também a mim parece estar, na poesia homérica, em contraposição ao tenso
impulso para uma meta.
4.2
– De certo Schiller tem razão quando diz que Homero descreve “meramente a
tranquila existência e ação das coisas segundo a sua natureza”; a sua finalidade
estaria “presente em cada um dos pontos do seu movimento”. Só que tanto
Schiller quanto Goethe, elevam o processo homérico à categoria de lei da poesia
épica em geral, e as palavras de Schiller, acima citadas, devem vigorar para o
poeta épico em geral, em contraste com o trágico.
4.3
– Contudo há, tanto nos tempos antigos como nos modernos, obras épicas
significativas escritas sem qualquer “elemento retardador”, no sentido de
Schiller, mas de maneira claramente carregada de tensão, obras que, sem dúvida,
“roubam a nossa liberdade emocional”, o que Schiller quer conceder
exclusivamente ao poeta trágico.
4.4
– Mas a verdadeira causa da impressão de retardamento parece-me residir em
outra coisa; precisamente, na necessidade do estilo homérico de não deixar nada
do que é mencionado na penumbra ou inacabado.
NOTA:
A digressão é um traço comum em Homero, pois nada lhe foge à necessidade de
descrever algo pormenorizadamente quanto à sua espécie e origem. Há nele,
ainda, a necessidade de exteriorização dos fenômenos.
5
– Aqui, é a cicatriz que aparece no decorrer da ação; e não é possível para o
sentimento homérico deixá-la emergir simplesmente da escuridão de um passado
obscuro; ela deve sair claramente à luz, e com
ela, um pouco da juventude do herói [...].
5.1
– [...] impulso fundamental do estilo homérico: representar os fenômenos
acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as partes, claramente definidos em
suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos
psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpressivo. Sem
reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero
dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros,
falam para si, de modo a que o leitor o saiba. Acontecem muitas coisas na
poesia de Homero, mas nunca tacitamente [...].
5.2
– Isto é válido, naturalmente, não só para os discursos, mas para toda a
apresentação. Os diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara
relação mútua; um número considerável de conjunções, advérbios, partículas e
outros instrumentos sintáticos, todos claramente delimitados e sutilmente
graduados na sua significação, deslindam as personagens, as coisas e as partes
dos acontecimentos entre si, e os põem simultaneamente, em correlação mútua,
ininterrupta e fluente; tal como os próprios fenômenos isolados, também as suas
relações, os entrelaçamentos temporais, locais, causais, finais, convêm à luz
perfeitamente acabados; de modo que há um desfile ininterrupto, ritmicamente
movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma
fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre,
de profundezas inexploradas. (p. 04)
6
– E este desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é, sempre em
pleno presente espacial e temporal. Poder-se-ia acreditar que as muitas
interpolações, o frequente avançar e retroceder, deveriam criar uma espécie de
perspectiva temporal e espacial; mas o estilo homérico jamais dá esta
impressão. (p. 05)
6.1
– A maneira pela qual é evitada esta impressão de perspectiva pode ser
observada claramente no processo da introdução das interpolações, uma
construção sintática que é familiar a todo leitor de Homero; utilizado em nosso
trecho, é também encontrável em interpolações muito curtas. À palavra
“cicatriz” segue-se imediatamente uma oração relativa (“que outrora um
javali...”), a qual se expande num amplo parêntese sintático; neste
introduz-se, inesperadamente, uma oração principal (“um deus deu-lhe...”), a
qual vai se livrando silenciosamente da subordinação sintática, até que, com o
verso 399, começa um novo presente [...].
6.2
– Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um
segundo planos, de modo que o presente se abra na direção das profundezas do passado,
é totalmente estranho ao estilo homérico; ele só conhece o primeiro plano, só
um presente uniformemente iluminado, uniformemente objetivo; e assim, a
digressão começa só dois versos depois, quando Euricleia já descobriu a
cicatriz – quando a possibilidade da ordenação em perspectiva não mais existe,
e a estória da cicatriz torna-se um presente independente e pleno. (p. 05)
PARTE II
A
ODISSEIA E O VELHO TESTAMENTO
1
– A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe
um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico, surgido de um outro mundo
de formas. Tentarei a comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração
inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta. (p. 05)
NOTA:
Deus, que não explicita de onde fala, chama Abraão e ele responde: “Eis-me
aqui!” Não se diz a posição dos interlocutores.
1.1 –
De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito.
