A
CONFLUÊNCIA DOS AFETOS: UMA LEITURA DE LETRAS DE CANÇÕES INTERPRETADAS POR LUIZ
GONZAGA
CÍCERO
ÉMERSON DO NASCIMENTO CARDOSO
Ao colocar em pauta a emblemática figura de Luiz Gonzaga, na tentativa de
discutir suas obras e sua representatividade de propagador dos valores culturais
do Nordeste brasileiro, alguém poderia nos advertir de que corremos o risco de realizar
discursos que podem girar em torno de obviedades encomiásticas que o mitificam,
não sem merecimento, sobretudo neste ano em que se comemora, do seu nascimento,
o centenário.
Como incorrer em obviedades, no entanto, em se tratando desse
significativo músico nordestino? Para o cenário artístico brasileiro ele foi,
sem dúvidas, um dos mais completos artistas. Sua arte foi absorvida pelo país e
rendeu-lhe reconhecimento tanto no Brasil quanto no exterior. De guardião da
“memória” do Nordeste brasileiro a pernambucano do século, reconhecido como o
“rei do baião” e mitificado como um dos maiores representantes da expansão da cultura
nordestina, Luiz Gonzaga deixou a cidade de Exu, interior do Pernambuco, na
década de 20, e firmou-se, com parcerias bem-sucedidas, no cenário da música
popular brasileira com um novo estilo musical.
Faremos, a partir daqui, uma breve discussão sobre valores de caráter
afetivo recorrentes nas canções interpretadas por Luiz Gonzaga. Consideraremos,
neste caso, não o termo “afeto” numa acepção mais ampla – que suscitaria uma abordagem
teórica subsidiada pelas nuances da Psicologia – mas, para nossa discussão,
consideraremos o termo “afeto” apresentando-o, de modo simplório, a partir dos
seguintes termos correlativos: “amor”, “amizade” e “solidariedade”.
Ao analisar a discografia de Luiz Gonzaga constatamos que ele privilegiou
temas recorrentes nas canções que interpretou ao longo de sua carreira
artística. O sertão nordestino, com sua paisagística ora enaltecida, ora
apresentada como espaço infértil em decorrência dos longos períodos de
estiagem, surge pincelado, sobretudo, pelas manifestações da cultura popular
com suas riquezas indevassáveis. As letras dessas canções interpretadas por
Luiz Gonzaga apresentam, ainda, a reprodução da linguagem do povo, bem como
suas crenças religiosas, tradições e ideologias.
Podemos supor que essa perspectiva presente na obra de Luiz Gonzaga de,
por meio da música, trazer à tona a realidade social, política e cultural do
Nordeste ocorreu numa linearidade que, poucas vezes, podemos encontrar na
realidade artística brasileira. Essa persistência em tratar temas pertinentes
ao Nordeste o tornou, definitivamente, a eminente voz que cantou, para o mundo,
a realidade de um povo cuja história, tradição e arte se articulavam em meio a
austeridade climática e a ausência, por vezes, de políticas públicas que
atendessem às necessidades de maior parte da população.
Podemos, portanto, a partir daqui realizar leituras de algumas canções
cujos temas foram importantes para a produção artística delineada por Luiz
Gonzaga durante os anos em que cantou e propalou sua terra e a vida de sua
gente.
O “amor”, que pode conduzir o indivíduo amante a diversos conflitos e
tumultos íntimos, ou a excedentes de felicidade quando é correspondido, surge
em inúmeras canções imortalizadas pela voz do “rei do baião”. Esse “amor”,
mesmo submetido à visão patriarcalista em que se fundou a estrutura familiar
nordestina, parece contrariar, em alguns casos, essa tradição que destaca a
condição máscula e viril do homem e torná-lo vulnerável e capaz de sofrer
profundamente pela mulher a quem devota seu amor. O amor vivido pelo homem
nessas canções nos faz recordar as canções trovadorescas conhecidas como “Cantigas
de Amor”, ou seja, nestas canções o homem assume uma posição de vassalo diante
da mulher que nele desperta o amor quase sempre impossível de se realizar.
