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Grupo Criar de Teatro e a CIA Prisma de Artes apresentaram, no
dia 28 de novembro de 2024, às 20h, no Teatro Dragão do Mar, a peça
teatral Sertão Confederado. Como é evocado no título, a obra discorre
sobre o movimento político ocorrido no Nordeste do Brasil, há 200 anos,
denominado Confederação do Equador.
Quando o público entra, é recebido
por duas imagens: uma visual e uma sonora. A imagem visual se dá pela
apresentação da personagem Ana Triste, que escreve, sentada em uma cadeira
postada sobre um móvel de madeira, com caderno e pena nas mãos — uma espécie de
diário ou livro de memória? O espectador constata, desde o início, que ela será
a narradora da ação da peça. A imagem sonora, por sua vez, se dá ao som do
violão que conduz os espectadores (como se fossem levados a viajar por um túnel
do tempo) à atmosfera que remete ao contexto histórico explanado na peça.
Essas duas imagens, simbolicamente,
prevalecerão no enredo. A narrativa de Ana Triste, entre intensa e
introspectiva, é o fio condutor da ação dramática. A música, onipresente no
espetáculo, reforça a pretensão do texto de envolver o público, sobretudo emocionalmente,
quanto aos eventos políticos do Brasil após a independência.
Explicitado o contexto histórico da
peça, ela faz um recorte: trata da presença (em tudo relevante) do estado do
Ceará nesse movimento, que envolveu vários estados do Nordeste, contra o
governo brasileiro do início do século XIX — um governo lastreado pela
monarquia. Desse modo, o elenco se move pelo palco em cenário minimalista (com
falas, cantos ou danças), dando vida às figuras históricas cujos nomes são
conhecidos (mas ainda não
suficientemente reconhecidos) pela efetiva participação na Confederação do
Equador.
Esse recorte é muito bem delineado no
texto dramático, de autoria de Mailson Furtado (que dá vida ao herói Tristão
Gonçalves de Araripe e também oferece ao espetáculo seu conhecimento musical),
uma vez que a dramaturgia apoia-se em apurada pesquisa histórica e cultural. Os
diversos conteúdos colhidos são transformados em componentes de ação capazes de
envolver o público. Nesse sentido, em meio à explanação de aspectos históricos,
políticos e memorialísticos, o autor acerta na linguagem empregada, uma vez que
articula: 1) a retórica dos discursos políticos e eclesiásticos com
criatividade, 2) o lirismo do discurso de Ana Triste (que é melancólico, mas
transgressor e provocativo, de modo que ela transgride tempo e espaço em sua
narrativa repleta de prolepses e analepses) e 3) o prosaico nos
discursos, sobretudo, de personagens secundárias em contexto cômicos etc.
Algo a ser considerado, também, nessa
perspectiva, é o uso de fugas cômicas no plano da ação e da linguagem que, sem descaracterizar
o tom sério e de contornos trágicos predominantes no texto, consegue incitar ao
riso em vários momentos. O texto mostra, na superfície e em suas camadas
profundas, a presença da configuração trágica. Apesar disso, se permite a atos
de comicidade em momentos pontuais — o que o torna dinâmico e instigante.
Além disso, outro aspecto notável da
peça é o uso de componentes das tradições orais. Isso fica nítido,
principalmente, quando canções e danças concentram, em suas melodias e
coreografias, valores que remetem à cultura popular. As composições exibidas e
as coreografias apresentadas tornam a peça lúdica, ágil, expressiva e lírica. A
plateia interage, em vários momentos, com o elenco. Nas coreografias, não é
difícil localizar menções ao reisado, maneiro-pau, coco de roda etc.
Sendo essa a apresentação de estreia,
é notório o potencial dessa obra, que conseguiu expor o contexto
histórico-político sem cair em didatismos impertinentes, linearidades acríticas
ou clichês narrativos. Ao contrário disso, os recursos dramatúrgicos,
utilizados com originalidade, tornam a experiência de adentrar o universo
complexo da Confederação do Equador algo prazeroso.
A propósito, a peça é dirigida pela
experiente e criativa Herê Aquino, que faz um trabalho notável em torno do texto
dramático de Mailson Furtado. Quanto à cenografia, certamente em nítido diálogo
com a diretora, Chico Henrique opta pela criação de um cenário conciso,
objetivo e prático na transição de cenas. Por exemplo, o móvel sobre o qual Ana
Triste se apresenta sentada, no início e no desenvolvimento da ação da peça,
transforma-se em diversos outros itens — de mesa utilizada para reunião de Bárbara
de Alencar com seus adeptos, a barco utilizado por Thomas Cochrane, esse móvel
concentra surpresas que funcionam perfeitamente a serviço da dramaturgia.
