Narrativa curta que apresenta seres inanimados (objetos, plantas...) como personagens centrais da narrativa. Em geral, busca ilustrar lições de sabedoria através da personificação desses seres. Segundo D'Onofrio¹ (2000, p.125), o apólogo é: "Historinha que se passa entre objetos inanimados, contendo uma moral implícita ou explícita". Quando se fala em apólogo, no Brasil, o texto que primeiro vem à tona é o "Um apólogo", de Machado de Assis. Lindo texto, mas que está mais que conhecido e reconhecido. Por isso decidi escrever o meu próprio apólogo. Aí está! Espero que leiam e gostem!
¹ D'ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 2000.
APÓLOGO
DA MESA
(ÉMERSON CARDOSO)
Era um dia de festa. As
pessoas corriam de um lado para o outro arrumando os últimos detalhes da grandiosa
recepção. Em todos os cômodos da mansão havia móveis que, sob vigilância da
anfitriã, eram limpos cuidadosamente. Cada móvel tinha sua importância. Todos
foram polidos, enfeitados, mudados de lugar.
Mas houve um problema
impossível de passar sem dar nas vistas. Enquanto todos os móveis riam no auge
da felicidade pela nova roupagem que apresentavam, a mesa, mais reflexiva que o
natural, no centro da sala, com olhares de estranhamento e aspecto descontente,
permanecia intocada.
Todos os móveis
receberam nova coloração, espargiam perfume, alguns receberam toalhas e
enfeites novos. Apenas ela, a mesa, permanecia com seu aspecto de sempre: a
mesma cor desbotada, desperfumada, sem conserto. O riso e a felicidade dos
outros passaram, aos poucos, a incomodá-la. Desse modo, no auge da sensação de
inferioridade, no auge da solidão, sentindo-se uma “qualquer”, começou a reclamar-se da vida triste e lamentável a
que aqueles seres a submetiam.
Quem aqueles móveis
felizes pensavam que eram? E onde estava a dona da casa que não
valorizava a sua presença inestimável? Como poderia ficar calada diante de
situação tão adversa a seu ego? Ela tinha direito de reclamar... Ela há anos
servia à família que ali residia... Era esse o pagamento recebido por tanto
anos de benevolência? Imundos todos! Mereciam alimentar-se no chão como
animais, e não em sua reconfortante planície. Queria que todos morressem, que
um incêndio destruísse a felicidade daqueles móveis insensatos, que uma
enchente destruísse os risos daqueles seres frívolos! O ódio invadiu-a e, se ela pudesse, faria de tudo para desfazer aquela
alegria insuportável e sem graça.
Foi neste instante que
gritou contra todos os móveis, e seus enfeites, as mais absurdas injúrias.
Expôs o defeitos, as fragilidades, os insucessos dos companheiros com a
intenção de fazê-los se sentirem por baixo, assim como ela se sentia. “Se eu
não mereço ser bem tratada, ninguém mais merece!”, pensou. Disse tudo o que
pensava e, sem se importar com a tristeza que poderia causar aos seus,
rebaixou-os com os piores xingamentos.
Não se deu por vencida
e passou a lamentar-se das vezes em que foi bondosa. Atirou sobre os que
estavam ao seu derredor o quanto lhes tinham ajudado. Queria fazê-los perceber, com palavras contundentes, o quanto era vítima de injustiça naquele momento. Ódio! Raiva! Rancor! Quanto teria de esperar para morrer e não ver
mais tanta maldade e ingratidão?
Depois que cansou de,
desequilibrada, criticar a todos, atirando sua raiva contra os mais próximos,
aconteceu algo que fez com que ela se calasse. De repente, com muita
delicadeza, alguém a limpou, a lustrou e colocou sobre ela uma toalha de rendas. Prepararam-lhe
o melhor enfeite. Fizeram dela o centro da festa e todos os convidados, ao
longo da recepção, transformaram-na num ponto de referência atrativíssimo – afinal
de contas sobre ela estavam as mais perfeitas guloseimas. A mesa, que antes
falava com leviandade, ódio, amargor, que havia magoado todos os demais
companheiros com seu azedume e despeito, agora estava calada, parecia
constrangida pelo mal-estar que havia proporcionado.
A festa, no entanto,
havia acabado para os demais móveis e enfeites da casa. E ela finalmente se deu
conta de que fora uma estúpida, invejosa, grosseira e, pedindo desculpas, baixou a vista. Era tarde.
Nunca mais conseguiu reconstruir as amizades que, com palavras ferinas e
desnecessárias, destruiu.
Um velho relógio, muito
sóbrio, a olhou pacientemente e disse: “A paciência é uma grande virtude, porém
é um dom tão raro! Estar com raiva é possível, mas ninguém tem o direito de
atirar sobre os outros as suas próprias frustrações.”
Texto escrito em: 06/01/10
PUBLICADO EM:
CARDOSO, Cícero Émerson do Nascimento. Apólogo da mesa. Revista de Literatura e Artes Boca Escancarada, n. 5, p. 21 - 22, mai. / ago. de 2014.
Adorei!
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