terça-feira, 3 de dezembro de 2024

'SERTÃO CONFEDERADO': NOTAS SOBRE A ESTREIA DE UM ESPETÁCULO NOTÁVEL

 
Foto: sintafce.org.br

O Grupo Criar de Teatro e a CIA Prisma de Artes apresentaram, no dia 28 de novembro de 2024, às 20h, no Teatro Dragão do Mar, a peça teatral Sertão Confederado. Como é evocado no título, a obra discorre sobre o movimento político ocorrido no Nordeste do Brasil, há 200 anos, denominado Confederação do Equador.

 

Quando o público entra, é recebido por duas imagens: uma visual e uma sonora. A imagem visual se dá pela apresentação da personagem Ana Triste, que escreve, sentada em uma cadeira postada sobre um móvel de madeira, com caderno e pena nas mãos — uma espécie de diário ou livro de memória? O espectador constata, desde o início, que ela será a narradora da ação da peça. A imagem sonora, por sua vez, se dá ao som do violão que conduz os espectadores (como se fossem levados a viajar por um túnel do tempo) à atmosfera que remete ao contexto histórico explanado na peça.  

 

Essas duas imagens, simbolicamente, prevalecerão no enredo. A narrativa de Ana Triste, entre intensa e introspectiva, é o fio condutor da ação dramática. A música, onipresente no espetáculo, reforça a pretensão do texto de envolver o público, sobretudo emocionalmente, quanto aos eventos políticos do Brasil após a independência.  

 

Explicitado o contexto histórico da peça, ela faz um recorte: trata da presença (em tudo relevante) do estado do Ceará nesse movimento, que envolveu vários estados do Nordeste, contra o governo brasileiro do início do século XIX — um governo lastreado pela monarquia. Desse modo, o elenco se move pelo palco em cenário minimalista (com falas, cantos ou danças), dando vida às figuras históricas cujos nomes são conhecidos (mas  ainda não suficientemente reconhecidos) pela efetiva participação na Confederação do Equador.

 

Esse recorte é muito bem delineado no texto dramático, de autoria de Mailson Furtado (que dá vida ao herói Tristão Gonçalves de Araripe e também oferece ao espetáculo seu conhecimento musical), uma vez que a dramaturgia apoia-se em apurada pesquisa histórica e cultural. Os diversos conteúdos colhidos são transformados em componentes de ação capazes de envolver o público. Nesse sentido, em meio à explanação de aspectos históricos, políticos e memorialísticos, o autor acerta na linguagem empregada, uma vez que articula: 1) a retórica dos discursos políticos e eclesiásticos com criatividade, 2) o lirismo do discurso de Ana Triste (que é melancólico, mas transgressor e provocativo, de modo que ela transgride tempo e espaço em sua narrativa repleta de prolepses e analepses) e 3) o prosaico nos discursos, sobretudo, de personagens secundárias em contexto cômicos etc.

 

Algo a ser considerado, também, nessa perspectiva, é o uso de fugas cômicas no plano da ação e da linguagem que, sem descaracterizar o tom sério e de contornos trágicos predominantes no texto, consegue incitar ao riso em vários momentos. O texto mostra, na superfície e em suas camadas profundas, a presença da configuração trágica. Apesar disso, se permite a atos de comicidade em momentos pontuais — o que o torna dinâmico e instigante.

 

Além disso, outro aspecto notável da peça é o uso de componentes das tradições orais. Isso fica nítido, principalmente, quando canções e danças concentram, em suas melodias e coreografias, valores que remetem à cultura popular. As composições exibidas e as coreografias apresentadas tornam a peça lúdica, ágil, expressiva e lírica. A plateia interage, em vários momentos, com o elenco. Nas coreografias, não é difícil localizar menções ao reisado, maneiro-pau, coco de roda etc.

 

Sendo essa a apresentação de estreia, é notório o potencial dessa obra, que conseguiu expor o contexto histórico-político sem cair em didatismos impertinentes, linearidades acríticas ou clichês narrativos. Ao contrário disso, os recursos dramatúrgicos, utilizados com originalidade, tornam a experiência de adentrar o universo complexo da Confederação do Equador algo prazeroso.

