CANDIDO,
Antonio. Literatura e sociedade:
estudos de teoria e história literária. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2010.
I
1
– [...] estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e o ambiente, após
termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de
outra ordem. (p. 13)
2
– De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra
dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto
constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta,
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua
importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma
peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão.
NOTA:
Visões opostas da crítica apontavam para dois ângulos de visão:
1)
a obra deveria exprimir certo aspecto da
realidade, e isto constituía o que ela tinha de essencial;
2)
a matéria de uma obra seria secundária,
e a importância dela derivaria dos aspectos formais com que foi engendrada e
não de condicionamentos sociais .
3
– Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto ao outro, norteado pela convicção de
que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo. (p. 14)
3.1
– Sabemos, ainda, que o externo (no
caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno. (p.
14)
NOTA:
A sociologia da obra não propõe a questão do valor da obra, e pode
interessar-se por tudo que é condicionamento: 1) a voga de um livro, 2) a
preferência por um gênero, 3) o gosto das classes, 4) a origem social dos
autores, 5) a relação entre as obras e as ideias, 6) a influência da
organização social, econômica e política.
4
– [...] quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar
a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na
organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar.
4.1
– Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas
matéria (ambiente, costumes, traços grupais, ideias), que serve de veículo para
conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a
realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na
constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos
de Lukács, se é determinante do valor estético).
NOTA:
O fator social é apenas: 1) matéria ou veículo para a realização do valor
estético de uma obra, ou 2) elemento que atua na constituição do que há de
essencial para realização do valor estético de uma obra?
5
– [...] estudiosos contemporâneos [...] ao se interessarem pelos fatores
sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como
enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e isto permite
alinhá-los entre os fatores estéticos. (p. 15)
5.1
– A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a
procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra,
unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se pode dizer [...] que
tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.
NOTA:
Candido
realiza uma breve análise de Senhora,
de José de Alencar, em suas dimensões sociais (referências a lugares, modas,
usos, manifestações de atitudes de grupo ou classe, expressão de um conceito de
vida entre burguês e patriarcal).
Candido
diz, no entanto, que apontar estes pontos não é o bastante para definir o
caráter sociológico de um estudo. Ao discorrer sobre o casamento ocorrido por
meio da compra de um marido, a ideia de compra tem um “sentido social
simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes
vigentes na época, como casamento por dinheiro”. Mas, para Candido, a análise em
suas camadas mais fundas suscita a constatação deste traço social (ato de
compra e venda no matrimônio) “funcionando para formar a estrutura do livro”. Candido
conclui, a respeito da estrutura dessa obra, que no “conjunto, como no pormenor
de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria”. (p. 15 –
16)
A
compra e venda em Senhora, afirmada
abstratamente pelo romancista, não foi, segundo Candido, “afirmada
abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida
na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a
matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade”. (p. 16)
6
– Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o
elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na
matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como
fator da própria construção artística, estudando no nível explicativo e não
ilustrativo. (p. 17)
7
– Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história
sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou
a dimensão social como fator de arte.
7.1
– Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se
torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.
7.2
– O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro,
ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros.
8
– Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de
conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico
ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da
estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica superou foi a
orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico,
a tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais. (p. 17)
NOTA:
Candido aponta dois perigos tanto na sociologia quanto na crítica: 1) PERIGO
UM: a tendência pela análise que faça deixar de existir a verdade básica que
consiste no fato de que a precedência lógica, e empírica, pertence ao todo,
apesar de ser apreendido por uma referência constante à função das partes; 2)
PERIGO DOIS: a preocupação do estudioso com a ideia de que a integridade e a
autonomia da obra exacerbe, além dos limites cabíveis, o senso da função
interna dos elementos, em detrimento dos aspectos históricos.
