sexta-feira, 13 de novembro de 2015

FICHAMENTO DE TRANSCRIÇÃO: "CRÍTICA E SOCIOLOGIA (TENTATIVA DE ESCLARECIMENTO)", DE ANTONIO CANDIDO


CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

I

1 – [...] estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e o ambiente, após termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de outra ordem. (p. 13)
2 – De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão.

NOTA: Visões opostas da crítica apontavam para dois ângulos de visão:
1) a obra deveria exprimir certo aspecto da realidade, e isto constituía o que ela tinha de essencial;
2) a matéria de uma obra seria secundária, e a importância dela derivaria dos aspectos formais com que foi engendrada e não de condicionamentos sociais .

3 – Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto ao outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. (p. 14)
3.1 – Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (p. 14)

NOTA: A sociologia da obra não propõe a questão do valor da obra, e pode interessar-se por tudo que é condicionamento: 1) a voga de um livro, 2) a preferência por um gênero, 3) o gosto das classes, 4) a origem social dos autores, 5) a relação entre as obras e as ideias, 6) a influência da organização social, econômica e política.

4 – [...] quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar.
4.1 – Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, ideias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético).

NOTA: O fator social é apenas: 1) matéria ou veículo para a realização do valor estético de uma obra, ou 2) elemento que atua na constituição do que há de essencial para realização do valor estético de uma obra?

5 – [...] estudiosos contemporâneos [...] ao se interessarem pelos fatores sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e isto permite alinhá-los entre os fatores estéticos. (p. 15)
5.1 – A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado da obra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se pode dizer [...] que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra.

NOTA:

Candido realiza uma breve análise de Senhora, de José de Alencar, em suas dimensões sociais (referências a lugares, modas, usos, manifestações de atitudes de grupo ou classe, expressão de um conceito de vida entre burguês e patriarcal).

Candido diz, no entanto, que apontar estes pontos não é o bastante para definir o caráter sociológico de um estudo. Ao discorrer sobre o casamento ocorrido por meio da compra de um marido, a ideia de compra tem um “sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como casamento por dinheiro”. Mas, para Candido, a análise em suas camadas mais fundas suscita a constatação deste traço social (ato de compra e venda no matrimônio) “funcionando para formar a estrutura do livro”. Candido conclui, a respeito da estrutura dessa obra, que no “conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria”. (p. 15 – 16)

A compra e venda em Senhora, afirmada abstratamente pelo romancista, não foi, segundo Candido, “afirmada abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade”. (p. 16)

6 – Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudando no nível explicativo e não ilustrativo. (p. 17)

7 – Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte.
7.1 – Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.
7.2 – O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros.
8 – Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica superou foi a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais. (p. 17)

NOTA: Candido aponta dois perigos tanto na sociologia quanto na crítica: 1) PERIGO UM: a tendência pela análise que faça deixar de existir a verdade básica que consiste no fato de que a precedência lógica, e empírica, pertence ao todo, apesar de ser apreendido por uma referência constante à função das partes; 2) PERIGO DOIS: a preocupação do estudioso com a ideia de que a integridade e a autonomia da obra exacerbe, além dos limites cabíveis, o senso da função interna dos elementos, em detrimento dos aspectos históricos.

II

1 – Para fixar ideias e delimitar terrenos, pode-se tentar uma enumeração das modalidades mais comuns de estudos de tipo sociológico em literatura, feitos conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a sociologia, a história e a crítica de conteúdo. (p. 18)

PRIMEIRO – formado por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as condições sociais. É o método tradicional, esboçado no século XVIII, que encontrou porventura em Taine o maior representante e foi tentado entre nós por Sílvio Romero. VIRTUDE – discernir uma ordem geral, um arranjo, que facilita o entendimento das sequências históricas e traça o panorama das épocas. DEFEITO – dificuldade de mostrar efetivamente [...] a ligação entre condições sociais e as obras.

SEGUNDO – formado pelos estudos que procuram verificar a medida em que as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos. Consiste em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro. Tende mais para a sociologia elementar do que à crítica literária.

TERCEIRO – apenas sociologia, e muito mais coerente, consiste no estudo da relação entre a obra e o público – isto é, o seu destino, a sua aceitação, a ação recíproca de ambos. 

QUARTO – estuda a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade.

QUINTO – desdobramento do anterior, investiga a função política das obras e dos autores, em geral com o intuito ideológico marcado (nos nossos dias tem tido a preferência dos marxistas).

SEXTO – voltado para a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros.

2 – Todas estas modalidades e suas numerosas variantes são legítimas e, quando bem conduzidas, fecundas, na medida em que as tomarmos, não como crítica, mas com teoria e história sociológica da literatura, ou como sociologia da literatura, embora algumas delas satisfaçam também as exigências próprias do crítico.
2.1 – Em todas nota-se o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração, ou para a sua função na sociedade. (p. 21)

3 – Ora, tais aspectos são capitais para o historiador e o sociólogo, mas podem ser secundários e mesmo inúteis para o crítico, interessado em interpretar, se não forem considerados segundo a função que exercem na economia interna da obra, para a qual podem ter contribuído de maneira tão remota que se tornam dispensáveis para esclarecer os casos concretos.

4 – [...] a literatura como fenômeno de civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores sociais. (p. 21)

NOTA:
O primeiro passo [...] para averiguar, do ângulo de visão da crítica, uma obra, é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. Em seguida, Candido cita o caso do veneno no romance O homem, de Aluísio de Azevedo, e alude à liberdade que o escritor tem em relação à realidade.

5 – Esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica.
5.1 – Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal.

6 – [...] se tomarmos o cuidado de considerar os fatores sociais [...] no seu papel de formadores da estrutura, veremos que tanto eles quanto os psíquicos são decisivos para a análise literária [...]. (p. 22)

III

1 – Em muitos críticos de orientação sociológica já se nota o esforço de mostrar essa interiorização dos dados de natureza social, tornados núcleos de elaboração estética. (p. 23)

2 – Num plano [...] mais sutil, mencionamos a tentativa de Erich Auerbach, fundindo os processos estilísticos com os métodos histórico-sociológicos para investigar os fatos da literatura. (p. 24)

3 – [...] os elementos de ordem social serão filtrados através de uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a autonomia da obra.

4 – Há certo exageros compensatórios, que vão ao extremo oposto e afirmam que a obra, no que tem de significativo, é um todo que se explica a si mesmo, como um universo fechado. Este estruturalismo radical, cabível como um dos momentos da análise, é inviável no trabalho prático de interpretar, porque despreza, entre outras coisas, a dimensão histórica, sem a qual o pensamento contemporâneo não enfrenta de maneira adequada os problemas que o preocupam.

5 – [...] é esta concepção da obra como organismo que permite, no seu estudo, levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e motivam; pois quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser contestada nem glorificada a priori.


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