NA PRISÃO DO
AMOR UM AMANTE CAI PELA TERCEIRA VEZ: ANÁLISE DA MÚSICA CHÃO DE GIZ, DE
ZÉ RAMALHO
Gravada originalmente em 1977, Chão de Giz é uma das músicas mais populares do
paraibano Zé Ramalho e, além de uma melodia marcante, a letra apresenta ampla
significação através de imagens melancólicas que margeiam o patético da
desilusão amorosa.
Constituída de três estrofes,
essa canção inicia com a afirmação do eu lírico que diz: “Eu desço dessa
solidão”. Essa afirmação nos remete a um conflito existencial que se mostra com
intensa carga dramática. A solidão é vista, por muitos, como um estado
deplorável ao ser humano que, em sua essência, estaria fadado ao convívio
social. Quem, por algum motivo, se vê fora dessa possibilidade de comunicação
tende a sentir-se vazio, incompleto e até, em alguns casos, marginalizado.
Dizer que irá "descer" da solidão, além de ser uma expressão hiperbólica, é uma tentativa de mostrar a sensação de vazio existencial que o eu lírico vivencia.
Ele, portanto, encontra-se num estado depressivo gritante, pintado com as cores
dramáticas do que é irreversível.
Associamos as três estrofes
dessa canção a uma metáfora que nos parece viável, se considerarmos o texto em
seu todo. Cada estrofe representa uma queda, cada queda amplia,
metaforicamente, a sensação de autodestruição do eu lírico que não consegue
lidar com a possibilidade de viver sem estar ao lado do ser a quem devota seu
amor.
Nessa perspectiva,
poderíamos dizer que a primeira queda acontece logo no verso inicial da
primeira estrofe. Descer da solidão seria, nesse caso, uma das três quedas que
o eu lírico vivenciará ao longo do texto.
Quando o eu lírico espalha
“coisas sobre um chão de giz”, a imagem se torna pouco nítida tendo em vista o
termo “coisa” empregado, geralmente, para designar inúmeros tipos de objetos /
seres não delimitados ou especificados. O chão de giz poderia sugerir a
fugacidade dos acontecimentos – o giz é um objeto que, ao ser utilizado,
desfaz-se deixando apenas seus resquícios. Essa imagem nos dimensiona a
condição do eu lírico que parece estar, assim como o giz, fadado a
fragmentar-se, desfigurar-se, perder-se.
Em seguida, o eu lírico
apresenta definitivamente o seu estado emocional: “Há meros devaneios tolos a
me torturar”. Esse verso o desmascara: ante a necessidade que ele evidencia de
não afirmar o seu estado mórbido de espírito, seu discurso o coloca numa
excessiva exposição íntima, pois se o que sente são apenas “meros devaneios
tolos”, por que ele se deixa torturar tanto por isso? Não são, como se pode
supor, meros devaneios e sim um angustiante conflito de cunho amoroso que,
inclusive, tritura seu íntimo e o torna desesperado a ponto de recortar
“fotografias” repetidas vezes como se quisesse desfazer o sentimento
resguardado em si. A cena reproduzida na fotografia, que anteriormente poderia representar a recordação de momentos felizes, agora está fragmentada, desfeita.
Essa ação do eu lírico sugere-nos que ele tentava rasgar aquilo que era externo
para desfazer, talvez, o que o triturava internamente: e seu gesto obviamente
fracassou.
O termo “amiúde” – que
significa repetidas vezes – reforça a ideia de compulsão por libertar-se de
algo que quanto mais é negado mais parece se firmar. As fotografias foram
cortadas, destruídas. O objetivo não seria, portanto, destruir a si mesmo já
que trazia dentro, e não fora de si, um amor não correspondido, conflitante e
causador de sua angústia?
A punição para o objeto amoroso
ausente se dá através da seguinte ameaça proferida pelo eu lírico: o ser amado,
representado pelas fotografias trituradas, será atirado num “pano de guardar
confetes”. Cortadas as fotos, o destino delas – mais precisamente o destino do
ser amado – será o de misturar-se aos confetes e nunca mais serem restituídas.
Essa afirmação se repete de modo a enfatizar o rancor do eu lírico abandonado
que, como consequência do preterimento, se apoia em chantagens emocionais.
Na segunda estrofe, o eu lírico
apresenta sua segunda queda. Ao dizer: “Espalho balas de canhão/ é inútil, pois
existe um grão-vizir”, as balas de canhão remetem à ideia de guerra, conflito.
Essa imagem sugere uma queda representada na imagem da bala de canhão atirada contra
um adversário, e adversário que, nesse caso, é ele próprio. Mas ele afirma que
é inútil atirar contra seu suposto adversário, pois existe o “grão-vizir” –
ministro de guerra. Em si o conflito é tão intenso que ele cria duas imagens
para si mesmo: ele é o grão-vizir e, ao mesmo tempo, é o adversário de guerra.
Ele atira e sofre respectivamente o ataque. Irrompe, portanto, o intenso
desequilíbrio emocional que o impele a uma luta interna que se manifesta entre: razão / emoção,
real / irreal, sanidade / loucura.
No verso: “Há tantas violetas
velhas sem um colibri”, encontramos, talvez, a imagem mais rica em poeticidade
do texto. O eu lírico se imprime na imagem das violetas sem um colibri – sem o
objeto do seu desejo –, e velhas – relegadas, nessa acepção, ao fim iminente –,
com a intenção de hiperbolizar suas feridas existenciais: dentre as violetas
sem colibri, ele é a mais deprimida.