II
1
– Para fixar ideias e delimitar terrenos, pode-se tentar uma enumeração das
modalidades mais comuns de estudos de tipo sociológico em literatura, feitos
conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a sociologia, a
história e a crítica de conteúdo. (p. 18)
PRIMEIRO
– formado por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura,
um período, um gênero, com as condições sociais. É o método tradicional,
esboçado no século XVIII, que encontrou porventura em Taine o maior
representante e foi tentado entre nós por Sílvio Romero. VIRTUDE – discernir
uma ordem geral, um arranjo, que facilita o entendimento das sequências
históricas e traça o panorama das épocas. DEFEITO – dificuldade de mostrar
efetivamente [...] a ligação entre condições sociais e as obras.
SEGUNDO
– formado pelos estudos que procuram verificar a medida em que as obras
espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos.
Consiste em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem
no livro. Tende mais para a sociologia elementar do que à crítica literária.
TERCEIRO
– apenas sociologia, e muito mais coerente, consiste no estudo da relação entre
a obra e o público – isto é, o seu destino, a sua aceitação, a ação recíproca
de ambos.
QUARTO
– estuda a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua
posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade.
QUINTO
– desdobramento do anterior, investiga a função política das obras e dos
autores, em geral com o intuito ideológico marcado (nos nossos dias tem tido a
preferência dos marxistas).
SEXTO
– voltado para a investigação hipotética das origens, seja da literatura em
geral, seja de determinados gêneros.
2
– Todas estas modalidades e suas numerosas variantes são legítimas e, quando
bem conduzidas, fecundas, na medida em que as tomarmos, não como crítica, mas
com teoria e história sociológica da literatura, ou como sociologia da
literatura, embora algumas delas satisfaçam também as exigências próprias do
crítico.
2.1
– Em todas nota-se o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais
que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua
elaboração, ou para a sua função na sociedade. (p. 21)
3
– Ora, tais aspectos são capitais para o historiador e o sociólogo, mas podem
ser secundários e mesmo inúteis para o crítico, interessado em interpretar, se
não forem considerados segundo a função que exercem na economia interna da
obra, para a qual podem ter contribuído de maneira tão remota que se tornam
dispensáveis para esclarecer os casos concretos.
4
– [...] a literatura como fenômeno de civilização, depende, para se constituir
e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais. (p. 21)
NOTA:
O
primeiro passo [...] para averiguar, do ângulo de visão da crítica, uma obra, é
ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico
estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la
rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. Em seguida, Candido
cita o caso do veneno no romance O homem,
de Aluísio de Azevedo, e alude à liberdade que o escritor tem em relação à
realidade.
5
– Esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da
fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para
torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se
constitui no leitor graças a esta traição metódica.
5.1
– Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la
é correr o risco de uma perigosa simplificação causal.
6
– [...] se tomarmos o cuidado de considerar os fatores sociais [...] no seu
papel de formadores da estrutura, veremos que tanto eles quanto os psíquicos
são decisivos para a análise literária [...]. (p. 22)
III
1
– Em muitos críticos de orientação sociológica já se nota o esforço de mostrar
essa interiorização dos dados de natureza social, tornados núcleos de
elaboração estética. (p. 23)
2
– Num plano [...] mais sutil, mencionamos a tentativa de Erich Auerbach,
fundindo os processos estilísticos com os métodos histórico-sociológicos para
investigar os fatos da literatura. (p. 24)
3
– [...] os elementos de ordem social serão filtrados através de uma concepção
estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a
autonomia da obra.
4
– Há certo exageros compensatórios, que vão ao extremo oposto e afirmam que a
obra, no que tem de significativo, é um todo que se explica a si mesmo, como um
universo fechado. Este estruturalismo radical, cabível como um dos momentos da
análise, é inviável no trabalho prático de interpretar, porque despreza, entre
outras coisas, a dimensão histórica, sem a qual o pensamento contemporâneo não
enfrenta de maneira adequada os problemas que o preocupam.
5
– [...] é esta concepção da obra como organismo que permite, no seu estudo,
levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e motivam; pois
quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator se torna
componente essencial do caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser
contestada nem glorificada a priori.
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