ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
Considerada
uma obra de profundidade indiscutível, somente no início do século XIX, mais
precisamente em 1810, sua autoria foi confirmada: a religiosa portuguesa
Mariana Alcoforado era, de fato, a autora. Essa obra corresponde a cinco
cartas, escritas originalmente em Língua Francesa, direcionadas a um oficial do
exército francês que estivera em serviço em Portugal e que se chamava Noel
Bouton de Chamilly – ou apenas De Chamilly.
As cinco
cartas, todas com conteúdo não muito extenso, discorrem sobre uma amante que
devota palavras desesperadas de amor para seu amado. A linguagem evoca os
conflitos típicos do indivíduo que se encontrava indeciso entre as concepções
teístas, propagadas pelo medievalismo, e as concepções humanistas, propagadas
pela modernidade em ascensão – posteriormente às conquistas do Humanismo,
surgem o Renascentismo e o Classicismo que se chocavam com o Barroco. Isso é
perceptível se considerarmos que a autora das cartas era uma religiosa e que,
provavelmente, se debatia em lancinantes conflitos em decorrência do dilema:
abraçar a vida religiosa e vivenciar a castidade, abraçar a vida carnal e
entregar-se sem hesitações aos ardores da paixão.
Desde a
primeira carta percebemos o teor passional com que a autora trata a história de
amor que vivencia (p. 16): "Mil vezes ao dia dirijo para
ti os meus suspiros". Ainda nessa carta, a remetente lamenta que o seu
amante instigara esperanças e ela, que tanto idealizara projetos em que se via
sempre ao seu lado, naquele momento deleitava somente a solidão em decorrência
da ausência do amado. A passionalidade amorosa; a chantagem emocional que tentava
consumir de culpas o ser que se distanciou para, em seguida, exonerar de
qualquer culpas esse ser a quem ela procura justificar porque não suportaria a
ideia de ver arrefecida a chama do amor que, por ela, ele confessara; a
profunda saudade; a violência das palavras embebidas de sentimentalidades; o
arrebatamento de amor expresso por meio de palavras ardorosas, surgem aos
arroubos ainda na primeira carta.
Na segunda
carta, não menos repleta de arroubos sentimentais, encontramos a seguinte
lamentação de amor (p. 24): "As minhas dores já não podem
ter consolo e a lembrança das alegrias passadas enche-me de desespero."
Chamam
atenção, na terceira carta, a que ponto chega a violência com que a religiosa
vivencia o amor (p. 35): "Eu não sei nem o que sou, nem o
que faço, nem o que desejo: encontro-me dilacerada por mil movimentos
contrários. Poder-se-á imaginar estado tão deplorável?"
Na penúltima
carta, a autora inicia sua escrita colocando em destaque a angústia que sente
por saber que o amado passou por uma tempestade que o fez aportar em Algarve e
aproveita para dizer (p. 43): "Receio que tenhas sofrido
muito no mar, e esta apreensão de tal modo ocupou o meu espírito que não pensei
mais nos meus próprios males."
Na última
carta – certamente a mais pungente, emocionada e desiludida –, a autora,
aludindo ao fato de que o destinatário havia lido suas cartas, mas não as
correspondia com o mesmo arrebatamento e amor, decide dar fim às
correspondências. O trecho mais cruciante da carta parece-nos o seguinte (p. 61): "Sofri os seus desprezos, e teria suportado o seu ódio e todo
ciúme que poderia nascer em mim de uma ligação sua com outra mulher qualquer,
mas, pelo menos, teria uma paixão para combater. É sua indiferença que não
suporto." E, em seguida, reforçando a indignação ante a suposta indiferença
do seu amado ela afirma (p. 61): "Os seus impertinentes
protestos de amizade e as delicadezas ridículas da sua última carta
mostraram-me que recebera todas as que lhe escrevi e que elas não provocavam no
seu coração nenhuma emoção, apesar de as ter lido. Ingrato!" Fica claro
que, ao sentir-se preterida, ela se transtorna, no entanto ela expressa que
preferiria viver enganada se, ao menos, pudesse viver a paixão ardente que a
tornava viva (p. 62): "Detesto a sua sinceridade!
Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Por que não me
deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não
procurava ser esclarecida."
Já no final,
a religiosa, preenchida de autocomiseração e despeito, decide atirar contra seu
interlocutor palavras fortes com a intenção de causar nele alguma sensação de
culpa (p. 68): "Amei-o como louca! [...] O seu procedimento não é de um
homem honesto. É preciso que experimentasse por mim uma autêntica aversão natural
para não me ter amado perdidamente." Logo após, ainda em fúria, ela
questiona as qualidades do amado com a intenção de atingi-lo em seu brio e atira
sobre ele inúmeras falhas por ele cometidas (p. 68): "Deixei-me
seduzir por qualidades bem medíocres! Que fez, afinal, que me pudesse agradar?
Que é que me sacrificou? Não procurou antes mil prazeres?"
Podemos
considerar essa obra uma perfeita representação das inquietações típicas do
Barroco. Nela percebemos claramente os jogos de oposição que dicotomizavam o
ser nesse período: corpo / alma; amor carnal / amor espiritual; mundanismo / espiritualismo;
amor erótico / amor divinal. Inseridas no rol das mais belas epístolas
realizadas no mundo ocidental, essas cartas exprimem algo mais que moderno se
considerarmos a temática que aborda: o amor. Tramas periculosas, desencontros,
preterimentos, ilusões e, mais frequentemente, desilusões constroem a ideia do
amor conforme a cultura ocidental a concebe. A obra de Mariana Alcoforado exprime
essas mesmas condições arquetípicas do amor e figura como uma das mais
importantes pela beleza com que expõe as tumultuárias relações humanas.
Mariana
Alcoforado nasceu em Beja, Portugal, em 22 de abril de 1640. Entrou para o
convento de Nossa Senhora da Conceição, da austera Ordem de Santa Clara, aos 12
anos, por imposição da família – que era uma família de prestígio em Portugal. Permaneceu
na clausura até a morte, ocorrida em 28 de julho de 1723, tendo realizado as
funções de vigária e escrivã. Conheceu em 1663 o oficial De Chamilly por
ocasião da Guerra da Restauração e com ele trocou correspondências amorosas por
algum tempo. As Lettres Portugaises (foram
publicadas originalmente em francês) foram publicadas em 1669 causando
curiosidade entre personalidades literárias que desconfiavam de que essas
cartas não tinham sido escritas pela religiosa – o que ficou comprovado pelo
escritor francês Boissonade, em 1810.
TEXTO DE: ÉMERSON CARDOSO
Convento onde viveu Mariana Alcoforado - Hoje é um Museu |
Réplica da janela através da qual
Mariana falou pela primeira vez com o francês
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aqsfaw
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