A associação do eu lírico com a
flor sugere uma perda de identidade deste, tendo em vista que a imagem da flor
é remetida, quase sempre, à figura feminina que, numa visão tradicionalista,
está vinculada à condição passiva social e psicologicamente em detrimento do
ativismo que o masculino representaria. Eis um eu lírico, na metáfora,
submetido à condição frágil da flor, ou seja, é um sujeito passivo, permissivo,
dependente que assume essa postura por estar numa condição passional
irremediável.
Ao dizer que “Queria usar [...]
uma camisa de forças” – recurso utilizado para imobilização de pessoas em crise
em decorrência de problemas de saúde mental – mostra seu furor passional e mais
uma chantagem emocional: se o ser amado não retribuir a devoção ele ficará
louco.
Mas a conjunção “ou” dá outra
alternativa: poderia usar
também uma camisa “de Vênus”. Desta feita: ou o amor é realizado, ou o eu
lírico enlouquecerá. Loucura versus satisfação amorosa, e no auge desse
conflito o indivíduo afirma que não aceitará satisfazer esse amor se não for de
modo concreto – a camisa de Vênus é um dos termos utilizados para designar o
preservativo masculino.
O eu lírico se refere, também,
a ação de fumar. Fumar remete-nos à satisfação imediatista de um desejo, à tentativa de libertar-se de uma suposta angústia e à
fugacidade do prazer experimentado em tragos que não reduzem a sensação de ansiedade. Como resultado do cigarro consumido – imagem que remete ao
giz na primeira estrofe – restam apenas cinzas. E o eu lírico afirma que esse
não é o seu desejo. Amenizar a ansiedade, com o gozo do cigarro, não suprirá
seus anseios. Posteriormente, um verso sugere a perda de identidade do
indivíduo: “Não vou lhe beijar gastando assim o meu batom”. Como o batom é um
adereço arquetípico do sujeito feminino, o eu lírico parece perder as
delimitações da sua condição masculina dando-se às práticas habituais do
universo identitário supostamente feminino. Mas a alusão ao carnaval ameniza
essa ideia, afinal: as delimitações comportamentais de cunho sexista deixam de
ser consideradas em tempos de carnaval.
Na terceira estrofe percebemos
a terceira queda: “Agora pego um caminhão/ na lona vou a nocaute outra vez”. A
ideia de que pegou um caminhão traduz a necessidade de fuga empreendida por um
ser em desespero. Ao fugir, surge a metáfora da lona em que foi nocauteado –
nessa imagem encontramos a terceira queda.
A ideia de que o sentimento
amoroso conduziu o indivíduo às últimas consequências do desespero se confirma
nos versos: “Para sempre fui acorrentado no seu calcanhar”. A vassalagem
amorosa presente nesse verso remete-nos à imagem presente nas Cantigas de Amor
trovadorescas, em que o eu lírico se mostrava totalmente submisso ante sua
amada senhora – esta que sempre o desprezava ou que sequer o conhecia. Nesse
verso encontramos a confirmação da terceira queda já prenunciada nos primeiros
versos dessa terceira estrofe.
Nos versos: “Meus vinte anos de
boy/ That’s over baby/ Freud explica”, há fortes indícios de uma sensação de
desespero caracterizada pela visão conformista assumida pelo eu lírico e, ao
mesmo tempo, autodestrutiva. A juventude – ele se diz com vinte anos – não
representa a possibilidade de início da vida, antes vem a terrível constatação
de uma vida perdida definitivamente confirmada pela expressão estrangeira: “That’s over”, ou
seja, “isto é o fim”, “eis o fim”. Depois ele afirma: “Freud explica”. Essa
expressão lugar-comum utilizada pelo eu lírico – expressão reducionista que atribui a Freud a explicação para todas as problemáticas de caráter sexual do indivíduo – sugere uma tentativa
deste de justificar a devoção ao seu objeto afetivo e a atração sexual que
sente por sua amada.
Logo após, são repetidos termos
de estrofes anteriores e é utilizada uma expressão significativa para o contexto, nos versos: “Quanto ao pano dos confetes/ Já passou meu carnaval/ E isso
explica porque o sexo é assunto popular”. Há uma revolta expressa nesses versos
e indicam que o carnaval – imagem que nos remete à vivência de encontros
afetivos casuais e a festividades – se foi e nada mais representa, além disso, o pano
dos confetes já não tem mais utilidade. Nada mais parece adiantar para aquele
que está decidido a fugir, por ter sido preterido, da sensação avassaladora causada por seu amor.
Os últimos versos, seguidos de
reticências, apresentam um último apelo, ou mesmo chantagem emocional: “No
mais, estou indo embora/ No mais, estou indo embora/ No mais...”. E antes que o
verso último seja pronunciado, o eu lírico, nas entrelinhas indicadas pelas
reticências, parece deixar de vivenciar esse sentimento amoroso despedindo-se
da vida, o que poderia remeter a várias possibilidades interpretativas mas que,
após as pistas desvendadas, poderíamos dizer: por não suportar os conflitos
causados por um amor sem consolidação o eu lírico despede-se da vida – comete suicídio? O sentimento depressivo conduz o indivíduo perdido de amor à fuga
radical – a alma se liberta finalmente do amor corrosivo, na simbologia da morte.
Em suma, Chão de Giz é uma canção amarga, deprimente e,
antes de tudo, romântica no sentido mais amplo do termo. Apresenta três
estrofes e encerra com três versos sendo que o último está incompleto – e nessa
incompletude do verso poderia estar a urgência de morrer do eu lírico. O último
verso é concluído com reticências – que remetem à ideia de continuidade do
discurso ou supressão de termos, além de trazer a simbologia do número três
significativo para o texto se considerada a hipótese das três quedas
representadas nas três estrofes.
Enfim, o amor na música Chão de Giz conduz o amante às consequências
mais drásticas da passionalidade amorosa: o autoaniquilamento, a autodestruição
e a morte.
TEXTO DE: ÉMERSON CARDOSO
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