Aspecto notável no espetáculo é o
elenco e a caracterização primorosa das personagens. Estamos diante de dois
grupos teatrais com atores e atrizes que dão vida a personalidades históricas
marcadas por dois ângulos de visão: o propagado pela oficialidade histórica e o
propagado pelo imaginário.
Com base nisso, são retomadas: 1) figuras
femininas como Bárbara de Alencar (Luisete Carvalho), a matriarca cujas ideias
tornaram-na a primeira presa política do país, e Ana Triste (Yane Cordeiro), a
fiel esposa que se enlutou, para sempre, depois da morte do marido amado; e 2)
figuras masculinas como Tristão Gonçalves Araripe (Mailson Furtado), líder do
movimento no Ceará, Pereira Filgueiras (Raimundo Moreira), comandante das armas,
e José Martiniano Pereira de Alencar (Maycon Wiliam), dentre outras
personalidades relevantes da Confederação do Equador.
Merece nota o fato de que os/as
artistas se revezam na interpretação de uma mesma personagem, também assumem
outras atividades no desenvolvimento da ação — especialmente no trabalho com a
música, que é um dos pontos altos do espetáculo. Embora ocorra essa amplitude
de funções, o elenco as realiza com leveza e fluidez, criando harmonia cênica.
As personagens são compostas, com
maestria, pelos dois grupos teatrais unidos para realização dessa obra. Reforçam
a caracterização delas excelente trabalho de figurino, cabelo e maquiagem. O
figurino, criado por Chico Henrique e Ivanio Sousa, é significativo para a
dramaturgia: no figurino permanente, prevalecem tons claros com uso de vermelho e amarelo. Quando uma
personagem surge na cena, ela é representada, também, pelo figurino que muda: é
possível reconhecer a transição das personagens por meio da sobreposição de
vestimentas. Além disso, é pertinente observar o azul, principalmente nas
vestimentas masculinas.
Na peça, existem momentos
emblemáticos: 1] a cena da marcha (momento em que há uma apresentação de música
e dança com coreografia remetendo à marcha dos revolucionários); 2] a cena da mesa
de reunião (espécie de santa ceia de rebelados?) na qual Bárbara de Alencar tem
destaque; 3] a cena do diálogo entre Pereira Filgueiras e o Governador Sampaio
que, por meio de recursos cômicos (com espaço para um jogo metalinguístico), é
realizado com auxílio de um mensageiro (Gal Saldanha) capaz de transgredir
tempo e espaço para levar e trazer as correspondências dos dois políticos; 4] a
cena da chegada de Thomas Cochrane (Maycon Wiliam) com o ajudante (Gal
Saldanha), que é dos momentos mais cômicos da peça (Gal Saldanha e Maycon
Wiliam estão excelentes na cena); 5] a cena em que ocorre o breve monólogo de
Ana Triste ante a morte de Tristão Gonçalves (nesse momento, Yane Cordeiro
emprega forte carga dramática e leva o espectador à comoção); 6] a cena em que Tristão
Gonçalves é assassinado e levado em cortejo (deixando Ana Triste desolada).
Essas e tantas outras cenas são
dignas de notas. Em verdade, é pertinente dizer: a peça em seu todo é rica em
forma e conteúdo, é criativa em sua maneira de apresentar a Confederação do
Equador, é dinâmica em sua predisposição a alternar o que é trágico e cômico; é
harmônica em sua composição dramática; é consciente em sua articulação dos
recursos dramáticos a serviço de contar uma história esteticamente constituída;
é uma obra de arte, porquanto concentra polissemia, catarse, mimesis, universalidade
e outros itens indispensáveis ao que é artístico.
Sertão Confederado
é uma experiência teatral intensa em vários aspectos, pois ela é atual em suas reflexões
políticas, históricas e memorialísticas, também é rica pelo texto dramático e
pelas atuações. Música, dança, canto e atuações tornam essa obra uma profusão
de lirismo, dinamismo e vida.
Émerson Cardoso
02/12/2024
Émerson, assisti à peça e me impressiona (não surpreende) a sua crítica literária tão didática, fluída e exata do que foi este grande espetáculo. Nada te escapa, esde um pequeno detalhe, às mais flagrantes atuações. Parabéns a você, à Mailson, e à todos que contribuíram para esse espetáculo. Parabéns pelo seu minucioso e primoroso relato. OBRIGADO. BEIJO
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