1.2
– A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu
particular modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro quando nos
voltamos para o interior do outro interlocutor, Abraão. Onde ele está? Não o
sabemos. Ele diz, contudo: “Eis-me aqui” – mas a palavra [...] não quer indicar
o lugar real no qual Abraão se encontra, mas o seu lugar moral em relação a
Deus que o chamara [...].
1.3
– Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, contudo, “aparece”), de algum
lugar, só ouvimos a sua voz, e esta não chama nada além do nome: sem adjetivo,
sem atribuir à pessoa interpelada um epíteto, como seria o caso em qualquer
apóstrofe homérica. E também de Abraão nada é tornado sensível, afora as
palavras com que ele replica a Deus: Hinne-ni,
“Eis-me aqui” [...]. (p. 06)
2
– Após esta introdução, Deus dá sua ordem, e tem início a narração propriamente
dita. Todos a conhecem: sem interpolação alguma, em poucas orações principais,
cuja ligação sintática é extremamente pobre, desenvolve-se a narração. Aqui
seria impensável descrever um apetrecho que é utilizado, [...] são servos,
burro, lenha e faca, e nada mais, sem epítetos; têm de cumprir a finalidade que
Deus lhes indicara; o que mais eles são, foram ou serão permanece no escuro.
Uma viagem é feita, pois Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício;
mas nada é dito acerca dessa viagem, a não ser que durara três dias, e mesmo
isso é expresso de forma enigmática [...]
2.1
– Desta forma, a viagem é como um silencioso andar através do indeterminado e
do provisório, uma contenção do fôlego, um acontecimento que não tem presente e
que está alojado entre o que passou e o que vai acontecer, como uma duração não
preenchida, que é, todavia, medida: três dias! (p. 07)
3
– Na narração aparece uma terceira personagem importante, Isaac. [...] Ele pode
ser belo ou feio, inteligente ou tolo, alto ou baixo, atraente ou repulsivo –
nada disto é dito. Só aquilo que deve ser conhecido [...] para salientar quão
terrível é a tentação de Abraão, e quão consciente é Deus desse fato.
3.1
– Observa-se com este exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos
descritivos e as digressões da poesia homérica; com a sua alusão à existência
restante da personagem descrita, aquilo que não é totalmente apreendido pela
situação, à sua existência, por assim dizer, absoluta, eles impedem, mesmo no mais
espantoso dos acontecimentos, o surgimento de uma tensão opressiva. Mas no caso
da oferenda de Abraão, a tensão opressiva existe. O que Schiller queria
reservar para o poeta trágico – roubar nossa liberdade de ânimo, dirigir numa
só direção e concentrar as nossas forças interiores (Schiller diz “a nossa
atividade”) – é obtido neste relato bíblico que, certamente, deve ser
considerado épico. (p. 08)
4
– Encontramos o mesmo contraste quando comparamos o emprego do discurso direto.
No relato bíblico também se fala; mas o discurso não tem, como em Homero, a
função de manifestar ou exteriorizar pensamentos. Antes pelo contrário: tem a
intenção de aludir a algo implícito, que permanece inexpressão. Deus dá a sua
ordem e discurso direto, mas cala seus motivos e intenções. (p. 08)
4.1
– A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao local do sacrifício não é senão
uma interrupção do pesado silêncio, e serve apenas para torná-lo mais
opressivo.
5
– Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que
estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado,
fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e
espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano;
pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com
muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que
nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. Os
pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o
que há entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de
interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos: só são
sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo, dirigido com
máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por isso mesmo, muito mais
unitário, permanece enigmático e carregado de segundos planos. (p. 09)
5.1
– Falei [...] do estilo homérico como sendo de “primeiro plano”, porque, apesar
dos muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada
instante, como presente único e puro, sem perspectiva. A observação do texto
eloísta mostra-nos que a expressão pode ser empregada mais ampla e
profundamente. Evidencia-se que até a personagem individual pode ser
apresentada como carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Bíblia, [...]
só “algo” dele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as
profundidades.