Como podemos constatar, em várias interpretações Luiz Gonzaga considerava
como alvo do devotado “amor” do homem a mulher sertaneja, simples, uma
“Karolina com K” (Luiz Gonzaga) que não traz em si princípios moralistas
estipulados pela tradição. Mas podem ser, também, moças simples, mas que, por
algum motivo, seja a necessidade de retirada do amante em decorrência da seca,
seja o preterimento por parte destas, ou impedimentos por estas serem
resguardadas pelo nome da família, são capazes de causar transtornos a quem por
elas se apaixona. Como exemplo, temos: “Kalu” (Humberto Teixeira), “A letra I”
(Zé Dantas), “Cajueiro velho” (Cecéu), “Amor da minha vida” (Raul Sampaio e
Benil Santos) e “Linda brejeira” (Rui Moraes e Silva e Joaquim Lima).
Em “Karolina com K”, por exemplo, a voz que apresenta Karolina na letra
da canção a adjetiva, no início, como “Mulher
bagunceira da muléstia! / Mulher cangaceira” (BARBOSA, 2007, p. 246).[1] Essa
adjetivação está longe de ser pejorativa, mas jamais seria atribuída a uma
mulher cujo comportamento se submetesse às regras sociais. O amante tem, neste
caso, a reciprocidade do amor e termina por viver uma aventura ao lado da
mulher sensual, trigueira, debochada que se deixa conduzir pelo homem que a
corteja.
Em “Kalu”, o amante implora à moça dos verdes olhos que não o machuque
mais. Uma vez que se sugere que o relacionamento vivido entre eles se acabou,
ele pede que esta não o torture mais com seus olhos de escarnecimento: “Tire o verde desses óio de riba d’eu”
(p. 245). O homem se fragiliza ante a figura eminente da mulher que o pretere.
Como solução, a ele, que se apresenta como vítima, cabe a necessidade de
implorar à amada que esta não o maltrate mais do que já o maltratou.
Por sua vez, com uma construção metafórica que a torna uma das canções
mais líricas que Luiz Gonzaga cantou, “A letra I” apresenta um indivíduo que,
ao escrever uma carta, a envia para sua amada demonstrando toda a angústia e
desolação por estar distante dela. A carta enviada é uma tentativa de expressar,
enfaticamente, o quanto a saudade o tortura. A metáfora presente no trecho “Meus óio chorou tanta mágoa / Que hoje sem
água / Nem responde à dor” (p. 161) é um exemplo do intenso lirismo contido
nessa canção. Além desse trecho, o lirismo é reforçado pelas símiles: “[...] o amor / Fumega no meu coração / Tá e
quá fogueira / Das noites de São João” e “Tando longe dela / Só sei reclamar / Pois vivo como um passarinho /
Que longe do ninho / Só pensa em voltar” (p.161).
Além dessas canções, podemos encontrar o
valor afetivo do primeiro amor que surge na canção “Cajueiro velho”. A
ingenuidade do amor representado por meio de um coração desenhado com as
iniciais dos nomes da amada e do amante e que, submetido ao tempo e sua
efemeridade, pode se desfazer como planta que, se não é regada, perecerá. Essa
metáfora do amor que, se não alimentado, pode fenecer, podemos encontrar no
seguinte trecho: “A planta que não é
regada / Fica adoentada / Morre no canteiro / Assim é minha vida agora / Morro
toda hora / Lá no cajueiro.” (p. 195)
Na canção “Amor da minha vida”, podemos encontrar mais um exemplar de
amor devotado a uma mulher cuja ausência tortura veementemente o amante que se
lamuria invocando a amada por meio de imagens metafóricas e hipérboles que
expressam profundamente sua angústia: “Ó
luz dos olhos meus, / Metade do meu ser / Que amarga diferença / Sem tua
presença / Nesse meu viver / Amor da minha vida, / Estou na solidão / Trocastes
por saudade / A felicidade do meu coração.” (p. 177)
Além desse tema que é mais que explorado pelo “rei do baião”, podemos
encontrar também a ideia de “amizade” como um dos valores que ele costuma, em
suas canções, enaltecer. A “amizade”, nessas canções, se estende a uma
consciência de “solidariedade” imensa. Para discutir essas duas temáticas tão
correlacionadas, recorreremos às letras seguintes: “Amigo velho” (Rosil
Cavalcante), “Apologia ao jumento” (Luiz Gonzaga e José Clementino), “Canto do
povo” (Jurandyr da Feira), “Assum preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), “A
morte do vaqueiro” (Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho) e “Prece por Exu novo”
(Gonzaguinha), que são canções que ora tratam diretamente do tema “amizade”,
ora demonstram excessiva solidariedade à figura do sertanejo nordestino.
