segunda-feira, 22 de julho de 2013

RESENHA DO LIVRO "CARTAS PORTUGUESAS" - BARROCO (PARTE II)


ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 2007.
Considerada uma obra de profundidade indiscutível, somente no início do século XIX, mais precisamente em 1810, sua autoria foi confirmada: a religiosa portuguesa Mariana Alcoforado era, de fato, a autora. Essa obra corresponde a cinco cartas, escritas originalmente em Língua Francesa, direcionadas a um oficial do exército francês que estivera em serviço em Portugal e que se chamava Noel Bouton de Chamilly – ou apenas De Chamilly.
As cinco cartas, todas com conteúdo não muito extenso, discorrem sobre uma amante que devota palavras desesperadas de amor para seu amado. A linguagem evoca os conflitos típicos do indivíduo que se encontrava indeciso entre as concepções teístas, propagadas pelo medievalismo, e as concepções humanistas, propagadas pela modernidade em ascensão – posteriormente às conquistas do Humanismo, surgem o Renascentismo e o Classicismo que se chocavam com o Barroco. Isso é perceptível se considerarmos que a autora das cartas era uma religiosa e que, provavelmente, se debatia em lancinantes conflitos em decorrência do dilema: abraçar a vida religiosa e vivenciar a castidade, abraçar a vida carnal e entregar-se sem hesitações aos ardores da paixão. 
Desde a primeira carta percebemos o teor passional com que a autora trata a história de amor que vivencia (p. 16): "Mil vezes ao dia dirijo para ti os meus suspiros". Ainda nessa carta, a remetente lamenta que o seu amante instigara esperanças e ela, que tanto idealizara projetos em que se via sempre ao seu lado, naquele momento deleitava somente a solidão em decorrência da ausência do amado. A passionalidade amorosa; a chantagem emocional que tentava consumir de culpas o ser que se distanciou para, em seguida, exonerar de qualquer culpas esse ser a quem ela procura justificar porque não suportaria a ideia de ver arrefecida a chama do amor que, por ela, ele confessara; a profunda saudade; a violência das palavras embebidas de sentimentalidades; o arrebatamento de amor expresso por meio de palavras ardorosas, surgem aos arroubos ainda na primeira carta. 
Na segunda carta, não menos repleta de arroubos sentimentais, encontramos a seguinte lamentação de amor (p. 24): "As minhas dores já não podem ter consolo e a lembrança das alegrias passadas enche-me de desespero."
Chamam atenção, na terceira carta, a que ponto chega a violência com que a religiosa vivencia o amor (p. 35): "Eu não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo: encontro-me dilacerada por mil movimentos contrários. Poder-se-á imaginar estado tão deplorável?" 
Na penúltima carta, a autora inicia sua escrita colocando em destaque a angústia que sente por saber que o amado passou por uma tempestade que o fez aportar em Algarve e aproveita para dizer (p. 43): "Receio que tenhas sofrido muito no mar, e esta apreensão de tal modo ocupou o meu espírito que não pensei mais nos meus próprios males."
Na última carta – certamente a mais pungente, emocionada e desiludida –, a autora, aludindo ao fato de que o destinatário havia lido suas cartas, mas não as correspondia com o mesmo arrebatamento e amor, decide dar fim às correspondências. O trecho mais cruciante da carta parece-nos o seguinte (p. 61): "Sofri os seus desprezos, e teria suportado o seu ódio e todo ciúme que poderia nascer em mim de uma ligação sua com outra mulher qualquer, mas, pelo menos, teria uma paixão para combater. É sua indiferença que não suporto." E, em seguida, reforçando a indignação ante a suposta indiferença do seu amado ela afirma (p. 61): "Os seus impertinentes protestos de amizade e as delicadezas ridículas da sua última carta mostraram-me que recebera todas as que lhe escrevi e que elas não provocavam no seu coração nenhuma emoção, apesar de as ter lido. Ingrato!" Fica claro que, ao sentir-se preterida, ela se transtorna, no entanto ela expressa que preferiria viver enganada se, ao menos, pudesse viver a paixão ardente que a tornava viva (p. 62): "Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Por que não me deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida."
Já no final, a religiosa, preenchida de autocomiseração e despeito, decide atirar contra seu interlocutor palavras fortes com a intenção de causar nele alguma sensação de culpa (p. 68): "Amei-o como louca! [...] O seu procedimento não é de um homem honesto. É preciso que experimentasse por mim uma autêntica aversão natural para não me ter amado perdidamente." Logo após, ainda em fúria, ela questiona as qualidades do amado com a intenção de atingi-lo em seu brio e atira sobre ele inúmeras falhas por ele cometidas (p. 68): "Deixei-me seduzir por qualidades bem medíocres! Que fez, afinal, que me pudesse agradar? Que é que me sacrificou? Não procurou antes mil prazeres?" 
Podemos considerar essa obra uma perfeita representação das inquietações típicas do Barroco. Nela percebemos claramente os jogos de oposição que dicotomizavam o ser nesse período: corpo / alma; amor carnal / amor espiritual; mundanismo / espiritualismo; amor erótico / amor divinal. Inseridas no rol das mais belas epístolas realizadas no mundo ocidental, essas cartas exprimem algo mais que moderno se considerarmos a temática que aborda: o amor. Tramas periculosas, desencontros, preterimentos, ilusões e, mais frequentemente, desilusões constroem a ideia do amor conforme a cultura ocidental a concebe. A obra de Mariana Alcoforado exprime essas mesmas condições arquetípicas do amor e figura como uma das mais importantes pela beleza com que expõe as tumultuárias relações humanas.
Mariana Alcoforado nasceu em Beja, Portugal, em 22 de abril de 1640. Entrou para o convento de Nossa Senhora da Conceição, da austera Ordem de Santa Clara, aos 12 anos, por imposição da família – que era uma família de prestígio em Portugal. Permaneceu na clausura até a morte, ocorrida em 28 de julho de 1723, tendo realizado as funções de vigária e escrivã. Conheceu em 1663 o oficial De Chamilly por ocasião da Guerra da Restauração e com ele trocou correspondências amorosas por algum tempo. As Lettres Portugaises (foram publicadas originalmente em francês) foram publicadas em 1669 causando curiosidade entre personalidades literárias que desconfiavam de que essas cartas não tinham sido escritas pela religiosa – o que ficou comprovado pelo escritor francês Boissonade, em 1810.

TEXTO DE: ÉMERSON CARDOSO

Convento onde viveu Mariana Alcoforado - Hoje é um Museu
Réplica da janela através da qual
Mariana falou pela primeira vez com o francês

Um comentário: