EAGLETON, Terry. O que
é literatura?. Teoria da literatura: uma
introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
1 – Muitas têm sido as
tentativas de se definir literatura. É possível, por exemplo, defini-la como a
escrita “imaginativa”, no sentido de ficção – escrita esta que não é
literalmente verídica. Mas se refletirmos, ainda que brevemente, sobre aquilo
que comumente se considera literatura, veremos que tal definição não procede.
(p. 01)
2 – A distinção entre
“fato” e “ficção”, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões
para isto é a de que a própria distinção é muitas vezes questionável. (p. 01)
2.1 – O fato de a
literatura ser a escrita “criativa” ou “imaginativa” implicaria serem a
história, a filosofia e as ciências naturais não criativas e destituídas de
imaginação? (p. 02)
3 – Talvez a literatura
seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque
emprega a linguagem de forma peculiar. (p. 02)
NOTA: Esta seria a
ideia de Jakobson, para quem a literatura é a escrita que representa “a
violência organizada contra a fala comum”. A literatura transforma e
intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana.
Trata-se de uma linguagem que chama atenção sobre si mesma e exibe sua
existência material.
NOTA: Eagleton discorre
sobre os formalistas russos, apresentando-os no contexto em que eles apareceram
– década de 1920. Segundo os formalistas, à crítica caberia preocupar-se com a
maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática, pois a
literatura deveria ser considerada como uma “organização particular da
linguagem”. A literatura tinha suas leis específicas, suas estruturas e
mecanismos, que deviam ser estudados em si, e não reduzidos a alguma outra
coisa. A literatura, para eles, era um “fato material” e não um veículo de
ideias e de reflexões sobre a realidade social.
4 – Em sua essência, o
formalismo foi a aplicação da linguística ao estudo da literatura; e como a
linguística em questão era do tipo formal, preocupada com as estruturas da
linguagem e não com o que ela de fato poderia dizer, os formalistas passaram ao
largo da análise do “conteúdo” literário (instância em que sempre existe a
tendência de se recorrer à psicologia ou à sociologia) e dedicaram-se ao estudo
da forma literária. (p. 04)
4.1 – Longe de
considerarem a forma como a expressão do conteúdo, eles inverteram essa relação:
o conteúdo era simplesmente a “motivação” da forma, uma ocasião ou pretexto
para um tipo específico de exercício formal. (p. 04)
4.2 – E embora eles não
negassem que a arte tivesse uma relação com a realidade social – de fato alguns
deles estavam estreitamente associados aos Bolcheviques – os formalistas
afirmavam, provocadoramente, que essa relação fugia ao âmbito do trabalho
crítico. (p. 04)
5 – Os formalistas
começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos
arbitrária de “artifícios”, e só mais tarde passaram a ver esses artifícios
como elementos relacionados entre si: “funções” dentro de um sistema textual
global.
5.1 – Os “artifícios”
incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas narrativas;
[...] e o que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de
“estranhamento” ou de “desfamiliarização”. A especificidade da linguagem
literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discursos, era o fato de
ela “deformar” a linguagem comum de várias maneiras. (p. 05)
5.2 – Na rotina da fala
cotidiana, nossas percepções e reações à realidade se tornam embotadas,
apagadas, ou como os formalistas diriam, “automatizadas”. A literatura,
impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações habituais,
tornando os objetos mais “perceptíveis”. (p. 05)
6 – Os formalistas,
portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da
norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma
“especial” de linguagem, em contraste com a linguagem “comum”, que usamos
habitualmente. (p. 06)
6.1 – A ideia de que
existe uma única linguagem “normal”, uma espécie de moeda corrente usada
igualmente por todos os membros da sociedade, é uma ilusão. Qualquer linguagem
em uso consiste de uma variedade muito complexa de discursos, diferenciados
segundo a classe, região, gênero, situação, etc., os quais de forma alguma
podem ser simplesmente unificados em uma única comunidade linguística
homogênea. (p. 06)
7 – [...] os
formalistas [...] reconheciam que as normas e os desvios se modificavam de um
contexto social ou histórico para outro – que “poesia”, nesse sentido, depende
de nossa localização num dado momento. (p. 07)
7.1 – [...] para os
formalistas, o caráter “literário” advinha das relações diferenciais entre um
tipo de discurso e outro, não sendo, portanto, uma característica perene. Eles
não queriam definir a “literatura”, mas a “literaturidade” – os usos especiais
da linguagem –, que não apenas podiam ser encontrados em textos “literários”,
mas também em muitas outras circunstâncias exteriores a eles. (p. 07)
8 – [...] os
formalistas achavam que a essência do literário era o “tornar estranho”. Eles
apenas relativizavam esse uso da linguagem, vendo-o como uma questão de
contraste entre um tipo de discurso e outro. (p. 08)
8.1 – Pensar na
literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a
literatura como poesia. De fato,
quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as
técnicas que haviam utilizado para a epopeia. (p. 08)
9 – Um outro problema
concernente ao argumento da “estranheza” é o de que todos os tipos de escrita
podem, e trabalhado com a devida engenhosidade, ser considerados “estranhos”.
(p. 09)
10 – Poderíamos dizer,
portanto, que a literatura é um discurso “não-pragmático”; ao contrário dos
manuais de biologia e recados deixados para o leiteiro, ela não tem nenhuma
finalidade prática imediata, referindo-se apenas a um estado geral de coisas.
10.1 – Esse enfoque na
maneira de falar, e não na realidade daquilo de que se fala, é por vezes
considerado como uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de
linguagem auto-referencial, uma
linguagem que fala de si mesma.
11 – Mas também essa
definição da literatura encerra problemas. [...] Em grande parte daquilo que é
classificado como literatura, o valor verídico e a relevância prática do que é
dito é considerado importante para o
efeito geral. (p. 11)
11.1 – Contudo, mesmo
em se considerando que o discurso “não-pragmático” é parte do que se entende
por “literatura”, segue-se dessa “definição” o fato de a literatura não poder
ser, de fato, definida objetivamente.
11.2 – A definição de
literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolver ler, e não da natureza daquilo que é
lido. Há certos tipos de escritos – poemas, peças de teatro, romances – que, de
forma claramente evidente, pretendem ser “não-pragmáticos” nesse sentido, mas
isso não nos garante que serão realmente lidos dessa maneira. (p. 11)
11.3 – Alguns textos
nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal
condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais
importante do que seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto,
mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de
literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o
seu autor tenha pensado. (p. 12)
12 – [...] podemos
pensar na literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de
qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até Virginia Woolf, do que como
as várias maneiras pelas quais as pessoas se
relacionam com a escrita.
12. 1 – Não existe uma
“essência” da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido
“não-pragmaticamente”, se é isso o que significa ler um texto como literatura,
assim como qualquer escrito pode ser lido “poeticamente”. (p. 12)
12.2 – “Literatura”
talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma
razão, seja altamente valorizada. (p. 13)
12.3 – Em muitas
sociedades, a literatura teve funções absolutamente práticas, como função
religiosa; a nítida distinção entre “prático” e “não-prático” talvez só seja
possível numa sociedade como a nossa, na qual a literatura deixou de ter grande
função prática. Poderemos estar oferecendo como definição geral um sentido do
“literário” que é, na verdade, historicamente específico. (p. 12)
13 – [...] a sugestão
de que “literatura” é um tipo de escrita altamente valorizada é esclarecedora.
Contudo, ela tem uma consequência bastante devastadora. Significa que podemos
abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria “literatura” é
“objetiva”, no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser
literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e
inquestionavelmente [...] pode deixar de sê-lo. (p. 14)
14 – A literatura, no
sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por
certas propriedades comuns, não existe. Quando, deste ponto em diante, eu
utilizar as palavras “literário” e “literatura” neste livro, eu o farei com a
reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de
outras no momento. (p. 15)
14.1 – A dedução, feita
a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de
que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem
notoriamente variáveis os juízos de valor.
15 – A dedução, feita a
partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que
ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente
variáveis os juízos de valor.
15.1 – Assim como uma
obra pode ser considerada como filosofia num século, e como literatura no século
seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito de público sobre o tipo
de escrita considerado como digno de valor. Até as razões que determinam a
formação do critério de valioso podem se modificar. (p. 15)
16 – Não existe uma
obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se
tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. (p. 17)
16.1 – “Valor” é um
termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por
certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e
à luz de determinados objetivos. (p. 17)
17 – O fato de sempre
interpretarmos as obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios
interesses – e o fato de, na verdade, sermos incapazes de, num certo sentido,
interpretá-las de outra maneira – poderia ser uma das razões pelas quais certas
obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos. (p. 17)
17.1 – Todas as obras
literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente,
pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não
seja também uma “reescritura”. (p. 17)
18 – [...] as
afirmações sobre os fatos são afirmações
que pressupõem alguns juízos questionáveis.
19 – Todas as nossas
afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível,
de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer
uns aos outros.
20 – Podemos discordar
disso ou daquilo, mas tal discordância só é possível porque partilhamos de
certas maneiras “profundas” de ver e valorizar, que estão ligadas à nossa vida
social, e que não poderiam ser modificadas sem transformarem essa vida. (p. 20)
21 – A estrutura de
valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações
fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Por “ideologia” quero
dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que
acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da
sociedade em que vivemos. (p. 20)
22 – Se não é possível
ver a literatura como uma categoria “objetiva”, descritiva, também não é
possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos
chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de
juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças.
(p. 22)
22.1 – Portanto, o que
descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira
que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente
variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as
ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto
particular mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e
mantêm o poder sobre outros. (p. 22)
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