A canção “Amigo velho” discorre sobre um suposto encontro entre dois
amigos que, ao se encontrarem, se felicitam em “matar” a saudade que sentem
reciprocamente. Um pergunta ao outro sobre sua família, alude ao seu aspecto
físico de modo elogioso, expressa o quanto o prezava dizendo que desejava
encontrá-lo assim que chegou ao local em que ocorre o encontro. A amizade, na
letra dessa canção, se apresenta como um valor que ambos vivenciam de longa
data e que se manifesta calorosamente numa ocasião de reencontro. Nela, a
alegria, a satisfação, a manifestação de afeto é expressa à luz do modo
sertanejo de demonstrar a afetividade.
A amizade surge, também, como uma demonstração de solidariedade ante a
figura de um amigo injustiçado pela vida. É o que ocorre em “A morte do
vaqueiro”. Nessa canção, talvez uma das mais tristes de que se tem conhecimento
no país – uma espécie de elegia sertaneja – surge a imagem de um vaqueiro que
foi assassinado em decorrência de questões políticas e que, em seu anonimato,
só é lembrado pela canção que o rememora, pelo gado e pelo cachorro. Em
solidariedade ao primo e amigo – o vaqueiro Raimundo Jacó – assassinado, Luiz
Gonzaga, com Nelson Barbalho, compõe essa canção evocadora de elementos que
conferem um forte teor lírico e muita pungência à melodia e à letra.
Na primeira estrofe, encontramos uma vigorosa imagem poética arquitetada
por meio do uso de uma prosopopeia: também solidário à morte do vaqueiro, “Numa tarde bem tristonha, / Gado muge sem
parar / Lamentando seu vaqueiro, / Que não vem mais aboiar, / Tão dolente a
cantar.” (p. 163) Outra imagem que enfatiza a poeticidade da canção surge
na terceira e última estrofe com a aparição do cachorro do vaqueiro –
ressalte-se o fato de que o cachorro está sempre associado à lealdade, à fidelidade
– “Que inda chora a sua dor / É demais
tanta dor / A chorar com amor.” (p. 168)
Nesta perspectiva da demonstração de solidariedade, podemos colocar em
pauta, também, as canções “Canto do povo” e “Prece por um Exu novo”.
Na primeira, em tom metalinguístico, a canção é apresentada como a
efetivação da alegria. A voz que afirma que deseja espargir alegria por meio da
música, para o seu povo, também enfatiza: “Quero
ver tudo verdinho / Toda esperança brotar / Cheiro de terra molhada / um riso
em cada olhar.” (p. 198) Através dessa música, a voz lírica reúne-se ao
povo que tem a esperança de que a chuva desfaça a tristeza que vem sempre em
períodos de estiagens inclementes. Assim, percebemos sua demonstração de
extrema solidariedade à realidade do povo quando afirma que quer “Encher de vida essa gente / Que espera sem
reclamar.” (p. 198)
Na segunda canção, “Prece por um novo Exu”, encontramos um teor
reivindicativo que coloca em destaque uma tradicional disputa entre famílias
ocorrida em Exu – PE. Ante as mortes sucedidas na cidade em decorrência dessa
rixa familiar, Luiz Gonzaga entoou seu canto de repúdio pela “guerra” e
solidariedade pelos mortos através dessa canção composta por seu filho Gonzaguinha.
Nos refrões, a voz lírica recorre à
religiosidade para sensibilizar os envolvidos na querela familiar e chamar
atenção, por meio do apelo aos santos, das autoridades judiciais que pareciam
ignorar o problema.
Na quarta estrofe dessa canção, podemos encontrar a perspectiva solidária
da voz lírica aos pobres: “Que os
poderosos se matem / Problema é do poder / Mas sempre sobra pros pobres / Isso
eu não posso entender” e demonstra sua esperança de que, em dias vindouros,
a juventude reavalie a visão acrítica dos seus descendentes e transforme a
realidade da cidade: “Confio que a
juventude / Com sua revolução / Nos traga o amor e acabe / O Horror desta
tradição” (p. 300).
Mas a amizade e a solidariedade
não se restringem, no cancioneiro de Luiz Gonzaga, apenas à sua gente sofrida.
Em diversas canções ele devotou sua atenção a animais típicos da paisagística
nordestina com a intenção de, no caso da canção falada “Apologia ao jumento”
(Luiz Gonzaga e José Clementino), realizar uma homenagem àquele que muito
“amigavelmente” contribuiu com a manutenção da vida cotidiana do sertanejo e com
os grandes empreendimentos desenvolvimentistas da região. A voz lírica enfatiza
a homenagem à figura eminente do jumento no trecho: “Jumento meu irmão. / O maior amigo do sertão!” (p. 179) Desse modo,
para retribuir a amizade do jumento ao povo sertanejo, a canção é uma apologia
que discorre sobre os valores desse animal que, considerado sagrado, merece ser
chamado de irmão e ser homenageado tendo em vista suas inúmeras contribuições.
Na canção “Assum preto”, por sua vez, a solidariedade ao sofrimento, por
que passa o pássaro “assum preto”, desperta na voz lírica uma forte empatia com
a ave e, em seguida, essa voz se compara à ave identificando-se com ela por
sentir que, assim como a ave teve os olhos furados para cantar melhor, também
sofreu o cerceamento da vida por ter ficado sem a luz dos seus olhos – metáfora
construída para referir-se ao ser a quem devota seu amor.
As canções que utilizamos, para essa breve explanação, correspondem a
alguns dos muitos exemplares do cancioneiro gonzaguiano
que discorrem sobre os afetos enfatizados na expressão do “amor”, da “amizade”
e da “solidariedade”. Sabemos que, para discutir sobre a temática dos afetos,
precisaríamos de maior aprofundamento através de consultas amplas a teorias que
discorressem sobre o assunto. Além disso, sabemos que o cancioneiro de Luiz
Gonzaga nos possibilitaria muitas outras abordagens e análises, o que não seria
possível em nosso trabalho que se pretende breve.
Enfim, conscientes de que poderíamos ampliar sobremaneira as
investigações a que nos propusemos, afirmamos o que já constatáramos no início
deste texto: não é possível incorrer em obviedades em se tratando desse
significativo músico nordestino, porque sua obra, fruto de uma vida dedicada
intensamente à arte musical, representa amplas possibilidades de estudos em
áreas diversas.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, José
Marcelo Leal. Luiz Gonzaga: suas
canções e seguidores. Teresina: Halley, 2007.
SANTOS, José Farias
dos. Luiz Gonzaga: música como
expressão do Nordeste. São Paulo: IBRASA, 2004.
SILVA, Uéliton
Mendes da. Luiz Gonzaga: discografia
do rei do baião. Salvador: Memorial das Letras, 1997.
NOTAS:
Este texto é um
fragmento do artigo publicado nos Anais do I Congresso Internacional de Semiótica
e Cultura, realizado, em 2014, na Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Está disponível
no endereço:
CARDOSO, Cícero Émerson
do Nascimento. A confluência dos afetos: uma leitura de letras de canções
interpretadas por Luiz Gonzaga. In: Anais
do I Congresso Internacional de Semiótica e Cultura. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/semicult/arquivos/ANAIS%20VER_PAGINADA_08_04_2015.pdf.
João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, 2014. p. 728 – 737.
[1]
BARBOSA, José Marcelo Leal. Luiz
Gonzaga: suas canções e seguidores. Teresina: Halley, 2007. A partir daqui
indicaremos apenas o número da página do livro que consultamos para citação das
canções.
Nenhum comentário:
Postar um comentário