5.2
– Mas os próprios seres humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos
planos do que os homéricos; eles têm mais profundidade quanto ao tempo, ao
destino e à consciência. [...] seus pensamentos e sentimentos têm mais camadas
e são mais intrincados. O modo de agir de Abraão explica-se não só a partir
daquilo que lhe acontece momentaneamente ou do seu caráter (como o de Aquiles
por sua ousadia e orgulho, o de Ulisses por sua astúcia e prudente visão), mas
a partir da sua história anterior. Ele se lembra, tem permanente consciência do
que Deus lhe prometera e do que já cumprira [...] é impossível para as figuras
homéricas, cujo destino está univocamente determinado, e que acordam todo dia
como se fosse o primeiro, cair em situações internas tão problemáticas. As suas
emoções são violentas, convenhamos, mas são também simples e irrompem de
imediato. (p. 09)
6
– Os poemas homéricos, cuja cultura sensorial, linguística e, sobretudo,
sintática, parece ser tanto mais elaborada, são, contudo, na sua imagem do
homem, relativamente simples; e também o são, em geral, na sua relação com a
realidade da vida que descrevem. A alegria pela existência sensível é tudo para
eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos alegria. (p. 10)
6.1
– Neste mundo “real”, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por
encanto, não há tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas
homéricos nada ocultam, neles não há nenhum ensinamento e nenhum segundo
oculto. É possível analisar Homero, como o tentamos aqui, mas não é possível
interpretá-lo. (p. 10)
7
– A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de
Ulisses, Penélope e Euricleia; ambas são lendárias. Só que o narrador bíblico,
o Eloísta, tinha de acreditar na verdade objetiva da história da oferenda de
Abraão. [...] Tinha de acreditar nela apaixonadamente – ou então, deveria ser,
como alguns exegetas iluministas admitiram ou, talvez, ainda admitem, um
mentiroso consciente, não um mentiroso inofensivo como Homero, que mentia para
agradar, mas um mentiroso político consciente das suas metas, que mentia no
interesse de uma pretensão à autoridade absoluta.
7.1
– Esta visão iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas mesmo se a
levarmos em consideração, a relação entre narrador bíblico e a verdade do seu
relato permanece muito mais apaixonada, muito mais univocamente definida, do
que a de Homero. (p. 11)
7.2
– Tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na
verdade da tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu interesse na
verossimilhança – seja como for, a sua fantasia inventiva ou descritiva estava
estreitamente delimitada. Sua atividade devia limitar-se a redigir de maneira
efetiva a tradição devota. [...] Ai de quem não acreditasse nela! (p. 11)
7.3
– A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero,
mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo dos relatos
das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade
historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao
domínio exclusivo.
7.4
– Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de
Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos
dominar, e se nos negamos a isto, então somos rebeldes. (p. 12)
7.5
– Não se queira objetar que isto é ir demasiado longe, que não é o relato, mas
a doutrina religiosa que apresenta estas pretensões, pois os relatos justamente
não são, como os de Homero, mera “realidade” narrada. Neles encarnam-se
doutrina e promessa indissoluvelmente fundidas; precisamente por isso têm um
caráter recôndito e obscuro, contêm um segundo sentido, oculto. (p. 12)
8
– Os poemas homéricos fornecem um complexo de acontecimentos preciso, espacial
e temporalmente delimitado; independente dele, concebem-se tranquila e
facilmente outros complexos anteriores, simultâneos e posteriores. O Velho
Testamento, porém, fornece história universal; começa com o princípio dos
tempos, com a criação do mundo, e quer acabar com o fim dos tempos, com o
cumprimento da promessa, com a qual o mundo deverá encontrar o seu fim. (p. 13)
9
– O Velho Testamento é incomparavelmente menos unitário na sua composição do
que os poemas homéricos, é mais evidentemente feito de retalhos – mas cada um
deles pertence a um contexto histórico-universal e interpretativo da história
universal. (p. 13 – 14)
10
– Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os
Profetas, encarna-se um momento da mencionada ligação vertical. Deus escolheu e
moldou estas personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua
vontade – mas a eleição e a modelagem não coincidem; esta última realiza-se
paulatinamente, de maneira histórica, durante a vida terrena dos escolhidos.