 

A propósito, a peça é dirigida pela experiente e criativa Herê Aquino, que faz um trabalho notável em torno do texto dramático de Mailson Furtado. Quanto à cenografia, certamente em nítido diálogo com a diretora, Chico Henrique opta pela criação de um cenário conciso, objetivo e prático na transição de cenas. Por exemplo, o móvel sobre o qual Ana Triste se apresenta sentada, no início e no desenvolvimento da ação da peça, transforma-se em diversos outros itens — de mesa utilizada para reunião de Bárbara de Alencar com seus adeptos, a barco utilizado por Thomas Cochrane, esse móvel concentra surpresas que funcionam perfeitamente a serviço da dramaturgia.

 

Aspecto notável no espetáculo é o elenco e a caracterização primorosa das personagens. Estamos diante de dois grupos teatrais com atores e atrizes que dão vida a personalidades históricas marcadas por dois ângulos de visão: o propagado pela oficialidade histórica e o propagado pelo imaginário.

 

Com base nisso, são retomadas: 1) figuras femininas como Bárbara de Alencar (Luisete Carvalho), a matriarca cujas ideias tornaram-na a primeira presa política do país, e Ana Triste (Yane Cordeiro), a fiel esposa que se enlutou, para sempre, depois da morte do marido amado; e 2) figuras masculinas como Tristão Gonçalves Araripe (Mailson Furtado), líder do movimento no Ceará, Pereira Filgueiras (Raimundo Moreira), comandante das armas, e José Martiniano Pereira de Alencar (Maycon Wiliam), dentre outras personalidades relevantes da Confederação do Equador.  

 

Merece nota o fato de que os/as artistas se revezam na interpretação de uma mesma personagem, também assumem outras atividades no desenvolvimento da ação — especialmente no trabalho com a música, que é um dos pontos altos do espetáculo. Embora ocorra essa amplitude de funções, o elenco as realiza com leveza e fluidez, criando harmonia cênica.

 

As personagens são compostas, com maestria, pelos dois grupos teatrais unidos para realização dessa obra. Reforçam a caracterização delas excelente trabalho de figurino, cabelo e maquiagem. O figurino, criado por Chico Henrique e Ivanio Sousa, é significativo para a dramaturgia: no figurino permanente, prevalecem tons claros com  uso de vermelho e amarelo. Quando uma personagem surge na cena, ela é representada, também, pelo figurino que muda: é possível reconhecer a transição das personagens por meio da sobreposição de vestimentas. Além disso, é pertinente observar o azul, principalmente nas vestimentas masculinas.   

 

Na peça, existem momentos emblemáticos: 1] a cena da marcha (momento em que há uma apresentação de música e dança com coreografia remetendo à marcha dos revolucionários); 2] a cena da mesa de reunião (espécie de santa ceia de rebelados?) na qual Bárbara de Alencar tem destaque; 3] a cena do diálogo entre Pereira Filgueiras e o Governador Sampaio que, por meio de recursos cômicos (com espaço para um jogo metalinguístico), é realizado com auxílio de um mensageiro (Gal Saldanha) capaz de transgredir tempo e espaço para levar e trazer as correspondências dos dois políticos; 4] a cena da chegada de Thomas Cochrane (Maycon Wiliam) com o ajudante (Gal Saldanha), que é dos momentos mais cômicos da peça (Gal Saldanha e Maycon Wiliam estão excelentes na cena); 5] a cena em que ocorre o breve monólogo de Ana Triste ante a morte de Tristão Gonçalves (nesse momento, Yane Cordeiro emprega forte carga dramática e leva o espectador à comoção); 6] a cena em que Tristão Gonçalves é assassinado e levado em cortejo (deixando Ana Triste desolada).

 

Essas e tantas outras cenas são dignas de notas. Em verdade, é pertinente dizer: a peça em seu todo é rica em forma e conteúdo, é criativa em sua maneira de apresentar a Confederação do Equador, é dinâmica em sua predisposição a alternar o que é trágico e cômico; é harmônica em sua composição dramática; é consciente em sua articulação dos recursos dramáticos a serviço de contar uma história esteticamente constituída; é uma obra de arte, porquanto concentra polissemia, catarse, mimesis, universalidade e outros itens indispensáveis ao que é artístico.

 

Sertão Confederado é uma experiência teatral intensa em vários aspectos, pois ela é atual em suas reflexões políticas, históricas e memorialísticas, também é rica pelo texto dramático e pelas atuações. Música, dança, canto e atuações tornam essa obra uma profusão de lirismo, dinamismo e vida.

 

Émerson Cardoso

02/12/2024