10.1
– Na história do sacrifício de Abraão vimos como isto ocorre, que terríveis
provas envolve uma tal modelagem. Daí decorre o fato de as grandes figuras do
Velho Testamento serem mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua
própria história vital e mais cunhadas na sua individualidade do que os heróis
homéricos. (p. 14)
10.2
– Aquiles e Ulisses são descritos magnificamente, por meio de muitas e bem
formadas palavras, carregam uma série de epítetos, suas emoções manifestam-se
sem reservas nos seus discursos e gestos – mas eles não têm desenvolvimento
algum e a história das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os heróis
homéricos estão tão pouco apresentados no seu desenvolvimento presente e
passado que, na sua maioria, [...] aparecem com uma ideia pré-fixada. (p. 14)
10.3
– [...] Penélope pouco mudou nesses vinte anos; no caso do próprio Ulisses,
[...] Ulisses é, quando regressa, exatamente o mesmo que abandonara Ítaca duas
décadas atrás. (p. 14)
10.4
– [Aos heróis homéricos...] As estes, o tempo só pode afetar exteriormente, e
mesmo isto é evidenciado o menos possível; em contraste, as figuras do Velho
Testamento estão constantemente sob a férula de Deus, que não só as criou e
escolheu, mas continua a modelá-las, dobrá-las e amassá-las, extraindo delas,
sem destruir a sua essência, formas que a sua juventude dificilmente deixava
prever.
10.5
– Humilhação e exaltação são muito mais profundas ou elevadas do que em Homero,
e, fundamentalmente, andam sempre juntas. O pobre mendigo Ulisses não é senão
um disfarce, mas Adão é real e totalmente expulso, Jacó é realmente um fugitivo
e José é realmente lançado num poço e, mais tarde, realmente vendido como
escravo. Mas a sua grandeza, que se eleva da própria humilhação, é próxima do
sobre-humano e é, também, um reflexo da grandeza divina. (p. 14)
11
– Homero permanece, com todo o seu assunto, no lendário, enquanto que o assunto
do Velho Testamento, à medida que o relato avança, aproxima-se cada vez mais do
histórico; na narração de Davi já predomina o relato histórico. Ali também há
ainda muito de lendário, como, por exemplo, os relatos de Davi e Golias; só que
muito, a bem dizer o essencial, consiste em coisas que os narradores conhecem
por experiência própria ou através de testemunhos imediatos. (p. 15)
11.1
– [...] é fácil, em geral, separar a lenda da história. A sua estrutura é
diferente. Mesmo quando a lenda não se denuncia imediatamente pela presença de
elementos maravilhosos, pela repetição de motivos conhecidos, pelo desleixo na
localização espacial e temporal, ou, por outras coisas semelhantes, pode ser
reconhecida rapidamente, o mais das vezes, por sua estrutura. Desenvolve-se de
maneira excessivamente linear.
11.2
– Tudo o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante, secundário,
que se insinua nos acontecimentos e motivos principais, todo o indeciso,
quebrado e vacilante, tudo o que confunde o claro curso da ação e a simples
direção das personagens, tudo isso é apagado. A história que presenciamos, ou
que conhecemos através de testemunhos de contemporâneos, transcorre de maneira
muito menos uniforme, mais cheia de contradições e confusão; só quando, numa
zona determinada, ela já produziu resultados, podemos com sua ajuda, ordená-los
de algum modo; e quantas vezes a ordem que assim achamos ter obtido, torna-se
novamente duvidosa, quantas vezes nos perguntamos se aqueles resultados não nos
levaram a uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido! (p.
16)
12
– A lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-o da sua
restante conexão com o mundo, de modo que este não pode intervir de maneira
perturbadora; ela só conhece homens univocamente fixados, determinados por
poucos e simples motivos cuja integridade de sentimentos e ações não pode ser
prejudicada. (p. 16)
12.1
– Escrever história é tão difícil que a maioria dos historiadores vê-se
obrigada a fazer concessões à técnica do lendário. (p. 17)
13
– [...] a passagem do lendário para o relato histórico [...] falta totalmente
nas poesias homéricas. (p. 17)
13.1
– [...] não deixa de ser natural que, mesmo nas partes lendárias do Velho
Testamento, seja frequente a aparição de estruturas históricas; naturalmente
não no sentido de que a tradição seja examinada quanto à sua credibilidade de
maneira científico-crítica; mas meramente de tal forma que não predomina no
mundo lendário do Velho Testamento a tendência para a harmonização aplainante
do acontecido, para a simplificação dos motivos e para fixação estática dos
caracteres, evitando conflitos, vacilações e desenvolvimento, como é próprio da
estrutura lendária.
13.2
– Abraão, Jacó ou Moisés, têm um efeito mais concreto próximo e histórico do
que as figuras do mundo homérico, não por estarem melhor descritos
plasticamente – pelo contrário – mas porque a variedade confusa, contraditória,
rica em inibições dos acontecimentos internos e externos que a história
autêntica mostra não está desbotada na sua representação, mas está ainda
nitidamente conservada. (p. 17)
13.3
– Aqui interessa-nos sobretudo como se dá, nos relatos davídicos, a transição
imperceptível só reconhecível pela crítica científica posterior, do lendário
para o histórico; e, como, já no lendário, se apreende apaixonadamente o
problema da ordem e da interpretação do acontecer humano, um problema que, mais
tarde, explode os limites da Historiografia, sufocando-a por inteiro na
profecia. Assim, o Velho Testamento, enquanto se ocupa do acontecer humano,
domina todos os três âmbitos: lenda, relato histórico e teologia histórica
exegética. (p. 18)
14
– Com isto [...] relaciona-se também o fato de o texto grego parecer também
mais limitado e mais estático com referência ao círculo das personagens
atuantes e da sua atividade política. (p. 18)
14.1
– Com isto chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só se
desenvolve na classe senhorial – tudo o que porventura viva além dela só
participa de modo serviçal. A classe senhorial é ainda patriarcal, tão
familiarizada com as atividades quotidianas da vida econômica, que às vezes se
chega a esquecer seu caráter de classe. [...] Como estrutura social, este mundo
é totalmente imóvel; as lutas só ocorrem entre diferentes grupos das classes
senhoriais; de baixo, nada surge.
14.2
– Nos relatos patrísticos do Velho Testamento predomina, também, a constituição
patriarcal, mas como se trata de chefes de família isolados, nômades ou
seminômades, o quadro social parece menos estável, não se sente a formação em
classes. (p. 18)
15
– A historicidade e mobilidade social mais profundas dos textos do Velho
Testamento relacionam-se, finalmente, com mais uma última diferença
significativa: delas surge um conceito de estilo elevado e de sublimidade
diferente do de Homero. Este certamente não receia inserir o quotidiano e
realista no sublime e trágico; tal receio seria estranho a seu estilo e
inconciliável com ele.
15.1
– Vê-se no nosso episódio da cicatriz, como a cena do lava-pés, pintada
aprazivelmente, é entretecida na grande, significativa e sublime cena da volta
ao lar.
15.2
– Isto está longe, ainda, daquela regra da separação dos estilos que mais tarde
se imporia quase por completo, e que estabelecia que a descrição realista do
quotidiano era inconciliável com o sublime, e só teria lugar no cômico ou, em
todo caso, cuidadosamente estilizado, no idílico. E contudo, Homero está mais
perto dela do que o Velho Testamento. (p. 19)
15.3
– [...] os grandes e sublimes acontecimentos ocorrem nos poemas homéricos muito
mais exclusiva e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senhorial;
estes são muito mais intatos na sua heroica sublimidade do que as figuras do
Velho Testamento, que podem cair muito mais profundamente na sua dignidade
[...]; e, finalmente, o realismo caseiro, a representação da vida quotidiana,
permanecem sempre, em Homero, no idílico-pacífico – enquanto que, já desde o
princípio, nos relatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e problemático
se formam justamente no caseiro e quotidiano: acontecimentos como os que ocorre
entre Caim e Abel [...] não são concebíveis no estilo homérico. (p. 19)
15.4
– Nos relatos do Velho Testamento [...] surgem complicações inconcebíveis para
um herói homérico. Para estes, é necessário um motivo palpável, claramente
exprimível, para que surjam conflito e inimizade, que resultam em luta aberta;
enquanto que naqueles, o lento e constante fogo dos ciúmes e a ligação do
doméstico com o espiritual [...] conduzem a uma impregnação da vida quotidiana
com substância conflitiva e, frequentemente, ao seu envenenamento.
15.5
– A sublime intervenção divina de Deus age tão profundamente sobre o quotidiano
que os dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas efetivamente
inseparados mas, fundamentalmente, inseparáveis. (p. 19)
16
– Comparamos os dois textos e, ao mesmo tempo, os dois estilos que encarnam,
para obter um ponto de partida para os nossos ensaios sobre a representação
literária da realidade na cultura europeia. Os dois estilos representam, na sua
oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação
uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro
plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao
humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e
escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito,
multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação do devir
histórico e aprofundamento do problemático. (p. 20)
17
– Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e o do Velho Testamento,
como pontos de partida, admitimo-los como acabados, tal como se nos oferecem
nos textos; [...] foi em seu pleno desenvolvimento alcançado em seus primórdios
que esses estilos exerceram sua influência constitutiva sobre a representação
europeia da realidade. (p. 20)
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